Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

UM POEMA HOJE BASTA



É ilegível um livro escritos sobre transparências,
A sobreposição das páginas
Cria escara de rasuras.

A cidade ainda se me revela com segmentos vítreos,
Fachadas translúcidas:
O que há para se ver ainda não está apenas nela,
Paisagem-janela para outra cidade.

E uma cidade que se leia tem de ter opacidade
De osso, de fêmur ou crânio ou pelve;
De gordura coagulada, de leite talhado,
De névoa calcificada. Seus caracteres
São ciumentas presilhas óticas.

Uma cidade que se ame obtura os vão de fuga
Para o olhar
E nele crava o esmalte de seus dentes entalhados.

Uma cidade que se ame é corpo com poros fechados,
E não tem avesso que se veja de outra cidade.
Onde é líquida, também é turva.
Se tem rios, correm em círculos,
Se litorânea, fecha as estradas marítimas da memória
De outras cidades.

Uma cidade que se ame é densa lápide
Para o renascimento
Em que não se chora por futuras saudades.




segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

DUAS ANTIFÁBULAS*



1

Na terra distante onde os dragões viviam desde o fim da Idade Média, surgiram, vindos de fora, rumores de que dragões eram seres míticos sem existência real. Tais boatos deflagraram uma onda de revolta e indignação que, como toda onda de revolta e indignação, fez germinar uma inquietante dúvida: será verdade? Será que não existimos?

Para solucionar aquele impasse, os dragões decidiram, em assembléia, romper um pacto de isolamento vigente há mais de oito séculos, e enviar um emissário ao Ocidente em busca de um especialista em mitologia, de preferência o maior deles. Assim foi feito, e após uma semana, a autoridade, seqüestrada com pleno êxito e total discrição, apeou nas terras dragônicas.
Devidamente posto a par das razões de sua vinda, o especialista não se fez de rogado, e exarou de pronto o laudo:

- Senhores, lamento muito informar, mas vossas senhorias não existem, são apenas figuras míticas de uma época muito remota. E desconfio, por razões metodológicas, que estou apenas sonhando neste momento.

O insigne mitologista mal teve tempo de recuperar o fôlego, foi incinerado por raivosas e inconformadas cusparadas de fogo, de maneira que o infeliz não pôde acordar, se de fato dormia, e concluir que tudo não passara de um sonho. E justo por esta última razão, os dragões não conseguiram  certificar  que existiam de verdade.


2

Uma raposa andava tranqüila e galhardamente, quando se deparou com um cacho de uvas pendurado a certa altura. Sem estacar o passo, fez ligeira avaliação e prosseguiu no seu caminho. É que ela já passara diversas vezes pela situação de não alcançar as uvas e condicionou o reflexo de dispensar a moral da história.
                                                                                                                              


* Utilizo a designação Antifábula inspirado em um comentário de Eleonor Marino Duarte, no Facebook, sobre o segundo texto acima. 

Dürer, Combate de São Miguel com o Dragão, xilogravura, 1498.



























quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

PEQUENOS POEMAS




FÍSICA

Gostava de aplicar
a expressão vasos comunicantes
aos nossos olhos,
nossos ouvidos,
nossos sorrisos miscíveis
e ao nível comum de nós
à altura das nossas bocas.



NEFELIBATAS

Alguns estão nas nuvens
para fincar uma bandeira,
símbolo territorial,
neste solo vaporoso.
Quanto a mim, encontro-me aqui
apenas para agitar
a minha perplexa flâmula.




À BASE DE ÁGUA

Tu choras, e a minha consciência
é diluída:
enorme pastilha de aquarela
de onde extrais
pesados tons de cinza.



CHAPLINIANO

Fim de filme.
A estrada por seguir.
Música nostálgica, triste.

Sem efeitos especiais,
a minha bengala
e o meu chapéu-coco
flutuam e seguem em frente
na ausência do meu corpo.



AO ALCANCE DOS OLHOS

Não sei reconhecer lírios
ao vivo,
pois só os vi
na enciclopédia lírica.

Queria que fossem eles
essas flores tão banais
nas janelas da vizinhança.



NÃO BRUNIR

A pátina é mais bonita
porque é acúmulo
e tem história.
O brilho, não:
é só de agora.



DIVERTISIMENT

O céu chorou?
Que grandes pálpebras terá!
A tomar pelo tamanho
do arco da íris...



LE DÉJEUNER SUR L'HERBE

Inclina-te
e pega uma fruta
na natureza-morta
para que pareças
ainda mais natural.