Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 26 de dezembro de 2010

Três Poemas na Última Semana do Ano

O POEMA


O poema te procura,
Remota ânsia,
Matéria escura;
Sons andarilhos.
Sino de faiança,
Chamado estranho
À tua vizinhança.

O poema concentra,
A tua distância
Na cela acesa,
Sol amparado,
Céu reduzido,
Vôo simulado
De ave presa.

O poema te arma,
És sentinela,
A mão na faca
Atrás da porta;
Hirto, velas,
No próprio pulso
As horas cortas.

O poema te detém
Remotamente,
Grato refém
Desse exercício,
Louca assistência:
Içar palavras
Suicidadas
No precipício
Da existência.


CYCLADES

A mesma folha
Enche-se de ilhas,
Uma, duas, cem.
Logo está saturada
De Cyclades
Flutuantes
Sobre abismo branco:
Uns tantos destroços vulcânicos
Coagulados.

Nada afunda
E nada se fundamenta.

Nenhum navio transita.
Não há naufrágios.


AFASTAMENTO

Com carvão desenho um perfil na tela.
É todo um ser de proximidades.
Recuo alguns passos:
O entorno enquadra o quadro.
Mais alguns passos para trás:
O entorno do entorno o engole.
Recuando ainda mais:
O entorno do entorno do entorno
Toma tudo para si:
Já não vejo o que pretendera representar.

Magritte, A Condição Humana, OST, 1933

16 comentários:

  1. Poetíssimo!

    O POEMA - é a própria ânsia que acontece de ambos os lados. Sou ave presa e ele sabe disso.

    CYCLADES! O desfecho foi fenomenal: nenhum navio transita e nem há naufrágios! (Bárbaro)

    Afastamento! Acho que isso acontece também na vida. Somente a uma certa distância conseguimos a clareza que precisamos.

    Fantásticos!


    Beijos, poeta!

    Mirze

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  2. Ah, Marcantonio, o que a poesia faz conosco! Ah...
    Desenha, sobre tela em branco, tantos Andros, Tinos, Mikonos...
    Arquipélago estático!
    Então, vamos nos afastando, até que tudo seja feito , apenas, de borrões em sépia... Só!
    Exceção: o brilho das tuas pérolas, grande poeta!

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  3. o poema amarra e é amarrado. às vezes.

    abraços.

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  4. nessas horas outras almas se apoderam
    de todo o vazio
    ...

    forte abraço,
    grande poeta e amigo.

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  5. A condição humana de Magritte: eu sempre que vejo um quadro desse cara tenho a sensação que ele quer retratar o que está fora do quadro, o ali dentro da pintura é só um motivo para se vislumbrar o que está lá fora. Parece-me uma ordem que não cabe aos pincéis. O teu Afastamento adjetiva todo esse espaço. Para perceber-se é preciso um recuo, uma distancia precisa para colher o olhar do espelho. Mas nas distancias também há a perdição.


    abraço

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  6. Uma linha tênue une os poemas, tocantes poemas.

    Abraços

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  7. o poema é uma pérola que acompanha as demais preciosidades.

    és brilhante!

    beijo nessas mãos.

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  8. Armados de poemas, vamos à luta incerta de equilibrar emoções à beira do abismo.

    Tudo lindo, meu amigo!

    Beijo grande.

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  9. Três poemas que declaram a arte como senhora de si mesma. Conduzindo todos pelos traços que ela deseja seguir.
    Lindos!!!

    Marquinho,
    Feliz 2011!!! Desejo tudo de melhor pra ti. Sou tua fã e digo isso com uma alegria imensa.

    "O poema te procura..."

    Um beijo grande!
    Adriana

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  10. Lindo, simplesmente lindo!!! O entorno, do entorno, do entorno...faz o coração da gente ir distanciando...e tudo fica tão mais claro! Que 2011 traga para o lado de cá muitos poemas teus!!!

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  11. Já não sei mais se procuro o poeta ou a poesia.
    Cada dia que passa torno-me mais arquipélago.
    Como um náufrago que nunca esteve em navios,
    busco água e frutos para sobreviver, embora nada vislumbre no entorno do entorno...
    Tudo são apenas brumas, e sigo tateando aqui e
    acolá, desejando não tropeçar antes de encontrar uma saída ou de tornar-me transparente...!?

    FELIZ "ANO NOVO", POETA!!!

    Beijo

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  12. Marco querido, vim atualizar a leitura imperdível de teus poemas.
    Mas vim também te desejar um 2011 inspirado e inspirador, felicidade e alegrias aos montes e sempre sempre tua presença no Grupo.

    Beijo

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  13. o poema procura-nos. haverá como fugir?...
    um abraço com votos de tudo de bom para ti, poeta, no ano que hoje nos visita!

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  14. Eu ia dizer o óbvio necessário, mas a Pólen já o fez, e de forma sucinta, exata.

    No mais, seus outros leitores-comentaristas já enfatizaram quase tudo que me chamou a atenção.

    Só quero acrescentar ao que a Mirze comentou - sobre o fecho primoroso de Cyclades - a força e beleza também dos dois versos que o antecedem:

    "Nada afunda
    E nada se fundamenta"

    Grande 2011, Marcantonio!

    Abraços

    P.S.: Só hoje, depois de tantos meses, me dei conta que ainda não o seguia. Falha grave, mas já corrigida, e com a honra de me tornar seu seguidor de número 200!

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