Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sábado, 26 de maio de 2012

UM POEMA


ACERCA DE UM MURO

Tudo tem uma razão
E essa parece ser a maior loucura.
Tudo, tudo.
Mesmo esse musgo,
Hemangioma verde na face do muro,
Insurgência de respiros
Esquecidos e mudos.
Há mesmo vida nisso?
Nesse indício de que nada jamais
Está abandonado?
Sequer um muro que separaria
O banal do insignificante.
Mas tem razão suficiente também
Tudo o que não está do lado de lá
Ou de cá do muro, mas em seu íntimo poroso.
Pode haver razão para que um fio de cabelo
Tenha se agregado à argamassa,
Se um cabelo tem biografia
Até o ponto em que fugiu de uma cabeça
Igualmente murada,
E para a alvenaria daquela cabeça eram os cabelos
Como musgo.
E o fio de cabelo antes externo ao crânio,
Agora estaria interno ao muro e haveria razão para isso.
Mas de quem seria tal cabelo ninguém perguntaria,
Sem perceber que ele é uma espécie de digital
Em filamento que o vento leva,
O vento também nunca eventual e cheio de razões.
Pior: pode ser que o muro sepulte
Algum fragmento de pele ou uma gota de sangue
De um pedreiro que se ferira.
Seria uma involuntária assinatura,
Pois nenhum pedreiro assina e data um muro,
Embora possa reter esse muro um afresco invisível
Do esforço inexpressivo do pedreiro,
Num momento de sua vida em que, talvez,
Sua filha estivesse enferma ou sua mulher grávida,
Ou quando estivesse pensando em ter de comprar
Carne para o almoço do dia seguinte,
Tantos e tantos tijolos depois.
E deve ter havido razão para que esse pensamento
Ocorresse à altura do assentamento do nonagésimo
Nono tijolo.
Ah, esses tijolos têm suas razões, e o próprio emboço
Que a eles oculta como ossos ou músculos
De um corpo que não irá a lugar algum,
Salvo quando for demolido e removido
Na forma de entulho,
Tal como os corpos que se movem e têm vontade
Também o serão.
Tem igualmente a demolição razões que julgamos sombrias.
E esse monturo prolixo que se acumula na base do muro,
Partes reagrupadas sob o desígnio de lixo,
Também tem sua razão.
A ratazana que percorre o muro à noite e alcança um telhado
Também tem sua razão.
E o pardal que nele pousa e ali bica qualquer coisa,
Uma merdinha de grão,
Também tem sua razão.

Só a palavra que grafitei de passagem no muro,
Embora as tenha, não quer ter razões.
E isso é uma loucura maior ainda.