Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A Visão de Si Mesmo e do Outro

Quem há de negar que, em geral, nos preocupamos em excesso com o que os outros pensam de nós? Uma das preocupações mais estúpidas da vida, pois na maior parte das situações  o julgamento alheio não muda um milímetro do que somos ou sequer ameaça nossas pretensões, mas nem por isso nos livramos dessa ansiedade social que no mais das vezes assume dimensões fantasmagóricas. Costumamos dotar os outros das virtudes e poderes dos quais nos julgamos desprovidos. Por isso mesmo, admiramos como libertária a superação desse temor da desaprovação social, dentro da linha do "só é realmente livre quem não tem medo do ridículo", aqueles que subestimam as convenções, individualistas excêntricos, ou, por outro lado, cultuamos as figuras perfeitamente integradas que parecem dominar ao extremo as convenções, a ponto de aparentarem se sobreporem a elas.
Há momentos na literatura em que essa questão da visão de si mesmo e do outro é posta, a meu ver, de maneira paradigmática, direta e descritiva. Eu destacaria quatro desses momentos que me impressionam particularmente. Primeiro no WERTHER, de Goethe, quando o jovem desiludido vai servir como secretário junto a um embaixador. Werther observa que:
"Nossa imaginação, levada por sua própria natureza a exaltar-se, e, ainda, excitada pelas figuras quiméricas que lhe oferece a poesia, dá corpo a uma escala de seres onde ocupamos sempre um lugar ínfimo. Tudo quanto se acha fora de nós parece mais belo, e todos os homens mais perfeitos do que nós. E isto é natural porque sentimos demasiado as nossas imperfeições e os outros sempre parecem possuir precisamente aquilo que nos falta. Em consequência, nós lhes acrescentamos tudo quanto está em nós mesmos e, para coroar a obra, concedemos-lhe também certa facilidade miraculosa que exclui toda idéia de esforço. E eis esse bem-aventurado mortal convertido num  conjunto de perfeições por nós mesmos criadas".

Segundo, um famoso poema de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) no qual encontramos uma percepção diferente da encontrada na citação acima, já que o sujeito vê o outro como uma ostentação ilusória de  falsas  qualidades que ironicamente ele, sujeito, nega a si próprio, acentuando sua própria fraqueza humana para revelar a hipocrisia do outro. O poema é todo uma crítica às convenções sociais que nos levam à dissimulação através do uso de máscaras que ocultam nossas fragilidades, contradições e vilezas:

POEMA EM LINHA RETA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos tem sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo e absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes da etiqueta,
Que tenho sido grotesco,  mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,,
Que quando não tenho calado tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco; 
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe -- todos eles príncipes -- na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!


Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?


Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado, 
Podem ter sido traídos -- mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.
                                           
Eis um poema que nos faz pensar, não? Atente-se para os versos 23 e 24, em que o poeta nos diz que até confessamos com facilidade um pecado e uma violência, mas jamais uma infâmia ou uma covardia, pois a violência pode ser associada à coragem e o pecado à desenvoltura e à ousadia, como no caso do adolescente que prefere vulgarizar a própria sexualidade a ter que confessar-se virgem. O verso "Arre, estou farto de semideuses", revela a tendência do outro a se mitificar diante de nós.

( Roy Lichtenstein - Sweet Dreams, Baby!)
   
O terceiro momento é extraído do ensaio Da Presunção de Montaigne (sim, ele novamente), onde ele se confessa carente das qualidades que um homem incomum deveria ter:

"Há outro tipo de glória que consiste em termos opinião demasiado boa de nós mesmos. Essa afeição imprudente faz com que nos representemos aos nossos próprios olhos diferentes do que somos. E atua como a paixão amorosa, que empresta ao objeto do seu amor a beleza e a graça, turvando e alterando a razão de quem ama e fazendo da pessoa amada um ser muito mais perfeito do que é. 
Não quero, entretanto, que um homem se despreze ou se estime mais do que vale. Nosso julgamento deve conservar sua retidão e é justo que nisso, como em outras coisas, veja em que consiste a verdade. Se é César, que se considere corajosamente o maior guerreiro do mundo. Tudo é convenção;as convenções guiam-nos e nos levam a menoscabar a realidade. Penduramo-nos nos galhos e largamos o tronco, que é essencial.(...)
Sou vítima de uma erro sentimental que me desagrada e se me afigura iníquo e ainda mais importuno. Tento corrigi-lo, mas não posso libertar-me: subestimo o valor das coisas que possuo e, ao contrário, superavalio as que não me pertencem ou se acham fora do meu alcance.(...) Mais ainda, não tenho consciência do que eu possa valer; admiro a segurança que todos exibem e confiança que têm em si, enquanto não há nada que eu imagine saber nem que eu pense poder executar. Quando me proponho a fazer tal ou qual coisa, não tenho de antemão a noção exata dos meios de que posso dispor para obter êxito e somente percebo o que está em minhas forças pelo resultado. Duvido de mim como dos outros. Disso decorre que quando faço um trabalho merecedor de louvores, atribuo-o antes à sorte do que ao meu talento, tanto mais quanto só o acaso me guia, e o temor. (...) Não sei agradar, nem divertir, nem interessar: a melhor história do mundo, dita por mim, perde a graça e o encanto. Só sei falar quando me sinto tomado pelo assunto (...) Na dança, no jogo de bola, na luta, revelei-me sempre fracalhão e vulgar. Era absolutamente nulo na natação, na esgrima, na acrobacia e no salto. Sou tão desajeitado com as mãos que mal consigo reler o que escrevo, a ponto de preferir escrever de novo a ter que decifrar as minhas garatujas. (...) As próprias qualidades de que posso jactar-me são inúteis neste século: a simplicidade dos meus hábitos seria tachadas de covardia e fraqueza; minha fé e meus escrúpulos de superstição; minha franqueza e liberdade de atitude seriam julgadas importunas e ousadas. (...) Quanto a essa nova virtude do artifício e da dissimulação, tão apreciadas nestas eras, odeio-a supremamente. (...) É característico da covardia e do servilhismo, e predispõe à perfídia fantasiar-se e mascarar-se e não se mostrar como se é. Acostumados que andam todos a exprimirem sentimentos falsos, não lhes constitui caso de consciência desmentirem as palavras pelos atos. (...) Não há como dizer sempre tudo; seria tolice; mas o que se diz deve ser o que se pensa."
E por aí prossegue Montaigne na listagem de suas deficiências, tão extensa que não há como reproduzi-la aqui. Quem quiser se aprofundar pode ler o capítulo XVII de seus ENSAIOS. Presumindo a sinceridade de Montaigne, ao ler da primeira vez esse texto, eu me senti gratificado: se ele, que considero tão elevado, se descrevia assim, então não estarei eu totalmente perdido.
Por fim, o quarto momento, um poema de Manuel Bandeira no qual ele se retrata com uma cândida ironia:


AUTO-RETRATO

Provinciano que nunca soube                                                   
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado ( engoliu um dia


Um piano, mas o teclado
Ficou de fora ); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
Em matéria de profissão


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