Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sábado, 6 de abril de 2013

DEZ HAICAIS E MAIS UM POEMA



DAS MORTES PRECOCES

Esperava-se apenas para a noite,
(quando todos os lírios replicados
já estariam enrugados e ressequidos)
o baque e o quase inaudível vagido.

Mas morre-se sob o precoce holofote diurno,
sobre pétalas ainda tenras,
sobre água ainda fresca e lenta,
sob frutos ainda aéreos e castos de aroma,
com o livro ainda na página de rosto
e com o rosto sem a craca dos ancoradouros.


Morre-se na cena com erro de continuidade,
e segundo a cronologia ilógica dos sonhos.

Morre-se quando ainda estala a claquete,
E ficam para o restante do elenco
A luz e a ação.


HAICAIS

a

Papel ocreado
Com odor de folhas secas:
Não escrevo: sonho.

b

Crescem sob a casa
Raízes da árvore fícus:
Quer mesmo ficar.

c

Escuras no bojo
Douradas nas bordas nítidas:
Dramáticas nuvens.

d

O coqueiro torto
Parece ter sete asas
De pelicano.

e

Transparece a lua,
cor diáfana de nuvem,
quando ainda é tarde.

f

O cão agachado,
vigia a fresta do portão:
aguarda o estranho.

g

O pássaro dança,
ao som dos próprios trinados,
sobre o fio neutro.

h

Escrevo o haicai
em prosa para arrancar-lhe
as folhas dum trevo.

i

Silêncio total,
Não há trânsito nas ruas
Nem zunem as moscas.

j

Cata-vento em pedra,
Estranha contradição,
Mas é bela lápide.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

UM POEMA HOJE BASTA



É ilegível um livro escritos sobre transparências,
A sobreposição das páginas
Cria escara de rasuras.

A cidade ainda se me revela com segmentos vítreos,
Fachadas translúcidas:
O que há para se ver ainda não está apenas nela,
Paisagem-janela para outra cidade.

E uma cidade que se leia tem de ter opacidade
De osso, de fêmur ou crânio ou pelve;
De gordura coagulada, de leite talhado,
De névoa calcificada. Seus caracteres
São ciumentas presilhas óticas.

Uma cidade que se ame obtura os vão de fuga
Para o olhar
E nele crava o esmalte de seus dentes entalhados.

Uma cidade que se ame é corpo com poros fechados,
E não tem avesso que se veja de outra cidade.
Onde é líquida, também é turva.
Se tem rios, correm em círculos,
Se litorânea, fecha as estradas marítimas da memória
De outras cidades.

Uma cidade que se ame é densa lápide
Para o renascimento
Em que não se chora por futuras saudades.




segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

DUAS ANTIFÁBULAS*



1

Na terra distante onde os dragões viviam desde o fim da Idade Média, surgiram, vindos de fora, rumores de que dragões eram seres míticos sem existência real. Tais boatos deflagraram uma onda de revolta e indignação que, como toda onda de revolta e indignação, fez germinar uma inquietante dúvida: será verdade? Será que não existimos?

Para solucionar aquele impasse, os dragões decidiram, em assembléia, romper um pacto de isolamento vigente há mais de oito séculos, e enviar um emissário ao Ocidente em busca de um especialista em mitologia, de preferência o maior deles. Assim foi feito, e após uma semana, a autoridade, seqüestrada com pleno êxito e total discrição, apeou nas terras dragônicas.
Devidamente posto a par das razões de sua vinda, o especialista não se fez de rogado, e exarou de pronto o laudo:

- Senhores, lamento muito informar, mas vossas senhorias não existem, são apenas figuras míticas de uma época muito remota. E desconfio, por razões metodológicas, que estou apenas sonhando neste momento.

O insigne mitologista mal teve tempo de recuperar o fôlego, foi incinerado por raivosas e inconformadas cusparadas de fogo, de maneira que o infeliz não pôde acordar, se de fato dormia, e concluir que tudo não passara de um sonho. E justo por esta última razão, os dragões não conseguiram  certificar  que existiam de verdade.


2

Uma raposa andava tranqüila e galhardamente, quando se deparou com um cacho de uvas pendurado a certa altura. Sem estacar o passo, fez ligeira avaliação e prosseguiu no seu caminho. É que ela já passara diversas vezes pela situação de não alcançar as uvas e condicionou o reflexo de dispensar a moral da história.
                                                                                                                              


* Utilizo a designação Antifábula inspirado em um comentário de Eleonor Marino Duarte, no Facebook, sobre o segundo texto acima. 

Dürer, Combate de São Miguel com o Dragão, xilogravura, 1498.



























quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

PEQUENOS POEMAS




FÍSICA

Gostava de aplicar
a expressão vasos comunicantes
aos nossos olhos,
nossos ouvidos,
nossos sorrisos miscíveis
e ao nível comum de nós
à altura das nossas bocas.



NEFELIBATAS

Alguns estão nas nuvens
para fincar uma bandeira,
símbolo territorial,
neste solo vaporoso.
Quanto a mim, encontro-me aqui
apenas para agitar
a minha perplexa flâmula.




À BASE DE ÁGUA

Tu choras, e a minha consciência
é diluída:
enorme pastilha de aquarela
de onde extrais
pesados tons de cinza.



CHAPLINIANO

Fim de filme.
A estrada por seguir.
Música nostálgica, triste.

Sem efeitos especiais,
a minha bengala
e o meu chapéu-coco
flutuam e seguem em frente
na ausência do meu corpo.



AO ALCANCE DOS OLHOS

Não sei reconhecer lírios
ao vivo,
pois só os vi
na enciclopédia lírica.

Queria que fossem eles
essas flores tão banais
nas janelas da vizinhança.



NÃO BRUNIR

A pátina é mais bonita
porque é acúmulo
e tem história.
O brilho, não:
é só de agora.



DIVERTISIMENT

O céu chorou?
Que grandes pálpebras terá!
A tomar pelo tamanho
do arco da íris...



LE DÉJEUNER SUR L'HERBE

Inclina-te
e pega uma fruta
na natureza-morta
para que pareças
ainda mais natural.
                                                                                                                                        

sábado, 10 de novembro de 2012

DIÁRIO SOBRE A METARMOFOSE DAS NUVENS (1)



DIÁRIO SOBRE A METARMOFOSE DAS NUVENS (1)


a)

Estáticos no céu
Pequenos dragões
Como a recordar o tempo
Em que eram apenas terrenos vulcões.

b)

Então, uma cortina cinza de nuvens
Cai sobre o horizonte,
Abrindo um corredor azul-mortiço
Para os pterodátilos.

c)

Um sapo estatelado no ar
Perde uma perna.
Depois outra.
Nunca mais irá saltar.

d)

Suponho que é um bobo
Com um gorro de pontas,
Mas não ouço guizos.
Nem risos.

e)

É Ajax Telamônio que se atira
Sobre a própria espada,
Mas esta se esgarça
Antes de lhe trespassar o peito.
Em segundos, o próprio guerreiro,
Sem perder uma gota de sangue,
Também é desfeito.

f)

Somem as cabeças da hidra,
Uma por vez.
O vento poupou uma tarefa
A Hércules.

g)

Um cacto
Sobre si mesmo se dobra
E gira:
Agora é branca rosa 
Sem espinhos.
Mas ainda retém água.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

TRÊS POEMAS DE OUTUBRO



GARDEN

Uma breve crônica:
O jardineiro cego de um olho parece gostar
Do cultivo sistemático de desabridas flores
Protegidas em estufas à prova de tempo.
E aprecia ainda mais o convívio no limo
Com as extenuadas estátuas do jardim
Que já apresentam artrose na coluna dorsal.
As duas deVênus Calipígia, por exemplo, se sentam na relva
E exibem as vulvas, o trecho mais tenro de seus mármores.
Em contrapartida os faunos priápicos de bronze
Desaprenderam as filigranas barrocas da arte masturbatória.

Uma novidade:
O novo arquiteto (que detesta o estilo antigo
E num manifesto contra a tradição
Mandou Dédalos enfiar os dez dedos no cu)
Dedica-se fleumático a projetar um labirinto
De cercas vivas
Do qual, se preciso, pulará como um sapo
Para a liberdade.

Uma nota:
A múmia mais antiga do museu de história natural
Foi roubada e vandalizada. Resgatada aos pedaços,
Doaram-na ao jardim. Sem outro uso adequado
Foi moída e peneirada.Tornou-se insigne ração
Para os peixes balofos do pitagórico lago triangular,
Muito elogiável e oportuno,
Pois ambos têm equivalente valor histórico.


CORRESPONDÊNCIA

Suponho que tenhas
O endereço da verdade
Já que lhe envias um memorando
Com o aviso de que ela não existe.

Para todos os efeitos
Basta que a verdade se verifique
Pelo ato de chamar alguém
Se esse alguém responder:
A tua solidão
Não te enganaria a tal respeito
Por mais que não quiseras crer.


SUBSTITUIÇÃO

Se ao menos a felicidade
Tivesse deixado definitiva cicatriz,
Um valor nítido para a incógnita
Do primeiro termo de

X = + feliz.

Mas essa ausência
Variável,
Para mais ou menos,
Jamais resultará em raiz.




quinta-feira, 20 de setembro de 2012

DOIS POEMAS



MANTER O FOGO

Há momentos
De sol de meio dia dentro do meu crânio fixo
A meio caminho entre o leste e o oeste.
É quando as lupas dos meus cristalinos
Direcionam um raio calorífico intensíssimo
Sobre alguma coisa ínfima e insignificante,
Até que uma fagulha inflame essa ninharia
Tornando-a, de súbito, lenha fundamental,
Imprescindível para reavivar a universal fogueira.


REMANESCÊNCIA

Desconfio que as flores 
Os pássarosse os peixes
Riem da minha pretensão
De lhes furtar os nomes.

E as grandes máquinas anônimas
E os instrumentos indiferentes
E frios sem etiquetas
Também riem com sarcasmo
Quando lhes aplico nomes
De flores, de pássaros, de peixes.

E daí que gracejem?

Desgarrados e desocupados,
Por último riem os nomes
De coisas agora extintas.


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Quatro Poemas Recentes



TÊRMO

A palavra sol
Que se põe na página
Não mais a ilumina
Nem seca a palavra
Lágrima.

Para o horizonte
Da última linha
A dor não declina.


COTIDIANO

Troco uma lâmpada
E penso na origem
Do universo.

Ponho o lixo para fora
E me pergunto
Sobre as auroras boreais.

Enquanto amarro
Os cadarços dos sapatos,
Lembro-me dos bisões
Da gruta de Lascaux.

É assim:
Sempre estou aqui
E jamais estou.


TRANSEUNTE

O carro de Apolo
Parou no sinal
Vermelho.

Rápido, atravesso
A principal celeste
E pego uma transversal
Noturna.


O MALMEQUER

O meu humor
Tortura a flor
Da manhã clara:

Arranca-lhe
Sem alternativa
As pétalas pétreas
De opala.


BELO MOMENTO


Foram raríssimas as ocasiões em que pude ouvir algum poema meu declamado. E fui surpreendido pelo vídeo abaixo postado no blog Poetas Vivos por Cris de Souza no qual ela recita um poeminha meu, "Entre as orelhas". E o poeminha creceu muito por obra e arte da Cris! Achei o resultado de muito bom gosto. Pareceu-me ótimo, realmente. Agradecido, Cris, por essa partilha e pela sua gentileza com a minha poesia.


Você pode acompanhar o trabalho poético de Cris de Souza nos blogs Trem da Lira e Válvula de Escape

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

RETORNANDO



ANESTESIA

Um poema ceifa a dor:
Sequer sinto a amputação
Do dia.


CHEIA

Com dejetos,
Cascalhos do cotidiano,
Segue assoreado
O rio da minha palavra:

E em vão atua o meu espírito
e seu desejo
feito draga.


FOLCLÓRICO

Não aplique mais às nuvens
A imagem de um rebanho
Conduzido por amoroso pastor:

É algum flautista desmedido
Que as escolta para a queda

No abismo.


OCTETO

1

Ele queria saber se ela possuía pontos fracos ocultados pelas palavras. Mordia-lhe os tendões de Aquiles.

2

Suas panturrilhas o fascinavam, era como se ela estivesse continuamente na ponta dos pés sem sapatilhas.

3

Perguntava-se sobre sua alma feminina: seria tão doce quanto suas virilhas?

4

Seus grandes lábios, escondidos por um tênue véu de algodão, pulsavam úmidos com vitalidade animal, em incessante oratória.

5

Não era pouca coisa abrir-lhe a pequena concha do sexo, pronta para ser arrebatada pela espuma de uma onda vinda de longe. Afrodite e sua concha sedenta de espumas.

6

Uma grande mulher com pelos pubianos recendendo à embriagante maresia. Mas o púbis de Afrodite não é qualquer território livre, qualquer varanda aberta...

7

Sua nuca parecia uma ilha secreta onde Eros brincava com Psiquê. Eles deslizam por sua espinha, kundalini-onda marinha, fazendo suas nádegas tremer.

8

Ele se deixava arrebatar por aquela liturgia sensual de palavras rebeladas e sedutoras, toda uma poética inesperadamente construída para se repetir e se repetir a cada ato de se despir.
 

sábado, 26 de maio de 2012

UM POEMA


ACERCA DE UM MURO

Tudo tem uma razão
E essa parece ser a maior loucura.
Tudo, tudo.
Mesmo esse musgo,
Hemangioma verde na face do muro,
Insurgência de respiros
Esquecidos e mudos.
Há mesmo vida nisso?
Nesse indício de que nada jamais
Está abandonado?
Sequer um muro que separaria
O banal do insignificante.
Mas tem razão suficiente também
Tudo o que não está do lado de lá
Ou de cá do muro, mas em seu íntimo poroso.
Pode haver razão para que um fio de cabelo
Tenha se agregado à argamassa,
Se um cabelo tem biografia
Até o ponto em que fugiu de uma cabeça
Igualmente murada,
E para a alvenaria daquela cabeça eram os cabelos
Como musgo.
E o fio de cabelo antes externo ao crânio,
Agora estaria interno ao muro e haveria razão para isso.
Mas de quem seria tal cabelo ninguém perguntaria,
Sem perceber que ele é uma espécie de digital
Em filamento que o vento leva,
O vento também nunca eventual e cheio de razões.
Pior: pode ser que o muro sepulte
Algum fragmento de pele ou uma gota de sangue
De um pedreiro que se ferira.
Seria uma involuntária assinatura,
Pois nenhum pedreiro assina e data um muro,
Embora possa reter esse muro um afresco invisível
Do esforço inexpressivo do pedreiro,
Num momento de sua vida em que, talvez,
Sua filha estivesse enferma ou sua mulher grávida,
Ou quando estivesse pensando em ter de comprar
Carne para o almoço do dia seguinte,
Tantos e tantos tijolos depois.
E deve ter havido razão para que esse pensamento
Ocorresse à altura do assentamento do nonagésimo
Nono tijolo.
Ah, esses tijolos têm suas razões, e o próprio emboço
Que a eles oculta como ossos ou músculos
De um corpo que não irá a lugar algum,
Salvo quando for demolido e removido
Na forma de entulho,
Tal como os corpos que se movem e têm vontade
Também o serão.
Tem igualmente a demolição razões que julgamos sombrias.
E esse monturo prolixo que se acumula na base do muro,
Partes reagrupadas sob o desígnio de lixo,
Também tem sua razão.
A ratazana que percorre o muro à noite e alcança um telhado
Também tem sua razão.
E o pardal que nele pousa e ali bica qualquer coisa,
Uma merdinha de grão,
Também tem sua razão.

Só a palavra que grafitei de passagem no muro,
Embora as tenha, não quer ter razões.
E isso é uma loucura maior ainda. 

sábado, 28 de abril de 2012

Poema a Quatro Mãos


CURTO INTERNO

Na tomada de consciência
tomo experiência
em apagão

Se me choca o sentido
tateio o desconhecido
seguindo o fio

da interrogação.

(Cris de Souza & Marcantonio)


Marcantonio, Noturno, arte digital (com interferência tonal de Cris de Souza).

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Dois Poemas

TIRÂNICO

Neste poema instauro
Um despotismo cosmológico:
Com férreo domínio sobre o sol,
Eu o condeno a brilhar para sempre
Nesta página,
Feito áurea roldana
Que aqui içou o esplendor da iluminura,
E em seguida travou-se como mecanismo.
Assim condeno a noite ao ostracismo
Para além da literatura,
Com boca, olhos e ouvidos selados,
Ato poético de ordinária censura.


À NOITINHA

Já ouço os soluços vindos
Do berço da noite.
Ela começa a chorar.
Teria fome de pesadelos?
Todos juntos poderíamos levar aos seus lábios
Um enorme duto
Pelo qual ela sugararia o oceano
Dos nossos medos.

Talvez ela tenha dores no ventre
Inflado de gases nebulosos e astronômicos
Ou farto da loucura, do mal e da morte
Ainda por digerir.

Teria se mirado no espelho côncavo,
Suspenso móbile,
E descoberto ter ela mesma medo de si?

Choro insuportável. Como aguentamos?
Onde estará a mãe da noite?
Dizem que ela tem apenas um pai
Ausente e operoso
Em trabalho eterno no vão entre a luz e a escuridão.
Pobre noite.

Vamos aceitar o encargo de sermos suas babás?
Balancemos seu berço,
Cada qual toque a parte dele
Que lhe chega à janela,
E afinados sussurremos um acalanto:

Dorme...





terça-feira, 20 de março de 2012

Cinco Poemas Em Outro Outono

EXERCÍCIO

A insônia pode ser
Um salto mental
Em busca de sol.


MISSIVA

Juntei quinhentas palavras,
Granítico vocabulário
Para erguer rígida muralha
Entre nós.
Fracasso de engenharia,
Este discurso de alvenaria
Não resiste ao sopro quente
Da tua voz.


PARA AMANHÃ

Preciso mudar o tom
E o suporte:
Não será no chão da ágora,
Com algum cinza neutro.
Dispensarei a parede sombria
Do cárcere onde grafitar-me
Sombrio redundante,
Sombra sobre sombra
Simula o transparente.

Será mudança meteorológica:
Um céu tão claro
Sobre um vinco apagando-se
Que ninguém diria horizonte-
Oriente-orientar,
E mar!
Com as palavras o sobrevoando,
Livres de sentido,
Ensinando às gaivotas, enfim,
O não-
Mergulhar.


QUANDO REPRESENTA A AÇÃO

Algumas palavras mudam de grau
Sem que nada se lhes acrescente.
Por exemplo:
Não é falada,
Mas escrita,
Que a palavra escrever
Exulta e se realiza.

Haverá outras?

Talvez a palavra pintar
Anotada com pincel e tinta.

Haverá outras?

Talvez a palavra sangrar
Realizada por um Pollock
Num dripping
Com um filete de sangue.

Haverá outras?

Não sei, não vou pensar.
Mas uma exceção extrema

Me vem à consciência,
Uma que plena apenas se realiza
Quando não falada nem escrita:
A palavra ausência.


CORRIDA*

A temporalidade
É a minha Atalanta,
E sou seu Hipômenes.
Preciso superá-la na corrida
Porque a quero desposar.
Ela é tão mais veloz...
Jogo-lhe uns pomos de ouro
À frente!
Mas, contra o mito de outrora,
Ela não os nota,
Passa rente sem lhes dar bola...


Guido Reni, Atalanta e Hipômenes, óleo sobre tela, 1616.



* Sobre a história de Atalanta e Hipômenes, ver aqui

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Poemas de Ar Comprimido 2

TERCEIRA PESSOA

Descrer em mim,
Ainda que
Me descrevendo.


INFÂNCIA

A fruta fossilizada,
fosse ainda
o sumo mel...


MONITOR

Não tem este ecrã
a variação luminosa
de uma página de papel:
Aqui fixou-se a manhã,
de forma que a palavra
não se esforça
para não entardecer.

Ademais, e a maciez
da pele que registra
o arrependimento?
Aqui não há.
Meu rascunho
já tem cunho de arte final.
Não transparece
a tatuagem involuntária
da palavra removida,
como no papel que acumula
novas fibras.



EM REDE

Já havia tanto o que pensar
sobre o mundo objetivo
e suas normas e leis sociais.
E agora essa dúvida a mais:
darei crédito a tantos éditos
pessoais?


VALOR

Eu queria ter guardado
aquela hora-horizonte
que foi valiosa e nobre...
Porém, o dia já se vai
e não deixou o segredo
do cofre
de ontem.


EU-OUTRO

Como é difícil simular a alteridade
quando o pensamento ensaia uma ação
contrária, que para efetivar-se
requer prévia ocultação:
não consigo jogar xadrez comigo mesmo
pois para a estratégia que prevejo
já há uma adversária antecipação.

Fosse partida de pôquer
jogaríamos eu e o eu-outro
totalmente a descoberto,
e eu não poderia ser no blefe
mais que eu mesmo esperto.

Mas em se tratando apenas de pensar,
ter comigo mesmo livre conversação,
não ao pé, mas entre os ouvidos,
surgem debatedores desconhecidos,
(sem querer interromper, e já interrompendo)
e monta-se o seminário da alter-multidão.


RECONHECIMENTO

Pensando bem,
o que posso acrescentar ao todo?
Um suplemento elementar,
um apêndice-engodo.


PARTITURA

Onde a pauta, maestro?
Em que claves por as vozes
que de ouvido mal orquestro?


INSANO OFÍCIO

Talvez não me custe imaginar
o que foi a Inquisição:
tenho um tribunal na mente
e lenha já acumulada
na praça do meu coração.


TRAGICOMÉDIA

Quer saber de uma coisa?
Não creio na existência
de um pássaro dionisíaco
que jamais pousa.


CINZA

Dia chuvoso.
Diria o poeta:
céu plúmbeo.

Parece uma síntese
de nuvens antitéticas:
plumas de chumbo.


ÍRIS

Tens olhos
de fundo de xícara.
Vitrificada faiança
com sobra
de doce chá.


Marcantonio,  óleo sobre tela, 2003. (Clique para ampliar)