sexta-feira, 25 de março de 2011
Um Poema em Seis Partes
A IDA
A manhã me desperta,
Resmungona como uma dama da noite,
Exigindo o pagamento dos seus favores.
Tenho o rosto parvo e desiludido
De um adolescente que não sabia dos custos.
A manhã, com olhar oblíquo, cínico
E de sedução forçada, bate o pé e
Levanta a saia para me lembrar
A finalidade do nosso contrato.
Pagarei juntando todos os meus centavos,
Pétalas de flor já desfeita no meu bolso.
Haverá mais amanhã.
2
Aparo as minhas unhas:
Não quero tirar sangue
De outras mãos.
Calço o melhor par de sapatos,
Aquele que oculta o vão
Entre os meus pés e o chão.
Ponho os meus dentes à mostra,
Minha lua segmentada
De que todos querem uma fatia,
Mesmo sob um sol escaldante.
Os óculos! Os óculos!
Sem eles não posso ver
O desespero alheio que me consola.
Pronto. O meu corpo está pronto pra dragar
Os canais assoreados do dia.
3
Urbe et horda.
Está lá fora a hidra de sete cabeças
Multiplicadas em rede de fractais.
Não tenho doze trabalhos a realizar.
Apenas um: sustentar a flor da vontade
Que tomba com cabeleira ensolarada,
A face voltada à sombra memorizada.
Lá vou eu com meu bocado de ardis
Disputado por cães cruéis.
Sigo com a alma içada sobre as ruas,
Personagem ignorado
Dum afresco no topo da nave central
Congestionada de fiéis ou hereges.
Meus olhos aqui e ali aportam
Em alguma ilha fisionômica
(ou cômica):
Uns supercílios ejetados pela dúvida,
Um nariz rebelde, a salina de uma testa,
Uns cabelos que queriam ficar em casa,
Um queixo fugitivo; uma orelha ímpar.
Orelha?
Quando Van Gogh andava pelas ruas de Arles
Era chamado de louco. Fou! Fou! Fou!
Também sou louco, mas quem nota?
Quem sabe da loucura de um cão de Pavlov?
Mas, o meu amado Van Gogh era um ser patético,
(Sabia disso, menina com fones de ouvido?
Sabia? Sabia disso, senhor com óculos escuros?)
Ele era quase desdentado, devia feder
Em suas roupas velhas, em seus sapatos purulentos,
Seus chapéus engordurados de sol.
Em seu quarto cheirando a mofo, soprava teias de aranha.
Sua latrina devia ser fétida. Seu cachimbo tinha nódoas
De tinta seca. Ele nem tinha grana para o fumo.
Um incompetente, o Van Gogh, que largou o amarelo
Para tingir-se de vermelho.
Mas o que tem a ver Van Gogh
Com a faixa de pedestres no sinal de trânsito?
O que tem Van Gogh com serviços bancários
E lugares assépticos com ar condicionado?
O meu estômago nauseado é antiquado,
E inepto para navegações!
Ó amigos argonautas, me despeçam no próximo porto
Desse oceano de gente!
Mas, sigo.
4
Ocorre-me argumento filosófico
Em plena Avenida Rio Branco:
Deve haver um deus
Porque, às vezes, finjo ser ele.
Ou finjo ser o meu pai que me acudia
E morreu sem me consultar?
Prossigo.
5
Tenho o privilégio de saber
De tudo o que não muda nada,
O que não cria atalhos
Para o velo de ouro na área
De trabalho.
Vontade de cuspir uma palavra
Para cada palmo abstrato de chão.
6
Prossigo.
A nuca do ascensorista encaneceu
de susto entre um andar e outro.
Talvez porque ele tenha descoberto
Que era apenas um estranho caronte,
Cordato, pago por atacado.
Os seus dentes foram amarelando
De sorrisos obrigatórios
De tanto dizer bom dia! Boa tarde!
Sobe, desce, sobe, desce!
Todos no elevador olham para o número dos andares
Como se fossem crucifixos em capelas.
Eu não, pois tenho o olfato apurado.
Desembarco e prossigo:
No corredor há uma só porta válida,
As outras são falsas:
Dão para o vazio de outras vidas.
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quarta-feira, 16 de março de 2011
Dois Poema Para Meados de Março
ESPERANDO
Tenho um caderno novo, brochura sem valor,
para encher de versos:
pautas azuladas sobre brancura de dentifrício,
ou do avesso do ovo.
Mas, que garantia há de que esses pássaros adventícios
virão empoleirar-se nas linhas?
Talvez não convenha dizer poleiros,
que sugerem norma ou conduta
de apresentar-se de boa vontade
e no tempo propício.
Melhor seria supor este caderno barato
um aparato de astúcia,
artifício, isca, rede ou arapuca
para pássaros não cordatos, ariscos.
Então essas páginas se abrem ao espaço aéreo?
Seriam rarefeitos os caminhos para a captura das letras
neste território que em urdidura as constrange?
Preferia pensar esta folha um terreno de mistério
fecundo, um habitat já com seus seres ocultos,
e o diria um mangue
para escapar à imagem gasta da semente
que em si já traz a árvore latente.
Portanto, identificaria os versos aos caranguejos:
quem sabe se já estão aqui e não os vejo,
enfronhados na lama branca?
Mas até onde teria de mergulhar os braços neste nada
para trazer à luz uma de tais criaturas articuladas
e com grandes tenazes-lanças?
Sim, eu sei: este solo alvo não é movediço,
e talvez venha ao caso sonhar o mais difícil:
sejam estas folhas francas estradas
com pavimento de mármore, emendadas
em outras vias, uma invisível extensão
do mesmo plano, mas em diverso chão
(talvez, estradas das quais kerouac algum
jamais tenha feito um haibun),
e por elas chegarão os versos, viajantes famintos.
Mas, em se tratando de estradas,
teriam dois sentidos, dupla mão.
Assim, não conviriam:
como são inconstantes, mesmo andarilhos,
poderiam inverter seu caminho os versos,
ou ainda fugirem por sentido transverso.
Hei de esperar novamente
por versos que viriam de cima
para o plano deste caderno
oblíqua ou verticalmente?
Ora, por que não imaginar na verticalidade
um meio termo entre ascensão e pouso,
forma elevada de repouso:
uma construção?
Quem sabe já não estariam aqui
tão claras a planta e a fundação?
Mas aonde eu buscaria o material
para firmes colunas e vigas
que não estão no papel?
E como abrir poético umbral
sem um metafórico dintel?
O que sustentaria de firmamento
sobre a minha extensa planura,
refletindo-se exata na folha pura,
senão um abstrato monumento
ou uma casa escura para o vento?
Não podendo nada construir, edificar,
restaria, quem sabe, corroer o próprio solo,
e o degradar?
Melhor lançar sobre o papel a única palavra
em mim retida: a acidulada palavra silêncio.
Que ela, sem mais demora, se entremeie às fibras!
Que prossiga escavando, fuinha corrosiva,
até que fure a contracapa colada na face da vida,
vazando como palavra úlcera ou, mais eufêmica,
palavra ferida.
NA PRAÇA
Estátua equestre,
ríspido pombal.
Na mão erguida
aguda espada
contra o céu.
Lavoura aérea
de óxidos,
dorme o sono
cinzelado
de condottiere
deserdado
e ao léu.
Marcantonio
Tenho um caderno novo, brochura sem valor,
para encher de versos:
pautas azuladas sobre brancura de dentifrício,
ou do avesso do ovo.
Mas, que garantia há de que esses pássaros adventícios
virão empoleirar-se nas linhas?
Talvez não convenha dizer poleiros,
que sugerem norma ou conduta
de apresentar-se de boa vontade
e no tempo propício.
Melhor seria supor este caderno barato
um aparato de astúcia,
artifício, isca, rede ou arapuca
para pássaros não cordatos, ariscos.
Então essas páginas se abrem ao espaço aéreo?
Seriam rarefeitos os caminhos para a captura das letras
neste território que em urdidura as constrange?
Preferia pensar esta folha um terreno de mistério
fecundo, um habitat já com seus seres ocultos,
e o diria um mangue
para escapar à imagem gasta da semente
que em si já traz a árvore latente.
Portanto, identificaria os versos aos caranguejos:
quem sabe se já estão aqui e não os vejo,
enfronhados na lama branca?
Mas até onde teria de mergulhar os braços neste nada
para trazer à luz uma de tais criaturas articuladas
e com grandes tenazes-lanças?
Sim, eu sei: este solo alvo não é movediço,
e talvez venha ao caso sonhar o mais difícil:
sejam estas folhas francas estradas
com pavimento de mármore, emendadas
em outras vias, uma invisível extensão
do mesmo plano, mas em diverso chão
(talvez, estradas das quais kerouac algum
jamais tenha feito um haibun),
e por elas chegarão os versos, viajantes famintos.
Mas, em se tratando de estradas,
teriam dois sentidos, dupla mão.
Assim, não conviriam:
como são inconstantes, mesmo andarilhos,
poderiam inverter seu caminho os versos,
ou ainda fugirem por sentido transverso.
Hei de esperar novamente
por versos que viriam de cima
para o plano deste caderno
oblíqua ou verticalmente?
Ora, por que não imaginar na verticalidade
um meio termo entre ascensão e pouso,
forma elevada de repouso:
uma construção?
Quem sabe já não estariam aqui
tão claras a planta e a fundação?
Mas aonde eu buscaria o material
para firmes colunas e vigas
que não estão no papel?
E como abrir poético umbral
sem um metafórico dintel?
O que sustentaria de firmamento
sobre a minha extensa planura,
refletindo-se exata na folha pura,
senão um abstrato monumento
ou uma casa escura para o vento?
Não podendo nada construir, edificar,
restaria, quem sabe, corroer o próprio solo,
e o degradar?
Melhor lançar sobre o papel a única palavra
em mim retida: a acidulada palavra silêncio.
Que ela, sem mais demora, se entremeie às fibras!
Que prossiga escavando, fuinha corrosiva,
até que fure a contracapa colada na face da vida,
vazando como palavra úlcera ou, mais eufêmica,
palavra ferida.
NA PRAÇA
Estátua equestre,
ríspido pombal.
Na mão erguida
aguda espada
contra o céu.
Lavoura aérea
de óxidos,
dorme o sono
cinzelado
de condottiere
deserdado
e ao léu.
Marcantonio
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domingo, 6 de março de 2011
Mais Dois Poemas
COLEÓPTEROS
Não posso falar dos animais da savana africana:
para mim eles têm a vida plana
das ilustrações ou das imagens de TV.
Quando no zoológico,
são episódicos,
parciais
e tristes. Vestidos a caráter para as tardes
de domingo.
O que posso falar dos cavalos?
Puxavam carroças de feira
pelas ruas estreitas da minha infância.
Eram boçais e cabisbaixos aqueles cavalos pardos.
Não tinham o mistério e a altivez das bestas de Géricault.
Desde então, é raro ver algum de perto:
vez ou outra um atravessa, surrealista,
qualquer via urbana perto da minha casa,
ainda cabisbaixos, parecem perdidos sem suas carroças.
De seus irmãos do turfe eu só poderia falar em teoria,
tão distantes de mim quanto os animais da savana africana.
E os bovídeos? Pouco a dizer sobre eles:
ruminam enjoados nos pastos da metáfora
sobre rebanhos humanos.
Talvez sejam os melhores amigos do homem,
quando nos frequentam em postas, sanduíches
e caixinhas tetra pak.
De cães e gatos domésticos o que falar?
Já não são exatamente bichos
nem interessam às minhas fábulas:
ocupam algum status de humanidade
situado entre as crianças
e as coleções de selos.
Aves?
As mais próximas são os pombos. Já são tão vulgares
vivendo entre os telhados e as calçadas.
Nem se restringem mais às praças
onde sonhavam ser condores... Dizem que perturbam
a pax urbana.
Um bicho que eu prezasse mesmo
e do qual quisesse falar
teria de ser estranho, excêntrico, embora real,
tal qual um iguana espartano
que certa vez flagrei no meu quintal:
forma de vida na fronteira entre dois reinos,
planta? Animal?
Era o meu camaleão com defeito
no mecanismo de sintonia de cores.
Mas a sua paciente (ou assustada) imobilidade
me incomodou como um tipo de carapuça
que eu deveria vestir.
Os bombeiros o recolheram.
Mas admiro mesmo os coleópteros
assustadores com sua blindagem existencial
(com a exceção das joaninhas, dóceis bijuterias).
Quando surge um besouro
no meu território de eremita,
é como um marcador vivo
entre as páginas do meu silêncio,
uma aparição mista de dragão e guerreiro.
Dá gosto de vê-lo em sua indiferença
de broche de basalto,
de pequeno mostro inofensivo, mas injustiçado:
Mas que outro ser é tão terreno
e capaz de atravessar o dia
como um signo terrífico da noite
que entre as patas carrega o sol?
NA FACE DO EDIFÍCIO
Toda janela
Seria um óculo?
Uma cavidade ocular?
Toda janela
Seria o obturador
De uma câmara habitada?
Seriam olhos vazados
As janelas escuras
Dos cômodos desabitados?
Não posso falar dos animais da savana africana:
para mim eles têm a vida plana
das ilustrações ou das imagens de TV.
Quando no zoológico,
são episódicos,
parciais
e tristes. Vestidos a caráter para as tardes
de domingo.
O que posso falar dos cavalos?
Puxavam carroças de feira
pelas ruas estreitas da minha infância.
Eram boçais e cabisbaixos aqueles cavalos pardos.
Não tinham o mistério e a altivez das bestas de Géricault.
Desde então, é raro ver algum de perto:
vez ou outra um atravessa, surrealista,
qualquer via urbana perto da minha casa,
ainda cabisbaixos, parecem perdidos sem suas carroças.
De seus irmãos do turfe eu só poderia falar em teoria,
tão distantes de mim quanto os animais da savana africana.
E os bovídeos? Pouco a dizer sobre eles:
ruminam enjoados nos pastos da metáfora
sobre rebanhos humanos.
Talvez sejam os melhores amigos do homem,
quando nos frequentam em postas, sanduíches
e caixinhas tetra pak.
De cães e gatos domésticos o que falar?
Já não são exatamente bichos
nem interessam às minhas fábulas:
ocupam algum status de humanidade
situado entre as crianças
e as coleções de selos.
Aves?
As mais próximas são os pombos. Já são tão vulgares
vivendo entre os telhados e as calçadas.
Nem se restringem mais às praças
onde sonhavam ser condores... Dizem que perturbam
a pax urbana.
Um bicho que eu prezasse mesmo
e do qual quisesse falar
teria de ser estranho, excêntrico, embora real,
tal qual um iguana espartano
que certa vez flagrei no meu quintal:
forma de vida na fronteira entre dois reinos,
planta? Animal?
Era o meu camaleão com defeito
no mecanismo de sintonia de cores.
Mas a sua paciente (ou assustada) imobilidade
me incomodou como um tipo de carapuça
que eu deveria vestir.
Os bombeiros o recolheram.
Mas admiro mesmo os coleópteros
assustadores com sua blindagem existencial
(com a exceção das joaninhas, dóceis bijuterias).
Quando surge um besouro
no meu território de eremita,
é como um marcador vivo
entre as páginas do meu silêncio,
uma aparição mista de dragão e guerreiro.
Dá gosto de vê-lo em sua indiferença
de broche de basalto,
de pequeno mostro inofensivo, mas injustiçado:
de apenas imaginar o contato
das patas de um escaravelho,
as almas sensíveis já se arrepiam.
Mas que outro ser é tão terreno
e capaz de atravessar o dia
como um signo terrífico da noite
que entre as patas carrega o sol?
NA FACE DO EDIFÍCIO
Toda janela
Seria um óculo?
Uma cavidade ocular?
Toda janela
Seria o obturador
De uma câmara habitada?
Seriam olhos vazados
As janelas escuras
Dos cômodos desabitados?
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sábado, 26 de fevereiro de 2011
Dois Poemas
FIXIDEZ
Tu sabes não é mesmo? Tu sabes perfeitamente
quanto seria bom nada ter a dizer:
a alma tornada assim, de súbito, uma árvore,
ou a carcaça de um velho automóvel
num ferro-velho.
A árvore nada fala, é o vento que farfalha
entre as folhas
que em conjunto nunca foram os cabelos
despenteados da árvore.
As folhas sempre foram sempre foram... Folhas.
Certamente tu jamais as perceberas como tais
antes que caíssem.
E bem sabes que se o vento trouxesse uma folha
ao teu quarto, dirias: de onde veio esse anjo?
Sim, porque perceberas primeiro que os anjos caem,
e talvez a copa de uma árvore seja uma das inúmeras
formas que o céu pode assumir.
Ocorre que os anjos têm asas e as folhas não;
e se os anjos caem é porque perderam as asas
em algum tipo de outono,
ou espécie de muda, num ciclo inverso ao das borboletas
oriundas de lagartas. Caem os anjos em casulos de sono
e acordam lagartas.
E não é fato que lagartas habitam as arvores?
Por isso é até admissível que uma copa frondosa
possa ser uma subespécie de céu,
mas não que uma folha seja um anjo,
pois estes se alimentam de folhas verdes e tenras.
Enfim, até aqui sabemos
que os anjos caídos já não são mais anjos
assim como a folha caída já não é mais árvore.
Mas entendo o teu pensamento: a folha é uma carta
enviada pela vida à atmosfera asséptica do teu quarto
de onde retiras todos os sinais invasivos da morte
sem perceberes que a morte é também maníaca por limpeza.
Então a folha que entrasse pela janela
seria realmente a anunciação, não de algum nascimento,
mas de uma perda que macula o teu chão.
Considera, porém: se a entrega dessa carta é feita pelo vento,
este não seria Zéfiro,
E sim Hermes que tinha asas presas aos tornozelos
e não às costas como os anjos.
Vê como é difícil escapar dos anjos, das asas, dos carteiros
e dos resíduos da morte?
Suponho que, irritado, jogarias essa folha no vaso sanitário
e a verias sumir por obra de uma sonora descarga.
Talvez assim a folha ex machina se tornasse um peixe!
Eu juro que não pretendera dizer desde o início
que as folhas sempre foram sempre foram... Peixes!
Embora pudesse agradar à alma que teima em muito dizer,
dizer também que a copa de uma árvore é todo um cardume
de peixes secos, pendurados e farfalhentos.
Ora, isso seria um absurdo mesmo para uma alma insana:
afinal, o que comeriam os anjos? Peixes?
Ah, que tipo de mutação constante suportaria a folha
dessa árvore quase genealógica, quase taxonômica?
Não, eu pretendera dizer mesmo que folhas sempre foram
apenas folhas.
Eis porque nós dois sabemos o quanto seria bom
se a alma se tornasse fixa como uma árvore
que delegasse a eloqüência transitiva ao vento
farfalhando entre as folhas apenas folhas.
Oh, eu me esqueci da carcaça de automóvel no ferro-velho
pela qual falam os óxidos e as intempéries,
assim como fala o vento nas árvores!
Havia tanto a dizer sobre essa carcaça... Mas, ela se basta.
COLORAÇÕES
A pele porosa
Filtra a ganga
De óxidos
Dolentes.
Apenas aglutino
O pigmento
Que se origina
No ambiente.
A boca franca
Restitui
Água-tinta
Impermanente.
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segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
Três Poemas
HIDROLATRIA
Cristais de sal
a memória:
conserva a vida
desidratada.
Ressequido
anseio o mar:
memória diluída
n’água.
DIAGNOSE
Tu achas que sou triste?
Será em razão de haver na água dos meus olhos
fragmentos do solo das luas que jamais viste?
Ou deve-se ao ar de mistério que sai das minhas narinas
aquecido por um sol que nunca raiou noutro hemisfério?
Talvez seja porque me fuja da boca um rio afluente
De sílabas que vez alguma me retornou da foz alheia.
Ou porque as minhas mãos não saibam como plantar
uma árvore na fronteira entre o outono e a primavera.
Não há fronteira exata entre o outono e a primavera?!
Talvez esse seja o motivo.
Ou então porque a estrutura óssea dos meus pés
Não seja apropriada para caminhar sobre um solo
Feito de farelo de ossos.
Afora isso,
Não sei qual a razão de achares que sou tão triste.
amplos
e
separados
campos
de cor
azul crença
de
céu
vermelho carne
avesso
incréu
ocre terreno
ao léu
espelho
vindouro
amarelo anel
anelo
d’ouro
insólito
eloqüente
solvendo
-se
no vácuo
logos
silente
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terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
Quatro Poemas de Meados de Fevereiro
ASFIXIAR-SE
[Publicado também em OGATODAODETE]
Estou exausto.
Corri para selar
todas as entradas do poema
antes que o mundo a ele retornasse.
Preguei madeiras em todas as portas,
janelas.
Vedei com cera cada fresta.
E os ralos. Sim! Sobretudo os ralos!
Não sei quanto ar ainda me resta.
EDÊNICO
Cidade pequena,
Pequena cidade,
Os olhares
Das tuas janelas
Querem me desnudar.
Mas por que me devo
Envergonhar
Com essa falta de siso
Se sempre quis voltar
Nu ao paraíso?
VANTAGEM
Vontade de me ver virando uma esquina
E me dar uns quinze minutos de dianteira,
Para que, ainda que eu vá no meu encalço,
Já não me encontre mais pela vida inteira.
BERCEUSE
Em pé na orla. Olhos fechados.
O horizonte me sopra a face.
O horizonte me chega às narinas.
O horizonte murmura aos ouvidos.
O horizonte envolve os meus pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia fui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
[Publicado também em OGATODAODETE]
Estou exausto.
Corri para selar
todas as entradas do poema
antes que o mundo a ele retornasse.
Preguei madeiras em todas as portas,
janelas.
Vedei com cera cada fresta.
E os ralos. Sim! Sobretudo os ralos!
Não sei quanto ar ainda me resta.
EDÊNICO
Cidade pequena,
Pequena cidade,
Os olhares
Das tuas janelas
Querem me desnudar.
Mas por que me devo
Envergonhar
Com essa falta de siso
Se sempre quis voltar
Nu ao paraíso?
VANTAGEM
Vontade de me ver virando uma esquina
E me dar uns quinze minutos de dianteira,
Para que, ainda que eu vá no meu encalço,
Já não me encontre mais pela vida inteira.
BERCEUSE
Em pé na orla. Olhos fechados.
O horizonte me sopra a face.
O horizonte me chega às narinas.
O horizonte murmura aos ouvidos.
O horizonte envolve os meus pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia fui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
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domingo, 6 de fevereiro de 2011
Três Poemas No Início de Fevereiro
ESPERANÇA E MEDO
Você permanece uma manhã brilhante
Engastada no meu peito que entardecia,
Então todos os pássaros do meu mundo
Não fazem senão saudar a sua chegada.
Toda essa seiva de sol sempre nascente,
Inoculada nas minhas veias viciadas
No fluxo mortiço das horas nubladas,
Talvez signifique que este súbito apego
À vida jamais se oxidará no meu corpo.
É por tanto que temo que esse encontro
Embriagado da aurora com o crepúsculo,
Se atire de peito aberto, suicida precoce,
Alucinado, sobre a lâmina afiada da noite.
PLANALTO
Do alto de mim
Observo-me:
Tal servo da terra,
Das coisas.
Do alto de mim
Observo-me:
Severo espectro
Com olho de pássaro
Adicto ao mundo.
Pastor de perguntas
Mancas, erradias,
Desgarradas das trilhas
Dos costumes.
Do alto de mim,
Megafone em punho,
Espantalho de gestos
Desesperados,
Figurante de cenas
Não filmadas,
Locutor de mensagens
Cifradas,
Encenador habitual
De fantasmagorias,
Este que se altera
No alto de mim,
Guarda de trânsito
Multando-me os sonhos
Estacionados
Nas amplas calçadas
Sem transeuntes
Que há sob mim.
SUSPENSÃO DE JUÍZO
Não busco mais definições.
Apenas observo a cortina
Esvoaçando
Contra o frontispício do mundo.
Decididamente não busco mais
Teoremas.
Descuido-me enfim dos adjetivos
Dos pronomes retos, oblíquos
E demonstrativos.
Somos artigos indefinidos:
Eu, tu, ele... Nós? Quem sois vós?
Vozes passivas ou reflexivas,
Expelimos grunhidos.
E o particípio morrendo?
E o gerúndio vivido?
Patéticos,
Nós, postos, opostos,
Ainda recorrendo
Ao superlativo absoluto sintético.
Mas que sujeito ainda se perderia
Na absoluta síntese?
Você permanece uma manhã brilhante
Engastada no meu peito que entardecia,
Então todos os pássaros do meu mundo
Não fazem senão saudar a sua chegada.
Toda essa seiva de sol sempre nascente,
Inoculada nas minhas veias viciadas
No fluxo mortiço das horas nubladas,
Talvez signifique que este súbito apego
À vida jamais se oxidará no meu corpo.
É por tanto que temo que esse encontro
Embriagado da aurora com o crepúsculo,
Se atire de peito aberto, suicida precoce,
Alucinado, sobre a lâmina afiada da noite.
PLANALTO
Do alto de mim
Observo-me:
Tal servo da terra,
Das coisas.
Do alto de mim
Observo-me:
Severo espectro
Com olho de pássaro
Adicto ao mundo.
Pastor de perguntas
Mancas, erradias,
Desgarradas das trilhas
Dos costumes.
Do alto de mim,
Megafone em punho,
Espantalho de gestos
Desesperados,
Figurante de cenas
Não filmadas,
Locutor de mensagens
Cifradas,
Encenador habitual
De fantasmagorias,
Este que se altera
No alto de mim,
Guarda de trânsito
Multando-me os sonhos
Estacionados
Nas amplas calçadas
Sem transeuntes
Que há sob mim.
SUSPENSÃO DE JUÍZO
Não busco mais definições.
Apenas observo a cortina
Esvoaçando
Contra o frontispício do mundo.
Decididamente não busco mais
Teoremas.
Descuido-me enfim dos adjetivos
Dos pronomes retos, oblíquos
E demonstrativos.
Somos artigos indefinidos:
Eu, tu, ele... Nós? Quem sois vós?
Vozes passivas ou reflexivas,
Expelimos grunhidos.
E o particípio morrendo?
E o gerúndio vivido?
Patéticos,
Nós, postos, opostos,
Ainda recorrendo
Ao superlativo absoluto sintético.
Mas que sujeito ainda se perderia
Na absoluta síntese?
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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
Dois Poemas
UM E OUTRO
Quando escrevo,
um barco afasta-se do ancoradouro,
uma enxada crava-se na terra,
ou uma vindima se inicia.
Mas não são as minhas mãos
que movem o leme,
manejam a enxada
ou recolhem os frutos ao cesto.
Não são estas mesmas mãos
que me fazem a barba,
que seguram os talheres,
que contam moedas.
Tampouco os olhos que acompanham
a pesca ou a semeadura ou a fermentação
das palavras,
são estes mesmos em mim já habituados
à ortogonia do cotidiano
e suas paisagens de alvenaria.
Quando escrevo, nem o dia é mais aquele
que só teve uma aurora,
as horas perdem espessura
e se guardam em fascículos,
e uma parte rarefeita de mim
foge pelos micro-exaustores dos segundos
para um dia sem geometria,
enquanto, outra parte, permaneço
no anverso do momento,
sentado à mesa banal
com uma caneta na mão
sobre uma folha de papel inerte:
pele a ser rompida a partir do avesso
ou mármore a ser entalhado
por dentro.
ÚLTIMO DE SUA ESPÉCIE
Imagino que todo o mundo visível
estreitara-se aos teus olhos dormentes
numa faixa claustrofóbica
de relevos embaçados:
teu friso final de Partenon.
Ali tu indicaras alguma coisa, uma visão
uma memória.
Como interpretar teu último gesto,
solitário representante de uma espécie em extinção?
A- Se tua mão, pomba assustada, se erguera,
dedos abertos, asas tortas e espalmadas, trêmula no ar,
e se contraíra na metamorfose de outro ser alado
em torno do indicador, súbito bico de colibri
parado no ar para... Para quê? Sugar a última seiva
das entranhas expostas da flor do horizonte
esmagada entre o céu e a terra?
B- Talvez pudesses ouvir um coro de anjos,
desejoso de acompanhar com o dedo
as notas saltitando numa partitura invisível.
C- Quem sabe não seria um único anjo a se se aproximar,
confirmando que de fato usa um capuz
e traz uma foice ao ombro?
D- Ou tentavas tocar os ponteiros de um relógio
para retrocedê-los a um ponto virgem
do mostrador?
E- Seria aquele túnel? O tal túnel, o famigerado túnel.
F- Ou a descoberta de algo que não deverias deixar para trás,
aquele rosto redivivo, aquele amor não vivido,
algum erro irreparável?
G- Seria possível que tudo voltasse subitamente, de uma só vez
a vida em roldão, uma onda concentrada, embriagante,
um anestésico?
H- Seria apenas o botão liga/desliga? Off: já é hora
de dormir.
Foi quando reparei na tua outra mão
que se agarrara a tua própria coxa.
Ela não era um pássaro, era talvez um ser terrestre
com fortes mandíbulas, e que não queria partir.
Então, o último suspiro,
a devolução do beijo roubado à vida,
e a mão direita abatida em pleno ar.
Teus olhos já na tinham velas
e o mar parara.
Tua cabeça já era um fruto sem polpa.
Na testa uma tatuagem que começava
a se apagar com o fim de todas as perguntas.
E eu fiquei um hermeneuta impossível
do teu último gesto.
Quando escrevo,
um barco afasta-se do ancoradouro,
uma enxada crava-se na terra,
ou uma vindima se inicia.
Mas não são as minhas mãos
que movem o leme,
manejam a enxada
ou recolhem os frutos ao cesto.
Não são estas mesmas mãos
que me fazem a barba,
que seguram os talheres,
que contam moedas.
Tampouco os olhos que acompanham
a pesca ou a semeadura ou a fermentação
das palavras,
são estes mesmos em mim já habituados
à ortogonia do cotidiano
e suas paisagens de alvenaria.
Quando escrevo, nem o dia é mais aquele
que só teve uma aurora,
as horas perdem espessura
e se guardam em fascículos,
e uma parte rarefeita de mim
foge pelos micro-exaustores dos segundos
para um dia sem geometria,
enquanto, outra parte, permaneço
no anverso do momento,
sentado à mesa banal
com uma caneta na mão
sobre uma folha de papel inerte:
pele a ser rompida a partir do avesso
ou mármore a ser entalhado
por dentro.
ÚLTIMO DE SUA ESPÉCIE
Imagino que todo o mundo visível
estreitara-se aos teus olhos dormentes
numa faixa claustrofóbica
de relevos embaçados:
teu friso final de Partenon.
Ali tu indicaras alguma coisa, uma visão
uma memória.
Como interpretar teu último gesto,
solitário representante de uma espécie em extinção?
A- Se tua mão, pomba assustada, se erguera,
dedos abertos, asas tortas e espalmadas, trêmula no ar,
e se contraíra na metamorfose de outro ser alado
em torno do indicador, súbito bico de colibri
parado no ar para... Para quê? Sugar a última seiva
das entranhas expostas da flor do horizonte
esmagada entre o céu e a terra?
B- Talvez pudesses ouvir um coro de anjos,
desejoso de acompanhar com o dedo
as notas saltitando numa partitura invisível.
C- Quem sabe não seria um único anjo a se se aproximar,
confirmando que de fato usa um capuz
e traz uma foice ao ombro?
D- Ou tentavas tocar os ponteiros de um relógio
para retrocedê-los a um ponto virgem
do mostrador?
E- Seria aquele túnel? O tal túnel, o famigerado túnel.
F- Ou a descoberta de algo que não deverias deixar para trás,
aquele rosto redivivo, aquele amor não vivido,
algum erro irreparável?
G- Seria possível que tudo voltasse subitamente, de uma só vez
a vida em roldão, uma onda concentrada, embriagante,
um anestésico?
H- Seria apenas o botão liga/desliga? Off: já é hora
de dormir.
Foi quando reparei na tua outra mão
que se agarrara a tua própria coxa.
Ela não era um pássaro, era talvez um ser terrestre
com fortes mandíbulas, e que não queria partir.
Então, o último suspiro,
a devolução do beijo roubado à vida,
e a mão direita abatida em pleno ar.
Teus olhos já na tinham velas
e o mar parara.
Tua cabeça já era um fruto sem polpa.
Na testa uma tatuagem que começava
a se apagar com o fim de todas as perguntas.
E eu fiquei um hermeneuta impossível
do teu último gesto.
Friso interior do Partenon (detalhe) - Museu Britânico, Londres |
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quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
O Bigode de Nietzsche e Mais Dois Poemas
O BIGODE DE NIETZSCHE
Parece haver algo
De um estranho sorriso
No bigode de Nietzsche.
O bigode de Nietzsche
Parece um arco ogival
Sobre o abismo.
O bigode de Nietzsche
Parece um desejo
Involuntário de calar.
O bigode de Nietzsche
Parece
Sombrear um segredo
De antes do meio-dia.
O bigode de Nietzsche
Parece uma esponja
Umedecida em vinagre.
O bigode de Nietzsche
Parece martelar
Seu queixo.
O bigode de Nietzsche
Parece um viajante
Solitário
Que chega à cidade
Antes que Nietzsche.
O bigode de Nietzsche
Parece transcendê-lo,
Metafísico.
O bigode de Nietzsche
Parece augurar
Sua loucura
Às caricaturas.
O bigode de Nietzsche
Parece ao senso comum
A orelha-de-van-gogh
De Nietzsche.
O bigode de Nietzsche
Parece dizer a Nietzsche:
In hoc signo vinces.
O bigode de Nietzsche
Parece uma túnica
De corifeu.
Ou uma máscara
Humana
De Dioniso.
FALTAM OS NEXOS
Na atmosfera do museu,
Meus artefatos convivem,
Como inimigos civilizados.
Sou um arqueólogo triste
Das primeiras camadas
De um dia que entardece,
Lá, naquele terreno extinto
Das horas enterradas vivas;
Lá, onde todos os utensílios
Tinham nexos espontâneos,
Os mesmos nós que emendam
As águas soltas num rio,
Ou o potente adesivo
Que adere a flor ao ar.
O SINAL
O sol às vezes me acorda
Tocando-me a face
Com um beijo de Judas.
Parece haver algo
De um estranho sorriso
No bigode de Nietzsche.
O bigode de Nietzsche
Parece um arco ogival
Sobre o abismo.
O bigode de Nietzsche
Parece um desejo
Involuntário de calar.
O bigode de Nietzsche
Parece
Sombrear um segredo
De antes do meio-dia.
O bigode de Nietzsche
Parece uma esponja
Umedecida em vinagre.
O bigode de Nietzsche
Parece martelar
Seu queixo.
O bigode de Nietzsche
Parece um viajante
Solitário
Que chega à cidade
Antes que Nietzsche.
O bigode de Nietzsche
Parece transcendê-lo,
Metafísico.
O bigode de Nietzsche
Parece augurar
Sua loucura
Às caricaturas.
O bigode de Nietzsche
Parece ao senso comum
A orelha-de-van-gogh
De Nietzsche.
O bigode de Nietzsche
Parece dizer a Nietzsche:
In hoc signo vinces.
O bigode de Nietzsche
Parece uma túnica
De corifeu.
Ou uma máscara
Humana
De Dioniso.
FALTAM OS NEXOS
Na atmosfera do museu,
Meus artefatos convivem,
Como inimigos civilizados.
Sou um arqueólogo triste
Das primeiras camadas
De um dia que entardece,
Lá, naquele terreno extinto
Das horas enterradas vivas;
Lá, onde todos os utensílios
Tinham nexos espontâneos,
Os mesmos nós que emendam
As águas soltas num rio,
Ou o potente adesivo
Que adere a flor ao ar.
O SINAL
O sol às vezes me acorda
Tocando-me a face
Com um beijo de Judas.
Friedrich Nietzsche, jovem. |
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sábado, 15 de janeiro de 2011
Janeiro pelo Meio, Três Novos Poemas
TOM SOBRE TOM
O eu é o pronome mais opaco.
Tinta saturada de pigmento,
Pode cobrir uniformemente
A camada chamada mundo.
Chega um ponto, entretanto,
Em que ele não poderá mais
Ser aplicado de forma distinta,
Embora possa produzir texturas
Por acumulação de mesmice:
Serão grumos, calos, sulcos,
Sombras na superfície pleonástica
De uma mesmo cor. Matiz infeliz?
ASSIM FOI
Alguma coisa assim
De passos metafísicos
De formigas sem olfato
Caminhando sobre o açúcar;
De pasmo de abelhas
Deprimidas em colméias
Dietéticas.
No solo
Sombras de nuvens:
A barca tão plana e móvel
De quase-crepúsculos
Sobre a paisagem.
Na água
A lua enrugada,
Luar senil.
E ao longe
A ríspida oração de tudo
Que não está no meu âmbito,
Aquelas montanhas pairantes,
Aquela liga de estrelas,
Aquele espelho inundado de silêncio,
E a palavra não indigitada
Por uma mão divina
Já revogada sobre todas as coisas.
ALUCINADO
Não raro, sinto-me como se delirasse
Ao ver todas as coisas exatamente
Como os outros dizem que elas são.
O eu é o pronome mais opaco.
Tinta saturada de pigmento,
Pode cobrir uniformemente
A camada chamada mundo.
Chega um ponto, entretanto,
Em que ele não poderá mais
Ser aplicado de forma distinta,
Embora possa produzir texturas
Por acumulação de mesmice:
Serão grumos, calos, sulcos,
Sombras na superfície pleonástica
De uma mesmo cor. Matiz infeliz?
ASSIM FOI
Alguma coisa assim
De passos metafísicos
De formigas sem olfato
Caminhando sobre o açúcar;
De pasmo de abelhas
Deprimidas em colméias
Dietéticas.
No solo
Sombras de nuvens:
A barca tão plana e móvel
De quase-crepúsculos
Sobre a paisagem.
Na água
A lua enrugada,
Luar senil.
E ao longe
A ríspida oração de tudo
Que não está no meu âmbito,
Aquelas montanhas pairantes,
Aquela liga de estrelas,
Aquele espelho inundado de silêncio,
E a palavra não indigitada
Por uma mão divina
Já revogada sobre todas as coisas.
ALUCINADO
Não raro, sinto-me como se delirasse
Ao ver todas as coisas exatamente
Como os outros dizem que elas são.
![]() |
Marcantonio, Hierarquia Relativa, Téc. Mista (2005) (Clique na imagem para vê-la ampliada) Outras imagens minhas Aqui |
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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011
NOVOS POEMAS
ELES
Ah, os especialistas
E suas listas de dogmas.
Ah, os especialistas
E seus dogs raivosos
Em prontidão.
Ah, os especialistas
Com o cu na mão.
Os especialistas
E suas problemáticas
E seus conta-gotas
E sua secura desértica.
Ah, os especialistas
E seu tédio mecânico.
Os especialistas
E sua ignorância
Em pânico.
Os especialistas
E seu vinhos azedos,
Sua contenção urinária,
Seu medo
De sujar as calças raras.
Os especialistas
E seus feudos-segredos.
ASSALTO
É a própria vida
com suas tropas de assalto,
esmurrando a porta:
- Vamos levar algo de ti.
- Não!
- Ordens superiores!
Não me tranqüilizo
pelo saldo de balanço
da esperança:
amanhã eles voltarão
derrubando a porta.
VERBI GRATIA
1- De dentro
Sinto o caos,
Mas não posso descrevê-lo:
Precisaria ter de mim mesmo
A perspectiva do outro.
2- Dormência
Meu sonho entrevado,
em decúbito dorsal,
com escaras
nas asas dormentes.
3- Nunca consumado
Ó filosofia,
eu apenas te bolino
em intermináveis preliminares.
Ah, os especialistas
E suas listas de dogmas.
Ah, os especialistas
E seus dogs raivosos
Em prontidão.
Ah, os especialistas
Com o cu na mão.
Os especialistas
E suas problemáticas
E seus conta-gotas
E sua secura desértica.
Ah, os especialistas
E seu tédio mecânico.
Os especialistas
E sua ignorância
Em pânico.
Os especialistas
E seu vinhos azedos,
Sua contenção urinária,
Seu medo
De sujar as calças raras.
Os especialistas
E seus feudos-segredos.
ASSALTO
É a própria vida
com suas tropas de assalto,
esmurrando a porta:
- Vamos levar algo de ti.
- Não!
- Ordens superiores!
Não me tranqüilizo
pelo saldo de balanço
da esperança:
amanhã eles voltarão
derrubando a porta.
VERBI GRATIA
1- De dentro
Sinto o caos,
Mas não posso descrevê-lo:
Precisaria ter de mim mesmo
A perspectiva do outro.
2- Dormência
Meu sonho entrevado,
em decúbito dorsal,
com escaras
nas asas dormentes.
3- Nunca consumado
Ó filosofia,
eu apenas te bolino
em intermináveis preliminares.
Rembrandt, A Aula da Anatomia do Dr. Tulp, 1632 |
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sábado, 1 de janeiro de 2011
Três Poemas no Primeiro Dia do Ano
COMUM
Sentado de frente para o mar
Não espero uma mensagem terrível;
Ele jamais a trará.
Já não temo abismos e maremotos
Nem a desafiadora escuridão
Que dominava o fundo remoto;
Pois o mar agora é somente planura
Como plano é o mundo,
Isento de loucura.
As nuvens ascendem
Como letreiros de um filme.
Não há mais diários de náufragos,
Ou o terror inconfessável
Vivido entre o zarpar e o aportar.
Nada de náuseas a bordo,
Sorvedouros, arrecifes e míticas fráguas;
Pois o mar agora é sólida planície
Como plano é o mundo,
E nada há de incomum
Em andar sobre as águas.
INCOMUM
Tenho medo de ver um morto,
Duas asas de pássaro
Sem corpo de pássaro,
Uma raiz sublevada no deserto
Como se fosse uma copa nua,
Umas conchas a quilômetros
De distância do mar.
Um morto:
Uma chave que não serve
Em mil fechaduras,
Uma nuvem recortada do céu
Que baixasse ao centro da cidade,
Um velocímetro sem ponteiro.
Um morto:
Um veleiro num vale seco,
Um dicionário sem ordem alfabética,
Uma criança que nunca mentiu,
Um cálice cheio de esterco.
Um iguana estático sobre a mesa do almoço.
Um morto.
EXTRAORDINÁRIO
O teu sorriso
Surge com a velocidade
Da luz.
O teu sorriso
É a ilustração rara,
Ardente iluminura,
Que eu tanto procurara
Para um poema
Que jamais serei
Capaz de escrever.
Sentado de frente para o mar
Não espero uma mensagem terrível;
Ele jamais a trará.
Já não temo abismos e maremotos
Nem a desafiadora escuridão
Que dominava o fundo remoto;
Pois o mar agora é somente planura
Como plano é o mundo,
Isento de loucura.
As nuvens ascendem
Como letreiros de um filme.
Não há mais diários de náufragos,
Ou o terror inconfessável
Vivido entre o zarpar e o aportar.
Nada de náuseas a bordo,
Sorvedouros, arrecifes e míticas fráguas;
Pois o mar agora é sólida planície
Como plano é o mundo,
E nada há de incomum
Em andar sobre as águas.
INCOMUM
Tenho medo de ver um morto,
Duas asas de pássaro
Sem corpo de pássaro,
Uma raiz sublevada no deserto
Como se fosse uma copa nua,
Umas conchas a quilômetros
De distância do mar.
Um morto:
Uma chave que não serve
Em mil fechaduras,
Uma nuvem recortada do céu
Que baixasse ao centro da cidade,
Um velocímetro sem ponteiro.
Um morto:
Um veleiro num vale seco,
Um dicionário sem ordem alfabética,
Uma criança que nunca mentiu,
Um cálice cheio de esterco.
Um iguana estático sobre a mesa do almoço.
Um morto.
EXTRAORDINÁRIO
O teu sorriso
Surge com a velocidade
Da luz.
O teu sorriso
É a ilustração rara,
Ardente iluminura,
Que eu tanto procurara
Para um poema
Que jamais serei
Capaz de escrever.
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domingo, 26 de dezembro de 2010
Três Poemas na Última Semana do Ano
O POEMA
O poema te procura,
Remota ânsia,
Matéria escura;
Sons andarilhos.
Sino de faiança,
Chamado estranho
À tua vizinhança.
O poema concentra,
A tua distância
Na cela acesa,
Sol amparado,
Céu reduzido,
Vôo simulado
De ave presa.
O poema te arma,
És sentinela,
A mão na faca
Atrás da porta;
Hirto, velas,
No próprio pulso
As horas cortas.
O poema te detém
Remotamente,
Grato refém
Desse exercício,
Louca assistência:
Içar palavras
Suicidadas
No precipício
Da existência.
CYCLADES
A mesma folha
Enche-se de ilhas,
Uma, duas, cem.
Logo está saturada
De Cyclades
Flutuantes
Sobre abismo branco:
Uns tantos destroços vulcânicos
Coagulados.
Nada afunda
E nada se fundamenta.
Nenhum navio transita.
Não há naufrágios.
AFASTAMENTO
Com carvão desenho um perfil na tela.
É todo um ser de proximidades.
Recuo alguns passos:
O entorno enquadra o quadro.
Mais alguns passos para trás:
O entorno do entorno o engole.
Recuando ainda mais:
O entorno do entorno do entorno
Toma tudo para si:
Já não vejo o que pretendera representar.
O poema te procura,
Remota ânsia,
Matéria escura;
Sons andarilhos.
Sino de faiança,
Chamado estranho
À tua vizinhança.
O poema concentra,
A tua distância
Na cela acesa,
Sol amparado,
Céu reduzido,
Vôo simulado
De ave presa.
O poema te arma,
És sentinela,
A mão na faca
Atrás da porta;
Hirto, velas,
No próprio pulso
As horas cortas.
O poema te detém
Remotamente,
Grato refém
Desse exercício,
Louca assistência:
Içar palavras
Suicidadas
No precipício
Da existência.
CYCLADES
A mesma folha
Enche-se de ilhas,
Uma, duas, cem.
Logo está saturada
De Cyclades
Flutuantes
Sobre abismo branco:
Uns tantos destroços vulcânicos
Coagulados.
Nada afunda
E nada se fundamenta.
Nenhum navio transita.
Não há naufrágios.
AFASTAMENTO
Com carvão desenho um perfil na tela.
É todo um ser de proximidades.
Recuo alguns passos:
O entorno enquadra o quadro.
Mais alguns passos para trás:
O entorno do entorno o engole.
Recuando ainda mais:
O entorno do entorno do entorno
Toma tudo para si:
Já não vejo o que pretendera representar.
Magritte, A Condição Humana, OST, 1933 |
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domingo, 19 de dezembro de 2010
Quatro Poemas
ANALOGIA
É preciso limpar o sifão da pia.
Que simbólico é esse sifão da pia!
Uma curva que cria um lago,
Certo Letes represado
Que faz o esquecimento dos miasmas,
Do mau cheiro subterrâneo.
Um poeta limpando o sifão da pia.
- Vamos, vamos, Orfeu! Mãos à obra!
CODA
Eu a vejo encarquilhada
Junto à janela,
O olhar perdido,
Espantando as moscas
Persistentes
Num almoço distante.
Muito distante.
Eu a vejo encarquilhada
Junto à pia da cozinha,
Manipulando
Irritantes inutilidades,
Agora a faca e o tomate
Vermelho.
Eu a vejo encarquilhada
À mesa,
O garfo suspenso,
A refeição-esfinge.
Não há o que nutrir.
Eu a vejo encarquilhada
No leito.
Deitada de lado.
O braço estendido,
A mão espalmada
Para um óbolo abstrato.
A outra sobre a face.
Há dois sulcos fundos
Entre as sobrancelhas
ILUSÂO
É ilusório que eu transgrida
os teus ritos, ó rotina;
não sabia que eras retina.
EXPOSTA
(Após leitura de um poema de Mirze Souza, aqui)
Todo o meu pesar,
Empatia aflita,
Pela histórica ruptura,
Fratura de um sonho
Que jamais solidifica.
É preciso limpar o sifão da pia.
Que simbólico é esse sifão da pia!
Uma curva que cria um lago,
Certo Letes represado
Que faz o esquecimento dos miasmas,
Do mau cheiro subterrâneo.
Um poeta limpando o sifão da pia.
- Vamos, vamos, Orfeu! Mãos à obra!
CODA
Eu a vejo encarquilhada
Junto à janela,
O olhar perdido,
Espantando as moscas
Persistentes
Num almoço distante.
Muito distante.
Eu a vejo encarquilhada
Junto à pia da cozinha,
Manipulando
Irritantes inutilidades,
Agora a faca e o tomate
Vermelho.
Eu a vejo encarquilhada
À mesa,
O garfo suspenso,
A refeição-esfinge.
Não há o que nutrir.
Eu a vejo encarquilhada
No leito.
Deitada de lado.
O braço estendido,
A mão espalmada
Para um óbolo abstrato.
A outra sobre a face.
Há dois sulcos fundos
Entre as sobrancelhas
ILUSÂO
É ilusório que eu transgrida
os teus ritos, ó rotina;
não sabia que eras retina.
EXPOSTA
(Após leitura de um poema de Mirze Souza, aqui)
Todo o meu pesar,
Empatia aflita,
Pela histórica ruptura,
Fratura de um sonho
Que jamais solidifica.
![]() |
Marcantonio, O Avesso do Jornal 10 Técnica Mista - 1994 (Aqui) |
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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Um Poema sobre o Natal e mais Dois Agregados
NATAL
As sombras da noite, lá fora,
remontam à era pré-histórica
quando os fósseis de agora
andavam sobre a terra
sem museus,
sem feriados,
sem cristos,
sem bem nem mal,
sem Natal.
Aqui dentro, a película da luz artificial
sobre as faces se estende esfacelada:
estão todos pregados em suas cruzes
alugadas.
Há desamparo,
mas reparo que só há bocas
que queiram sorver cardumes
de iguarias natalinas,
para emudecer os queixumes
de suas vidas bovinas.
Eis que o chefe da família,
perfeito homem de negócios,
começa a partir o peru
exemplar de uma espécie
que no futuro será fóssil.
Fóssil como o próprio futuro
sem museus,
sem cristãos,
sem feriados,
sem negócios,
sem bem nem mal,
sem natal,
só ócio.
ERRO
É um sofrimento
nem tudo dizer do que quero:
falo do que posso tal como posso
e espero.
Abre-se um fosso, rasgo exangue
De onde nenhum alívio sobrevém:
a palavra errada flutua no pus,
inútil refém.
SEMPRE INÉDITO
Não exijo coerência dos pássaros,
permanência ou conseqüência.
É todo um canto absorto
que explode no ar da manhã!
Como errantes partículas,
todos esses estrídulos brilhantes,
essas bolhas de luzes sonoras,
som que tem cor que em nenúfares
se transforma.
Não perguntarei amanhã:
- Eram vocês que cantavam ontem?
Será uma beleza sempre outra
que nunca poderá ser datada.
As sombras da noite, lá fora,
remontam à era pré-histórica
quando os fósseis de agora
andavam sobre a terra
sem museus,
sem feriados,
sem cristos,
sem bem nem mal,
sem Natal.
Aqui dentro, a película da luz artificial
sobre as faces se estende esfacelada:
estão todos pregados em suas cruzes
alugadas.
Há desamparo,
mas reparo que só há bocas
que queiram sorver cardumes
de iguarias natalinas,
para emudecer os queixumes
de suas vidas bovinas.
Eis que o chefe da família,
perfeito homem de negócios,
começa a partir o peru
exemplar de uma espécie
que no futuro será fóssil.
Fóssil como o próprio futuro
sem museus,
sem cristãos,
sem feriados,
sem negócios,
sem bem nem mal,
sem natal,
só ócio.
ERRO
É um sofrimento
nem tudo dizer do que quero:
falo do que posso tal como posso
e espero.
Abre-se um fosso, rasgo exangue
De onde nenhum alívio sobrevém:
a palavra errada flutua no pus,
inútil refém.
SEMPRE INÉDITO
Não exijo coerência dos pássaros,
permanência ou conseqüência.
É todo um canto absorto
que explode no ar da manhã!
Como errantes partículas,
todos esses estrídulos brilhantes,
essas bolhas de luzes sonoras,
som que tem cor que em nenúfares
se transforma.
Não perguntarei amanhã:
- Eram vocês que cantavam ontem?
Será uma beleza sempre outra
que nunca poderá ser datada.
![]() |
Van Gogh, Os Comedores de Batatas, óleo s/ tela, 1885 |
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