Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Três Poemas no Final de Agosto



CONTEXTO

Confesso-te que falar das nuvens
Reais
É só o pretexto de aludir àquelas
Virtuais
Que passam pelos teus olhos.
Ah, o tempo muda!
E esses cúmulos nimbos me comovem,
Teu céu se fecha e tuas dores humanas
Chovem.

Mas também falar da tua chuva súbita
É outro artifício:
Quero dizer da possível fecundidade
Que se seguirá à pluviosidade
Do teu sacrifício.
Ah, cessa a precipitação e teu olhos
Ficam claros:
Os córregos sinuosos reverdecem
Um solo cansado e deste surge broto
Raro.

É evidente que este broto será flor
Persuasiva,
Surgida na intenção de engendrar
Metáfora viva.
Ah, essa flor fenecerá
Como todas as rosas surpreendentes
Da vida.
Mas são também dádivas estranhas
De que é possível se impregnar.
Não tomes esta flor metafórica
Por decorativa,
Urge despetalá-la, esmagá-la nas palmas
Abrasivas,
Pois não era da flor que eu quisera falar,
Mas do odor que ela deixa nas tuas mãos
Queridas.


LOGRO

Atraiçoou-me
A inspiração
Na qual mergulhara
Insone.
De volta à tona
Do dia,
Verídica não era
A rútila pérola:
Outro poema areado,
Mera pedra-pomes.


REVER DEVIR

O olhar trás.
O olhar leva.

O olhar vivo
Subleva
Em mim,
O ponto-de-vista
Triste do artista:

Tanto olhar
Treva

Entrevendo fim.


domingo, 7 de agosto de 2011

DOIS POEMAS

CANTOCHÃO

É tão breve o eco das antífonas em meus ouvidos.
Não têm o rumor de mil garças alçando vôo
Após a salva de tiros de timbales,
Mas o chiado ardido
De uma rocha ígnea afogando-se num lago.

Não invejo os que ouvem o coro dos anjos
Porque beatificam a dúvida
E não sabem se o retiram de si mesmos
Como quem vê vazar o sangue dos próprios
Pulsos
E o estranha como a um desconhecido.

Meu coro angelical é essa salmodia de pássaros
Urbanos
Saudando a dessacralização da tarde
Sem que eu possa vê-los como arautos exilados
Ou como escravos bardos de uma elegia,
Tão natural é sua lida com a luz real do dia,
Aquela que lenta se transmuda, térmico relógio.

Não sei se retiro de mim, víscera que não estranho,
Essa concretude profana da tarde, banal tarde;
Mas dentro dela, verdadeiro, fico muito à vontade.


LARGO

É tão serenamente que Proserpina
Sobe à superfície da terra,
Tão logicamente,
Tão maquinalmente,
Tão inexoravelmente!

Nada da humana ansiedade
De evadir-se da escuridão.

Como são impacientes as lâmpadas
Que querem cegar os olhos da noite.

De outro modo,
Uso óculos escuros ao dia
Para me afeiçoar ao meu destino.