Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Um poema


NOTIFICAÇÕES

As minhas unhas
Estão retroagindo,
Os meus cabelos
Tornam à origem.
Os amigos o notificam
Entre si.

O espelho me retém
Num amanhecer.
Sinto o ar puro
Espalhando o sal
Recolhido às horas,
A minha nuca recebe
O sol futuro.

Meus pensamentos beijam
As duas faces do dia.
Os lírios me doam
Todo o seu vestuário.
A corte de Salomão
O notifica.

Meus pés alvejantes
Purificam os esgotos.
No coração engendro
Rotor de helicóptero.
Constato que as nuvens
Têm piso dourado.

Meus olhos superam
A miopia e abrem
As conchas distantes,
Aferem os perímetros
Propícios às miragens,
Os viajantes urbanos
O notificam.

Minhas palavras agora
Calçam patins.
Os dias do calendário
Disparam feitos gametas.
As linhas das minhas
Palmas hoje são espirais,
E as quiromantes tontas
O notificam.

 
Fotografia de Brassaï



Retomando este blog


Nasceu o dia:













Até chegar a












Quando eu resolvi retomar este blog, adormecido, ou cataléptico, desde 2013, há três anos, portanto. Por que o estou fazendo? Não sei bem o porquê, talvez em busca de uma leitura alternativa, mas serena, num meio mais propício. Talvez num simples impulso que pode até ser considerado anacrônico. Mas, enfim, não custa tentar.


* Imagens:
                Turner, Aurora no Castelo de Norhan (1840) - Tate Gallery

                Van Gogh, Noite estrelada sobre o Ródano (1888) - Museu d'Orsay
            

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

QUATRO POEMAS EM NOVEMBRO



APORTE

Forneço subsídios ao silêncio,
Não o medo, mas a perplexidade,
Essa cama que flutua entre as auroras.

Mas não entendo teu mutismo,
O crepúsculo no teu palato
Quando fechas a boca, o vácuo,
Ausência parcial de sensibilidade da língua:
Perdeu-se o gosto das palavras,
O salino, o adocicado, o cítrico, o amargo.

No entanto, comunicamos,
A pele é que é impelida
A trair a ruptura do verbo (nervo crítico),
E o corpo captura o desejo omitido:
Mal o teu púbis se insinua, aflito
Algo em mim se levanta, grua,
Então se enraíza um diálogo acima do silêncio
E, no mais, temos dito.


LUMINOSA

Anoitece,
e tal como suponho aconteça
na vida pessoal,
os planos distantes
são os primeiros a desaparecer
até a resistente nitidez
do foco central
onde se finca a aguda pata
do compasso existencial,

e a circunferência das sombras
se retrai,
até o ponto onde se grita:
luz! Mais luz!
A sobrecarga impossível,
antes da queima do circuito 
e da escuridão total.


SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO
Ao ouvir o som do meu coração
Sinto-me especialista em criptografia,
Intruso, espião em território estrangeiro,
País governado ditatorialmente
Pela vida.


 CRÔNICA

Um velhinho passa
sob a minha janela,
camisa surrada,
calça jeans, sandálias
e boné.

Claudica.

E me enterneço,
como preconceito
de que está cansado
de levar sua história
anônima, banal
e pesada,
a pé.
 

 
 

terça-feira, 22 de outubro de 2013

QUATRO POEMAS ALHEIOS À PRIMAVERA



ÁREA ISOLADA

Nesse poema vazio de mim
As palavras entram como minérios
Restituídos à terra,
Ou pedras aparelhadas em muralhas
Que não posso galgar.

Não há nesse poema nada de orgânico,
Sequer o sobrevoo de teus olhos amados,
Nem as lembranças de nossos filhos,
Nem os sons ocos da infância,
Nem os chamados aflitos de minha mãe,
Nenhum indício de todos os poemas
Que cometi ou deixei suspensos sobre as horas;
Nenhuma gota desta chuva
Que tão plena de figuras jorra ao meu redor,
Nenhum raio do sol de ontem
Que me dava a companhia de uma sombra.

Não se encontra nesse poema
Qualquer notícia trágica ou cômica
Sobre o meu amanhã.

Nem mesmo a meu falecido pai, que bate à porta,
É permitida a entrada:

- Não é nada pessoal, meu pai, esse poema
Está vazio de todos nós,

É ocupado apenas por cento e quarenta e seis palavras.


INVENTÁRIO

Não me permito mais
as seguintes imagens:
anjos, pássaros, ondas,
flores, linho, nuvens,
lágrimas, sorrisos, sangue,
coração, borboletas, montanhas,
horizonte, vento, orvalho,
árvore, estrelas, lua, sol...
Pensando bem, é longo o rol.

Serão bem-vindas:
oxidação,
hóstias mofadas,
galhos ressequidos,
fotografias em sépia,
jaulas, garras,
sal,
cal,
ferro retorcido,
carne, vulva,
unhas, ervas mesquinhas,
pão, serra, pregos,
eletricidade, meio-fio,
vértebras,
sapato sem par,
praia remota,
o boi de Rembrandt,
o bode (cabra?) de Chagall,
veias, areia monazítica,
um filtro solar sobre o próprio
sol...

Pensando bem, é imenso o rol...


COR MENTAL

Uma cor se expande sobre outra
Na permeabilidade da fala,

Mas não tão velozmente como
Quando são apenas pensadas
Na ausência de superfícies:
Auréolas impermanentes, ralas.


O CONHECIDO

Chega o momento,
Não sei se natural
Ou propiciado pelo teu arbítrio,
Em que nada é surpreendente.

E mesmo que vejas coisa inusitada,
Ela logo terá formal identidade
Por efeito de alguma remota analogia.

Pois tu já terás preenchido
Teu conceitual álbum de figurinhas,

Somente revisões
E a sobra das trocas
Preencherão as importunas entrelinhas.






segunda-feira, 15 de julho de 2013

DOIS POEMAS



INEXATO

Não há em mim quatro pontos conclusivos
Sobre os quais montar uma abóbada,
Nem duas margens nítidas para unir com pavimento
Pelo qual atravesse qualquer rebanho abstrato
A ser entregue a tempo.
Nem mesmo há qualquer círculo fechado:
Desvia-se de sua origem a linha,
Pois a ponta do compasso
Corre sobre o espelho baço.

Não há também barro curado
Em vasilhame para o destino,
Ou qualquer olhar de pássaro
Que me veja um monumento estático
No centro da praça urbana
Onde tudo passa rápido.

Em mim apenas vige
O projeto de desmonte
Que se conclua na sepultura:
Só ali haverá um marco perfeito,
E lacônico, entre duas datas.

Por tudo isso que me falta
Devo inventar-me certeza invisível
De modo a ser distinto
Do cão que fuça a lata
Ou do gato que no salto mal calculado
Quebra a pata.



ANCORADO

Na praia,
Os olhos entregues
Ao incessante, e por isso imóvel,
Vai-vem.

E os pés lassos:
- Não voltar nem ir além!

Criar raízes de algas
E me cimentar na salsugem.

E ver a maresia,
Que aos meus pulmões alicia,
No próprio sol do é-tarde
Gerar ferrugem.



sábado, 6 de abril de 2013

DEZ HAICAIS E MAIS UM POEMA



DAS MORTES PRECOCES

Esperava-se apenas para a noite,
(quando todos os lírios replicados
já estariam enrugados e ressequidos)
o baque e o quase inaudível vagido.

Mas morre-se sob o precoce holofote diurno,
sobre pétalas ainda tenras,
sobre água ainda fresca e lenta,
sob frutos ainda aéreos e castos de aroma,
com o livro ainda na página de rosto
e com o rosto sem a craca dos ancoradouros.


Morre-se na cena com erro de continuidade,
e segundo a cronologia ilógica dos sonhos.

Morre-se quando ainda estala a claquete,
E ficam para o restante do elenco
A luz e a ação.


HAICAIS

a

Papel ocreado
Com odor de folhas secas:
Não escrevo: sonho.

b

Crescem sob a casa
Raízes da árvore fícus:
Quer mesmo ficar.

c

Escuras no bojo
Douradas nas bordas nítidas:
Dramáticas nuvens.

d

O coqueiro torto
Parece ter sete asas
De pelicano.

e

Transparece a lua,
cor diáfana de nuvem,
quando ainda é tarde.

f

O cão agachado,
vigia a fresta do portão:
aguarda o estranho.

g

O pássaro dança,
ao som dos próprios trinados,
sobre o fio neutro.

h

Escrevo o haicai
em prosa para arrancar-lhe
as folhas dum trevo.

i

Silêncio total,
Não há trânsito nas ruas
Nem zunem as moscas.

j

Cata-vento em pedra,
Estranha contradição,
Mas é bela lápide.


sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

UM POEMA HOJE BASTA



É ilegível um livro escritos sobre transparências,
A sobreposição das páginas
Cria escara de rasuras.

A cidade ainda se me revela com segmentos vítreos,
Fachadas translúcidas:
O que há para se ver ainda não está apenas nela,
Paisagem-janela para outra cidade.

E uma cidade que se leia tem de ter opacidade
De osso, de fêmur ou crânio ou pelve;
De gordura coagulada, de leite talhado,
De névoa calcificada. Seus caracteres
São ciumentas presilhas óticas.

Uma cidade que se ame obtura os vão de fuga
Para o olhar
E nele crava o esmalte de seus dentes entalhados.

Uma cidade que se ame é corpo com poros fechados,
E não tem avesso que se veja de outra cidade.
Onde é líquida, também é turva.
Se tem rios, correm em círculos,
Se litorânea, fecha as estradas marítimas da memória
De outras cidades.

Uma cidade que se ame é densa lápide
Para o renascimento
Em que não se chora por futuras saudades.




segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

DUAS ANTIFÁBULAS*



1

Na terra distante onde os dragões viviam desde o fim da Idade Média, surgiram, vindos de fora, rumores de que dragões eram seres míticos sem existência real. Tais boatos deflagraram uma onda de revolta e indignação que, como toda onda de revolta e indignação, fez germinar uma inquietante dúvida: será verdade? Será que não existimos?

Para solucionar aquele impasse, os dragões decidiram, em assembléia, romper um pacto de isolamento vigente há mais de oito séculos, e enviar um emissário ao Ocidente em busca de um especialista em mitologia, de preferência o maior deles. Assim foi feito, e após uma semana, a autoridade, seqüestrada com pleno êxito e total discrição, apeou nas terras dragônicas.
Devidamente posto a par das razões de sua vinda, o especialista não se fez de rogado, e exarou de pronto o laudo:

- Senhores, lamento muito informar, mas vossas senhorias não existem, são apenas figuras míticas de uma época muito remota. E desconfio, por razões metodológicas, que estou apenas sonhando neste momento.

O insigne mitologista mal teve tempo de recuperar o fôlego, foi incinerado por raivosas e inconformadas cusparadas de fogo, de maneira que o infeliz não pôde acordar, se de fato dormia, e concluir que tudo não passara de um sonho. E justo por esta última razão, os dragões não conseguiram  certificar  que existiam de verdade.


2

Uma raposa andava tranqüila e galhardamente, quando se deparou com um cacho de uvas pendurado a certa altura. Sem estacar o passo, fez ligeira avaliação e prosseguiu no seu caminho. É que ela já passara diversas vezes pela situação de não alcançar as uvas e condicionou o reflexo de dispensar a moral da história.
                                                                                                                              


* Utilizo a designação Antifábula inspirado em um comentário de Eleonor Marino Duarte, no Facebook, sobre o segundo texto acima. 

Dürer, Combate de São Miguel com o Dragão, xilogravura, 1498.



























quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

PEQUENOS POEMAS




FÍSICA

Gostava de aplicar
a expressão vasos comunicantes
aos nossos olhos,
nossos ouvidos,
nossos sorrisos miscíveis
e ao nível comum de nós
à altura das nossas bocas.



NEFELIBATAS

Alguns estão nas nuvens
para fincar uma bandeira,
símbolo territorial,
neste solo vaporoso.
Quanto a mim, encontro-me aqui
apenas para agitar
a minha perplexa flâmula.




À BASE DE ÁGUA

Tu choras, e a minha consciência
é diluída:
enorme pastilha de aquarela
de onde extrais
pesados tons de cinza.



CHAPLINIANO

Fim de filme.
A estrada por seguir.
Música nostálgica, triste.

Sem efeitos especiais,
a minha bengala
e o meu chapéu-coco
flutuam e seguem em frente
na ausência do meu corpo.



AO ALCANCE DOS OLHOS

Não sei reconhecer lírios
ao vivo,
pois só os vi
na enciclopédia lírica.

Queria que fossem eles
essas flores tão banais
nas janelas da vizinhança.



NÃO BRUNIR

A pátina é mais bonita
porque é acúmulo
e tem história.
O brilho, não:
é só de agora.



DIVERTISIMENT

O céu chorou?
Que grandes pálpebras terá!
A tomar pelo tamanho
do arco da íris...



LE DÉJEUNER SUR L'HERBE

Inclina-te
e pega uma fruta
na natureza-morta
para que pareças
ainda mais natural.
                                                                                                                                        

sábado, 10 de novembro de 2012

DIÁRIO SOBRE A METARMOFOSE DAS NUVENS (1)



DIÁRIO SOBRE A METARMOFOSE DAS NUVENS (1)


a)

Estáticos no céu
Pequenos dragões
Como a recordar o tempo
Em que eram apenas terrenos vulcões.

b)

Então, uma cortina cinza de nuvens
Cai sobre o horizonte,
Abrindo um corredor azul-mortiço
Para os pterodátilos.

c)

Um sapo estatelado no ar
Perde uma perna.
Depois outra.
Nunca mais irá saltar.

d)

Suponho que é um bobo
Com um gorro de pontas,
Mas não ouço guizos.
Nem risos.

e)

É Ajax Telamônio que se atira
Sobre a própria espada,
Mas esta se esgarça
Antes de lhe trespassar o peito.
Em segundos, o próprio guerreiro,
Sem perder uma gota de sangue,
Também é desfeito.

f)

Somem as cabeças da hidra,
Uma por vez.
O vento poupou uma tarefa
A Hércules.

g)

Um cacto
Sobre si mesmo se dobra
E gira:
Agora é branca rosa 
Sem espinhos.
Mas ainda retém água.


sexta-feira, 26 de outubro de 2012

TRÊS POEMAS DE OUTUBRO



GARDEN

Uma breve crônica:
O jardineiro cego de um olho parece gostar
Do cultivo sistemático de desabridas flores
Protegidas em estufas à prova de tempo.
E aprecia ainda mais o convívio no limo
Com as extenuadas estátuas do jardim
Que já apresentam artrose na coluna dorsal.
As duas deVênus Calipígia, por exemplo, se sentam na relva
E exibem as vulvas, o trecho mais tenro de seus mármores.
Em contrapartida os faunos priápicos de bronze
Desaprenderam as filigranas barrocas da arte masturbatória.

Uma novidade:
O novo arquiteto (que detesta o estilo antigo
E num manifesto contra a tradição
Mandou Dédalos enfiar os dez dedos no cu)
Dedica-se fleumático a projetar um labirinto
De cercas vivas
Do qual, se preciso, pulará como um sapo
Para a liberdade.

Uma nota:
A múmia mais antiga do museu de história natural
Foi roubada e vandalizada. Resgatada aos pedaços,
Doaram-na ao jardim. Sem outro uso adequado
Foi moída e peneirada.Tornou-se insigne ração
Para os peixes balofos do pitagórico lago triangular,
Muito elogiável e oportuno,
Pois ambos têm equivalente valor histórico.


CORRESPONDÊNCIA

Suponho que tenhas
O endereço da verdade
Já que lhe envias um memorando
Com o aviso de que ela não existe.

Para todos os efeitos
Basta que a verdade se verifique
Pelo ato de chamar alguém
Se esse alguém responder:
A tua solidão
Não te enganaria a tal respeito
Por mais que não quiseras crer.


SUBSTITUIÇÃO

Se ao menos a felicidade
Tivesse deixado definitiva cicatriz,
Um valor nítido para a incógnita
Do primeiro termo de

X = + feliz.

Mas essa ausência
Variável,
Para mais ou menos,
Jamais resultará em raiz.




quinta-feira, 20 de setembro de 2012

DOIS POEMAS



MANTER O FOGO

Há momentos
De sol de meio dia dentro do meu crânio fixo
A meio caminho entre o leste e o oeste.
É quando as lupas dos meus cristalinos
Direcionam um raio calorífico intensíssimo
Sobre alguma coisa ínfima e insignificante,
Até que uma fagulha inflame essa ninharia
Tornando-a, de súbito, lenha fundamental,
Imprescindível para reavivar a universal fogueira.


REMANESCÊNCIA

Desconfio que as flores 
Os pássarosse os peixes
Riem da minha pretensão
De lhes furtar os nomes.

E as grandes máquinas anônimas
E os instrumentos indiferentes
E frios sem etiquetas
Também riem com sarcasmo
Quando lhes aplico nomes
De flores, de pássaros, de peixes.

E daí que gracejem?

Desgarrados e desocupados,
Por último riem os nomes
De coisas agora extintas.


sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Quatro Poemas Recentes



TÊRMO

A palavra sol
Que se põe na página
Não mais a ilumina
Nem seca a palavra
Lágrima.

Para o horizonte
Da última linha
A dor não declina.


COTIDIANO

Troco uma lâmpada
E penso na origem
Do universo.

Ponho o lixo para fora
E me pergunto
Sobre as auroras boreais.

Enquanto amarro
Os cadarços dos sapatos,
Lembro-me dos bisões
Da gruta de Lascaux.

É assim:
Sempre estou aqui
E jamais estou.


TRANSEUNTE

O carro de Apolo
Parou no sinal
Vermelho.

Rápido, atravesso
A principal celeste
E pego uma transversal
Noturna.


O MALMEQUER

O meu humor
Tortura a flor
Da manhã clara:

Arranca-lhe
Sem alternativa
As pétalas pétreas
De opala.


BELO MOMENTO


Foram raríssimas as ocasiões em que pude ouvir algum poema meu declamado. E fui surpreendido pelo vídeo abaixo postado no blog Poetas Vivos por Cris de Souza no qual ela recita um poeminha meu, "Entre as orelhas". E o poeminha creceu muito por obra e arte da Cris! Achei o resultado de muito bom gosto. Pareceu-me ótimo, realmente. Agradecido, Cris, por essa partilha e pela sua gentileza com a minha poesia.


Você pode acompanhar o trabalho poético de Cris de Souza nos blogs Trem da Lira e Válvula de Escape

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

RETORNANDO



ANESTESIA

Um poema ceifa a dor:
Sequer sinto a amputação
Do dia.


CHEIA

Com dejetos,
Cascalhos do cotidiano,
Segue assoreado
O rio da minha palavra:

E em vão atua o meu espírito
e seu desejo
feito draga.


FOLCLÓRICO

Não aplique mais às nuvens
A imagem de um rebanho
Conduzido por amoroso pastor:

É algum flautista desmedido
Que as escolta para a queda

No abismo.


OCTETO

1

Ele queria saber se ela possuía pontos fracos ocultados pelas palavras. Mordia-lhe os tendões de Aquiles.

2

Suas panturrilhas o fascinavam, era como se ela estivesse continuamente na ponta dos pés sem sapatilhas.

3

Perguntava-se sobre sua alma feminina: seria tão doce quanto suas virilhas?

4

Seus grandes lábios, escondidos por um tênue véu de algodão, pulsavam úmidos com vitalidade animal, em incessante oratória.

5

Não era pouca coisa abrir-lhe a pequena concha do sexo, pronta para ser arrebatada pela espuma de uma onda vinda de longe. Afrodite e sua concha sedenta de espumas.

6

Uma grande mulher com pelos pubianos recendendo à embriagante maresia. Mas o púbis de Afrodite não é qualquer território livre, qualquer varanda aberta...

7

Sua nuca parecia uma ilha secreta onde Eros brincava com Psiquê. Eles deslizam por sua espinha, kundalini-onda marinha, fazendo suas nádegas tremer.

8

Ele se deixava arrebatar por aquela liturgia sensual de palavras rebeladas e sedutoras, toda uma poética inesperadamente construída para se repetir e se repetir a cada ato de se despir.