A IDA
A manhã me desperta,
Resmungona como uma dama da noite,
Exigindo o pagamento dos seus favores.
Tenho o rosto parvo e desiludido
De um adolescente que não sabia dos custos.
A manhã, com olhar oblíquo, cínico
E de sedução forçada, bate o pé e
Levanta a saia para me lembrar
A finalidade do nosso contrato.
Pagarei juntando todos os meus centavos,
Pétalas de flor já desfeita no meu bolso.
Haverá mais amanhã.
2
Aparo as minhas unhas:
Não quero tirar sangue
De outras mãos.
Calço o melhor par de sapatos,
Aquele que oculta o vão
Entre os meus pés e o chão.
Ponho os meus dentes à mostra,
Minha lua segmentada
De que todos querem uma fatia,
Mesmo sob um sol escaldante.
Os óculos! Os óculos!
Sem eles não posso ver
O desespero alheio que me consola.
Pronto. O meu corpo está pronto pra dragar
Os canais assoreados do dia.
3
Urbe et horda.
Está lá fora a hidra de sete cabeças
Multiplicadas em rede de fractais.
Não tenho doze trabalhos a realizar.
Apenas um: sustentar a flor da vontade
Que tomba com cabeleira ensolarada,
A face voltada à sombra memorizada.
Lá vou eu com meu bocado de ardis
Disputado por cães cruéis.
Sigo com a alma içada sobre as ruas,
Personagem ignorado
Dum afresco no topo da nave central
Congestionada de fiéis ou hereges.
Meus olhos aqui e ali aportam
Em alguma ilha fisionômica
(ou cômica):
Uns supercílios ejetados pela dúvida,
Um nariz rebelde, a salina de uma testa,
Uns cabelos que queriam ficar em casa,
Um queixo fugitivo; uma orelha ímpar.
Orelha?
Quando Van Gogh andava pelas ruas de Arles
Era chamado de louco. Fou! Fou! Fou!
Também sou louco, mas quem nota?
Quem sabe da loucura de um cão de Pavlov?
Mas, o meu amado Van Gogh era um ser patético,
(Sabia disso, menina com fones de ouvido?
Sabia? Sabia disso, senhor com óculos escuros?)
Ele era quase desdentado, devia feder
Em suas roupas velhas, em seus sapatos purulentos,
Seus chapéus engordurados de sol.
Em seu quarto cheirando a mofo, soprava teias de aranha.
Sua latrina devia ser fétida. Seu cachimbo tinha nódoas
De tinta seca. Ele nem tinha grana para o fumo.
Um incompetente, o Van Gogh, que largou o amarelo
Para tingir-se de vermelho.
Mas o que tem a ver Van Gogh
Com a faixa de pedestres no sinal de trânsito?
O que tem Van Gogh com serviços bancários
E lugares assépticos com ar condicionado?
O meu estômago nauseado é antiquado,
E inepto para navegações!
Ó amigos argonautas, me despeçam no próximo porto
Desse oceano de gente!
Mas, sigo.
4
Ocorre-me argumento filosófico
Em plena Avenida Rio Branco:
Deve haver um deus
Porque, às vezes, finjo ser ele.
Ou finjo ser o meu pai que me acudia
E morreu sem me consultar?
Prossigo.
5
Tenho o privilégio de saber
De tudo o que não muda nada,
O que não cria atalhos
Para o velo de ouro na área
De trabalho.
Vontade de cuspir uma palavra
Para cada palmo abstrato de chão.
6
Prossigo.
A nuca do ascensorista encaneceu
de susto entre um andar e outro.
Talvez porque ele tenha descoberto
Que era apenas um estranho caronte,
Cordato, pago por atacado.
Os seus dentes foram amarelando
De sorrisos obrigatórios
De tanto dizer bom dia! Boa tarde!
Sobe, desce, sobe, desce!
Todos no elevador olham para o número dos andares
Como se fossem crucifixos em capelas.
Eu não, pois tenho o olfato apurado.
Desembarco e prossigo:
No corredor há uma só porta válida,
As outras são falsas:
Dão para o vazio de outras vidas.