Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Referenciais

PARA MEU PAI

Será chegada a hora de enumerar
Tudo o que recebi de ti?
Antes de tudo, a vida,
Perplexa ânsia de permanecer partindo.

Nos distantes dias de inciência
Os balizamentos encantados
Entre a verdade e o medo,
Entre a imagem e o real...
E tantas notícias sucessivas
Vindas da tua fortaleza:
A noção de honra em meio ao mundo desabado;
A pura e granítica sensação do humano,
O que vai, o que vem dentro do mistério sem palavras.

Ah! Certa dignidade em ser feito de sonhos não revelados.
A ingenuidade de um cavaleiro solitário de espada em riste
A pregar no próprio jardim.
O estoicismo de adiar o desejo ainda não encontrado.
A monástica adesão ao essencial,
Ao que é feito de matéria apropriada.
O sorriso involuntário e incrédulo
De um contador de histórias para platéias miúdas.
A perícia arqueológica de encontrar dia a dia
Razão para viver:
Essa razão não é comentada,
E essa razão não é definitiva.

Não. Tu não me garantiste estradas desimpedidas,
E seguir de perto o teu trajeto
Era concluir da distância entre o indivíduo e o mundo,
Esse mecanismo surdo,
Esse oráculo sem a grande solução.

Percebes que ao falar de ti também falo de mim?
Herdarei as tuas observações:
Serei o curador das tuas memórias;
Terei uma sala própria para elas,
E eu as modificarei, certamente,
Enquanto a tua imagem for desvanecendo,
Enquanto eu prosseguir deixando este mundo
De rios voláteis e florestas minguantes.

Agora, quando tu és um velho barco
Num estaleiro escuro que não posso alcançar,
Penso no que trouxeste para mim
De uma única viagem acidentada,
E no quanto mercadejaste em remotas regiões
Para legar-me o que não posso ponderar.

Se, de fato, morreres agora,
Saberei das lágrimas pelos encontros adiados,
Lágrimas carregadas de tudo o que não te pude dizer.


PARA MEU FILHO, VICTOR

(um poema escrito há dezenove anos)

Nesta noite, edificada em silêncios negros,
Anjo translúcido, o meu filho dorme
Apascentando um rebanho de mil sonhos gêmeos.

Nas fímbrias de seus olhos semicerrados
Vivem infusos espirituais mistérios
E insondáveis enteléquias.

Para que pensar num oblíquo futuro
Se a vida corre nele em longos sorvos
E suas mãos agitadas tateiam rotas de grãos?

Surpreendente vida com começo invisível
E presença indisfarçável,
De cujo fim não se cogita se pelo rio vamos,
As mãos nos remos, o vento em contrário
E os olhos no horizonte descontínuo.

Segue, meu filho, a tua progressão, do ínfimo
Ao infinitamente desconhecido.
Por dia, teus dedos intentam uma altura nova,
Maior é o acorde dos teus passos
E tocas distraído o extremo da luz.

Até chegar o momento em que navegarás
Nas tuas próprias perguntas,
Menos densas que a vida, e que sobre ela flutuarão.

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Há alguns meses publiquei aqui este poeminha:

GERÚNDIO

(Para o meu amigo Wellington Trotta.)

De bom grado serei
O grande ausente
Das festas do futuro
Se me atrasar ou me perder
Procurando o presente ideal.


Um poema minúsculo e pouco inspirado dedicado a um grande amigo de longa data.
Mas, ele já me perdoou. 
Pois bem, esse amigo criou recentemente um blog,  publicando experiências poéticas.
Seus poemas são, no mínimo, extremamente pessoais, refletindo uma dialética entre
lirismo e inquietação filosófica. Abaixo, um exemplo:


MULTIDÃO
Mesmo no meio da multidão de compactos rostos,
fisionomias misturadas num perder-se de peculiaridades
no vazio uniforme desvairado-insistente,
de muitos andares sem saber o que desejam,
ou que só desejam, e desejam muito
sem atentar que desejam por desejar incessantemente…
… mesmo nessa multidão de compactos semblantes,
mixórdia de expressões perdidas em pensamentos iguais e pueris,
tão obscuros que me vi cercado por uma escuridão de significados,
portas que fechadas para o tudo se abriam para o nada, solenemente,
no bater de pernas na velocidade de lábios desconectados,
numa realidade só julgada pelos mais loucos critérios de verdade…
… zombavam de mim, anonimamente,
pela dominação que sofro cruelmente
de tua presente-ausência que:
domina meu pensamento impiedosamente,
seja de noite ou de dia, sob sol ou chuva, mas sempre.
Mesmo que de repente, ao súbito o sono se acabe, acordo,
continuando a sonhar pelo calor de tua presença,
pela força de tua ausência, pelo odor de tua lembrança.
Tua imagem refletida no meu espírito assemelha-se ao caminho das nuvens:
de um ponto a outro temperando o rigor do sol,
embelezando o crepúsculo de mais um dia,
abrigando a lua em tuas imensas espumas brancas,
guardando no interior da chuva a terra onde me afirmo.
Tua presença castiga lentamente meus olhos úmidos e fixos,
espelhada numa folha escrita repleta de palavras banhadas pelo teu nome,
pela rima que tens em ti, pela melodia que exala de ti em si mesma.
Quando penso, e penso muito em ti, penso pensando no nada, nas noites
sem silêncio e na leitura sem concentração.
Quando penso em ti sou tomado por ondas de sentimentos,
por uma espécie de velocidade arrebatadoramente ingênua,
sem direção para qualquer lugareem que se tenha felicidade.
Tua presença, tua ausência, tua lembrança não causam dor,
apenas um estado d’alma reflexivo nas estruturas do ser,
na certeza do tempo que transforma paisagens e esculpe formas,
erige normas de se trabalhar mãos, sonhos e esperanças.
Tua presença caminha por onde caminho, por onde vivo, se escrevo, leio ou
mesmo completamente parado, presença que ensaia uma despedida pelo
pelo adágio de um sorriso
por uma pincelada de cores que borrando o papel em branco,
constrói contornando seu rosto na expectativa-perspectiva
sobre meu peito no infinito limitado de tuas mãos.
(Wellington Trotta, em 06/07/2009)

Quem tiver interesse em ler outros poemas dele, basta acessar o blog Páginas (Des)ocultas clicando no link abaixo:

18 comentários:

  1. Marcantonio, grande poeta e amigo,
    o teu coração é uma imensa alma
    e tão branda: ouço a doçura
    e vejo lágrimas.

    Forte abraço.

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  2. Marcantônio, meu caro. Sua poesia é fluente e certeira. A que escreveu para seu filho me impressionou em especial. Você é um grande poeta.

    Forte abraço!

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  3. Querido Marcantonio
    Maravilha!
    Que jeito bom de começar a minha sexta-feira!
    Estou aqui, perplexa, lendo, relendo, lendo outra vez. E outra mais.
    Meu Deus: falas do pai, do filho e do amigo.
    E falas com a alma colocada em cada palavra do rico arsenal...
    Que posso eu, falar?
    Imenso abraço, amigo!

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  4. eu não vou dizer nada não, rapaz este teu post me deixou comovido como o diabo - a la Drummond - fazes germinar flores no asfalto,


    abração

    p.s. meu primeiro filho é também Victor

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  5. AH Poeta!

    Chorei! Confesso que não contive a matéria líquida que desabava dos olhos. Se você era grande, agora é um gigante para mim. De filho para pai e de pai para filho e essa extraordinária sensibilidade de dividir conosco.

    Parabéns, poeta!

    Beijos e aplausos!

    Mirze

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  6. Marcantonio, poeta que admiro, esses versos são sublimes: "Saberei das lágrimas pelos encontros adiados,
    Lágrimas carregadas de tudo o que não te pude dizer".

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  7. simplesmente magnífico...qq comentário, redunda e mitiga !...

    esplêndido, realmente emocionante...

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  8. Marco,
    "Perplexa ânsia de permanecer partindo."
    Nada mais a dizer, tudo mais a ler...
    Prazer imenso estar-me aqui outra vez, e sempre...

    Abraço colhendo flores no asfalto,
    Pedro Ramúcio.

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  9. O poema de seu amigo é muito bonito. Mas preciso dizer dos seus, que são a materialização dos sentidos, das sensações, todas dizendo amém para seus versos. Que lindas homenagens!

    Beijo, grande poeta!

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  10. Apenas homenagens nesse post... muito bonito e inspirador!

    Me chamou a atenção o poema escrito para o Victor a parte que você diz exatamente:

    "do ínfimo / Ao infinitamente desconhecido."

    Poderia ficar horas filosofando acerca disso... rs!

    Seu amigo é muito talentoso, assim como você!

    Abs!

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  11. "A monástica adesão ao essencial".

    Confesso que derramei algumas lágrimas.
    Comovida, fiquei presa ao poema que dedicou ao seu pai.
    Lindo!

    Bj
    Rossana

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  12. Marcantônio,
    "Para meu pai" me fez ver/sentir todas as pequenas epifanias construídas pela intensidade dos afetos...
    Um grande poema!
    Abraços, bons caminhos...

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  13. Caríssimo Marcantonio,

    Grandes encontros marcam no calendário da nossa existência dias especiais.
    Estou muito feliz e emocionada por ter lido "Para meu pai".
    Muito lindo mesmo!

    Beijos

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  14. marcantónio,
    não ouso entrar neste território de delicadeza intimista. limito-me a seguir os olhos pelas borboletas que esvoaçam numa homenagem onde nem uma lágrima esquiva consegue passar despercebida. arrepiante, meu caro amigo.
    um forte abraço!

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  15. Poeta! O tratamento lhe cabe muito bem. Confesso meio encabulado um sentimento mesquinho, de inveja, por não ter escrito essas palavras maravilhosas pro meu pai. Assim, as guardarei pra ler de novo, um dia qualquer. Agora que você publicou não são mais somente suas. Foi o que vi de mais belo até hoje sobre o tema. Comovente...

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  16. Bom Dia Marcantonio!
    Graças ao querido Rangel tive o prazer de encontrar as suas poesias. Parabéns pelo dor de fazer com que as palavras se tornem verdadeiras artes. Estou te seguindo para que possa acompanhar suas magníficas poesias. Abraços!!
    Ana Paula Porto Luna
    http://anapaulaporto29.blogspot.com/

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  17. Marco, meu amigo, seu poema dedicado ao seu filho pode ser dedicado a si mesmo. Meus parabéns.

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