Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 27 de julho de 2010

Um ENTRE SÍTIOS e Outros Poemas



ENTRE SÍTIOS (10)

(Para Zélia Guardiano e seu Ad litteram)

Uma onda de humanismo
Espraia-se,
Não aos pés,
Mas sobre o corpo inteiro
Da LETRA.


APARENTEMENTE

Estou estendido no meu cotidiano
Como um faquir sobre uma cama
De pregos.

Os outros se iludem a respeito
Dos meus próprios riscos.


CORTANDO DA PRÓPRIA CARNE

Se fogem da paisagem as estradas,
A uniformidade torna a busca impossível.
Um suspiro desiste de exalar-se
Arraigando-se nas câmaras pulmonares
De onde pressiona o coração precipitado.

E os olhos
(apavorados com a própria obsolescência)
Tornam-se autográficos,
Consumindo a reserva de delírios
Situada por detrás das retinas.


SEM TÍTULO

Eu pretendia
dizer-te algo
que ninguém
jamais disse.
Mas não seria
precisamente
nada dizendo
que o não dito
eu te diria?

Assim,

se eu ombrear o meu silêncio
com o teu silêncio,
aguarda, de olhos postos em mim,
as mãos pendidas,
o peito desarvorado,
até que o pronome eu
entre nós se faça invisível.

Terá nos dito algo, o amor
que a palavra tornara
intraduzível.


EM DÚVIDA PROVERBIAL

A

Quem chora primeiro chora melhor?

B

De grão em grão o homem preenche os fatos:
{a b c d e f g h i j k l m n o... O 1 2 3 4 5 6 7 8 9}

C

Os últimos e os primeiros ocuparão
A mesma (trans)posição.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Três Poemas: Moscas, Medições e Inventando.

MOSCAS

Agora me incomodam as palavras
Como moscas expedicionárias
Emitindo
Ultimatos vagos, mas repetidos.

No seu vôo (de geometria arbitrária)
Por desígnio obscuro conduzido,
Montam e desmontam constelações
Com a presteza de um curto zumbido.

E se nelas me concentro, inconstantes
Fogem por diferentes direções.
Na pele deixam aceso um prurido.

Meu lento olhar se eleva e, oscilante,
Procura seus rastros despercebidos
Na atmosfera transitiva e densa.

Quieto, espero o pouso pressentido,
E no descansar das asas semânticas
A unidade breve de um sentido.


MEDIÇÕES

Eu não uso relógios
Para contar esse tempo que detesto.
Através do não-tempo me testo
Ontem, ilógico.

Nada de escalas
Para medir a distância até onde não estou.
Em mim a não-distância perdurou
Hoje, vasta.

E não uso telescópio
Para aproximar as visões que não tenho.
Através das não-visões me empenho
Amanhã, ócio.


INVENTANDO

E
m

p
é
escrevo um poema
de ponta-cabeça
como se eu fora árvore
e fosse ele o vento
preenchendo
os espaços

entre os galhos

e as folhas.

As raízes não são ventiladas.
























Marcantonio, Palimpsesto: Le Culte des Ancêtres
Técnica Mista, 2004

Outras imagens minhas AQUI

Tentativa de Vitalizar Três Metáforas Gastas



Primeiro, as nuvens; o fato de que passam silenciosas após sugerirem imagens  dissolventes. A metamorfose contínua e o desaparecimento.

Em seguida a dança, ideal metáfora da vida. A música: os fatos do mundo, as circunstâncias mutáveis ou não. O dançarino é o sujeito que se expressa a partir da música e não através dela. O sujeito escolhe o gesto, entre os muitos possíveis, que possa reger a música: isto ou aquilo. Dançar na música, ser maleável, porém, único e expressivo.

Terceiro, o ato de desbastar, tirar de si, lançar fora o excesso como um escultor que busca uma imagem leve refletida na matéria bruta e pesada. Não a modelagem por acréscimo, mas o corte daquilo que obstrui a irrigação da pedra pela luz. Sobretudo para lançar fora toda convenção inútil e nodosa que asfixia os pulmões da pessoalidade.

sábado, 17 de julho de 2010

A EXONERAÇÃO DO PÁSSARO e mais Dois Poemas.

ENTRE SÍTIOS (9)

(Para Dado Pedreira e seu
Alguma Poesia)

Acordado e ainda incrédulo,
o poeta mira a poesia una
que desvaria na palavra sonho.

Mas a árvore logo adormece,
célula amarela na folha seca,
e uma pluma pousa
no ombro do poeta
para recompor um pássaro.


A PALAVRA FIXADA.

A solarização
Saturada do papel
Ocultou a palavra.

Fecho a janela,
Franzindo os olhos,
Para revelá-la.

É tarde.
Fixou-se
Em desnaturada
Solidão
De fera
Ou deusa.


A EXONERAÇÃO DO PÁSSARO

Pássaro, pássaro
nunca mais te farei
voar
como metáfora;

nem te abrirei
os braços
do poema
como galhos
para pousares
em canto,

pois no meu poema
só há desencanto
que o silêncio
vai comprimindo.

Eu te espanto
de todos os meus
poemas,
                                                  pássaro!

Não te abrirei ali
janelas
com parapeitos
feitos de sol:

as aberturas do meu poema
voltam-se para a noite
arredia
e desenluarada.
A incidência do teu vôo
nesses céus
não seria contrastada.

Pássaro,
vai-te daqui
com todas as outras
                                                    asas!
E as de anjos,
de borboletas,
libélulas,
de cavalos alados.
Vai-te com todos os insetos
preclaros,
com todo o zunido do dia!

Vai pássaro,
eu te solto
                                                         ao largo
do poema,
essa gaiola sem vagas,
esse jardim de antúrios
frios.

Eu te demito
das tuas obrigações poéticas
por saber, enfim,
que a liberdade
também é bruta carga
para as tuas frágeis asas,
e não és Atlas itinerante!

Pois tu, pássaro,
assim como o poeta,
te encarceras nos limites do dia
que, mesmo aéreo,
não é senão
                         pouso
                                       forçado.


















Miró - Personagem Atirando uma Pedra em um Pássaro

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Um ENTRE SÍTIOS e mais Seis Poemas



ENTRE SÍTIOS (8)

(Para Lara Amaral e seu Teatro da Vida)

Num teatro de arena
Livre e experimental ,
Sem rígida marcação
A vida ocupa a cena.

Cenário vivo:
Entre o passado e o futuro, um vão
Onde flutua surpreendente o poema.

Descrição:
As palavras procuram seus personagens.
E a poesia confere unidade à ação.
No entreato multiplica-se a idéia:
Quando o elenco se entremeia à platéia.


SERVIDÃO

Sou escravo da trivialidade circundante,
E presto meu serviço a tudo que me sitia,
Mas lamento existir;
A tudo em que consisto
E que me faz consentir;
A tudo que não existe,
Mas sonho pressentir.

E cada poema meu não é senão o anseio
De um lapso no sistema dessas coisas,
Um rapto de seus nomes costumeiros,
Um concílio de rebeldes no meu cérebro,
Que elogiam a embriaguez da revolta
Em meio à precaução do cativeiro.


POLARIDADE

Eu decidi não parar:
Larva me faço
De raio solar.

Eu decidi me exilar:
Larva, me esqueço
Em solo lunar.


MANIFESTO BREVE

Não farei um poema
Rosnado em grunhidos.
Não sou cão de guarda
Ou anjo ressentido.


CONTRAMANIFESTO BREVE

Cuidado com o poema!
Rex tremendae.


ULTIMATUM

Dizem:
Ou você cria
Ou nada!


FALHAM AS PALAVRAS

(Para Rita, minha mulher)

No céu dos teus olhos incendidos,
Parelha de auroras persistentes,
O meu dia renasce outro dia
Em centenas de vezes ao dia.

É tanto que te devo de vida
Pelas perdas de mim que sustaste
Com suturas urgentes de amor,
Que me fizeste crer piamente
Que todo poema é vão clamor;
Que toda palavra é fugitiva.

Quando me dispus a persegui-las
Foi para depositá-las vivas
Em qualquer lacuna do teu peito.
Mas, que lacuna pudera haver
Se em tua serena humanidade
É inteiro que me entranho e me ajeito?
Sobram essas palavras imbeles,
E falhas como ornatos opacos,
Sobre a lucidez da tua pele.























Paul Klee, Villa R , óleo s/ tela (1929)

terça-feira, 6 de julho de 2010

Dois Novos Poemas



PALAVRA OUTRA

No papel a palavra não é aquela
Em saliva quente engrolada
E que eu mascava, triturava
Com meus molares anoitecidos;
Ou que se agarrava, pudica,
Às minhas gengivas.

Não era ali grafada, a palavra mesma
Que não viera do estômago revolto,
Que não fugira dos pulmões doutos de ar,
Que não vazara das veias permeáveis;
Vinda de um íntimo devoluto
Que, afinal, não era lugar algum
De reconhecida propriedade.

De onde viera tal palavra, então,
Para ser outra nos campos de escrita?
Nem alada viera, nem brotara de veio,
Nem irrompera em sangue de ferida
Ou em poros de lavoura.

Essa palavra chega ao papel gelada,
Depois de correr por uma serpentina
Que me atravessa tendo seus extremos
Imersos no mundo?

Essa palavra tem, no papel, semblante
De ostra deflorada a canivete,
Sem mistérios de águas salobras
De lama, de crostas lavradas no tempo.

Chega ao papel como um veleiro à marina,
Que com velas arriadas parece ali arraigado.
Essa palavra, se no papel se imobiliza,
É tatuagem plana de inseto sem ventre;
Hipnose de serpente cordata, sem presas;
Ou estrela negra arrimada em carta celeste.


TRAÇOS

Olhos
Com lírios.

Na pele
Apelos
Rentes.

Na face
Posfácios
Rubros.

Na boca
Os antecedentes.










A Inútil Presa - Marcantonio - Técnica Mista

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Uma Alegria

Um diálogo que me deu uma súbita alegria : Laura Alberto, do blog Im.Possibilidade, utilizou duas imagens minhas associadas a dois textos seus. A sensação é muito boa, sobretudo porque a escrita dela possui uma atmosfera absolutamente própria, simbólica, que, digamos, sugere uma releitura indireta das imagens que lhe são associadas de maneira não óbvia nem meramente ilustrativa. Sinto-me honrado de ter imagens num espaço que trata a relação imagem/texto de modo tão elegante e sugestivo. E só posso agradecer a ela.
Afora isso, ressalte-se a qualidade de seu texto: seus poemas me impressionam por multifacetados que são, densos, fortes, aqui e ali atravessados por imagens de teor surrealista que destemperam o tom confessional.
Chamo atenção para o poema MANIFESTO VIII - Corcunda, realmente admirável, cujo tom elevado, ergue, por vizinhança, as possibilidades da minha imagem.

Im.Possibilidadehttp://lauraalbertopossiveldiario.blogspot.com/