Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 20 de março de 2012

Cinco Poemas Em Outro Outono

EXERCÍCIO

A insônia pode ser
Um salto mental
Em busca de sol.


MISSIVA

Juntei quinhentas palavras,
Granítico vocabulário
Para erguer rígida muralha
Entre nós.
Fracasso de engenharia,
Este discurso de alvenaria
Não resiste ao sopro quente
Da tua voz.


PARA AMANHÃ

Preciso mudar o tom
E o suporte:
Não será no chão da ágora,
Com algum cinza neutro.
Dispensarei a parede sombria
Do cárcere onde grafitar-me
Sombrio redundante,
Sombra sobre sombra
Simula o transparente.

Será mudança meteorológica:
Um céu tão claro
Sobre um vinco apagando-se
Que ninguém diria horizonte-
Oriente-orientar,
E mar!
Com as palavras o sobrevoando,
Livres de sentido,
Ensinando às gaivotas, enfim,
O não-
Mergulhar.


QUANDO REPRESENTA A AÇÃO

Algumas palavras mudam de grau
Sem que nada se lhes acrescente.
Por exemplo:
Não é falada,
Mas escrita,
Que a palavra escrever
Exulta e se realiza.

Haverá outras?

Talvez a palavra pintar
Anotada com pincel e tinta.

Haverá outras?

Talvez a palavra sangrar
Realizada por um Pollock
Num dripping
Com um filete de sangue.

Haverá outras?

Não sei, não vou pensar.
Mas uma exceção extrema

Me vem à consciência,
Uma que plena apenas se realiza
Quando não falada nem escrita:
A palavra ausência.


CORRIDA*

A temporalidade
É a minha Atalanta,
E sou seu Hipômenes.
Preciso superá-la na corrida
Porque a quero desposar.
Ela é tão mais veloz...
Jogo-lhe uns pomos de ouro
À frente!
Mas, contra o mito de outrora,
Ela não os nota,
Passa rente sem lhes dar bola...


Guido Reni, Atalanta e Hipômenes, óleo sobre tela, 1616.



* Sobre a história de Atalanta e Hipômenes, ver aqui