Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Poemas de Ar Comprimido 2

TERCEIRA PESSOA

Descrer em mim,
Ainda que
Me descrevendo.


INFÂNCIA

A fruta fossilizada,
fosse ainda
o sumo mel...


MONITOR

Não tem este ecrã
a variação luminosa
de uma página de papel:
Aqui fixou-se a manhã,
de forma que a palavra
não se esforça
para não entardecer.

Ademais, e a maciez
da pele que registra
o arrependimento?
Aqui não há.
Meu rascunho
já tem cunho de arte final.
Não transparece
a tatuagem involuntária
da palavra removida,
como no papel que acumula
novas fibras.



EM REDE

Já havia tanto o que pensar
sobre o mundo objetivo
e suas normas e leis sociais.
E agora essa dúvida a mais:
darei crédito a tantos éditos
pessoais?


VALOR

Eu queria ter guardado
aquela hora-horizonte
que foi valiosa e nobre...
Porém, o dia já se vai
e não deixou o segredo
do cofre
de ontem.


EU-OUTRO

Como é difícil simular a alteridade
quando o pensamento ensaia uma ação
contrária, que para efetivar-se
requer prévia ocultação:
não consigo jogar xadrez comigo mesmo
pois para a estratégia que prevejo
já há uma adversária antecipação.

Fosse partida de pôquer
jogaríamos eu e o eu-outro
totalmente a descoberto,
e eu não poderia ser no blefe
mais que eu mesmo esperto.

Mas em se tratando apenas de pensar,
ter comigo mesmo livre conversação,
não ao pé, mas entre os ouvidos,
surgem debatedores desconhecidos,
(sem querer interromper, e já interrompendo)
e monta-se o seminário da alter-multidão.


RECONHECIMENTO

Pensando bem,
o que posso acrescentar ao todo?
Um suplemento elementar,
um apêndice-engodo.


PARTITURA

Onde a pauta, maestro?
Em que claves por as vozes
que de ouvido mal orquestro?


INSANO OFÍCIO

Talvez não me custe imaginar
o que foi a Inquisição:
tenho um tribunal na mente
e lenha já acumulada
na praça do meu coração.


TRAGICOMÉDIA

Quer saber de uma coisa?
Não creio na existência
de um pássaro dionisíaco
que jamais pousa.


CINZA

Dia chuvoso.
Diria o poeta:
céu plúmbeo.

Parece uma síntese
de nuvens antitéticas:
plumas de chumbo.


ÍRIS

Tens olhos
de fundo de xícara.
Vitrificada faiança
com sobra
de doce chá.


Marcantonio,  óleo sobre tela, 2003. (Clique para ampliar)