Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Poemas de Final de Junho

ENTRE SÍTIOS (7)

(Para Bípede Falante)

Bípide, posto que da espécie
humana sapiens.
Mas, artrópode pela escrita
que em rede de si estende
para a captura dos sentidos
        desavisados.

Aracne desiste da disputa.
Athena se retira.
            E a teia,
             ao sol,
             brilha
   revestida de orvalho.



SETE HAIKAIS (NA PAISAGEM)

a

Árvores urbanas.
O sol sobre espesso muro.
Pássaro banal.

b

Vento em desconcerto
dedilha fios elétricos.
As nuvens já dançam.

c

Perpendicular
a chuva de pontos frios.
Inunda-se o plano.

d

Janela vazia.
Paisagem suprematista.
Branco sobre branco.

e

Úmido papel.
Pincel amarrado à cor,
correndo liberta-se.

f

Tarde desbotada.
A pele da fruta em chamas:
interino sol.

g

O dia desmaiou.
Ócio das alavancas.
O poema acorda.



DESALENTO (check out)

Agora não me vem
A palavra final
Que passe o troco às sensações.

















Sem Título - Marcantonio - Óleo sobre tela - 1997

Mais imagens minhas em Cadernos de Arte

domingo, 27 de junho de 2010

Entre Sítios e mais Dois Poemas



ENTRE SÍTIOS (6)

(Para Jorge Pimenta e seu
Viagens de Luz e Sombras)


O fogo já fora ateado
Na árvore do dia.
Não haveria mais
A sua neutra sombra.

Apenas assombro.


INTERDITADO

Olha,
a sorte ressuscita,
a desdita,
ao que parece,
também fenece;
e de se contrapor
à dor
esquece-se a prece,
agora abreviada
em verso belo,
monóstico,
osmótico
à vida paralelo.

Deixe estar.
Neste ponto banal (.)
(½ trema caído)
a rima extrema,
final.
Tornemo-nos mais abstratos
em abstrata arritmia
(aqui a tentação da rima ‘poesia’).
Sai pra lá, velha rima
que à vida não arrima!
Ai deus! De novo
esse ovo (oh!) de serpente
em omelete!
Não!
Aqui o pássaro se arremete
(porra! sai rima
tu mesma que já rimaste
mais acima; tu mesma,
a própria rima metalingüística
em provação artística).

Isso não tem fim!
Chega!
Pelo esforço
a rima aqui jazerá
sob o branco do papel.

Mas, voltemos ao pássaro
que se arremete ao céu
(não! não! não!).

Onde está a merda do pássaro
que se arremetia ao...? Ah!
- Te peguei!
Deixei de rimar!
(Ora, mas isso ainda rima com ‘ah!’)

É um caso perdido!
Retorno ao pássaro arremetido
para fecundar a metáfora
que o avião desdenha,
e falar in abstracto
das horas sem seus suportes:
o Agora, o Aqui e os Fatos.
Parece que não consegui
dizê-lo de modo não rimado.
Danem-se o dito e a desdita,
a rima
e o verso interditado!


RECEIO

O que farei ao perceber
Que minha canção resvala
E tece sem ardor?

Que o cérebro redundante
Já se iguala
A um rebocador?

Se o coração se fizer mediano
E se equalizar
Em linha de equador?

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Outras imagens minhas em Cadernos de Arte

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Um Poema de William Blake

THE LITTLE VAGABOND

Dear mother, dear mother, the Church is cold;
But the Alehouse is healthy, and pleasant, and warm.
Besides, I can tell where I am used well;
Such usage in heaven will never do well.

But, if at the Church they would give us some ale,
And a pleasant fire our souls to regale,
We’d sing and we’d pray all the livelong day,
Nor ever once wish from the Church to stray.

Then the Parson might preach, and drink, and sing,
And we’d be as happy as birds in the spring;
And modest Dame Lurch, who is always at church,
Would not have bandy children, nor fasting, nor birch.

And God, like a father, rejoicing to see
His children as pleasant and happy as He,
Would have no more quarrel with the Devil or the barrel,
But kiss him, and give him both drink and apparel.


O PEQUENO VAGABUNDO

(Na tradução de Alberto Marsicano)

Querida Mãe, Querida Mãe, a igreja é fria
Mas a taverna é saudável, agradável &quente;
E posso dizer que lá me tratam bem.
Pois nem no céu passaria tão bem.

Mas se na Igreja Cerveja pudessem dar
E um bom fogo a nossas almas regalar,
Por todo o dia rezaríamos &cantaríamos,
E da Igreja jamais nos afastaríamos.

Então o Pastor poderia pregar & beber & cantar
Seríamos tão felizes qual aves primaveris a voar,
E a Senhora Bebedeira, sempre na Igreja em oração,
Não teria filhos franzinos, nem jejum nem punição.

E Deus como um pai que se regozija em ver
Seus filhos como ele, amáveis e felizes a valer,
Não teria mais querelas com o Diabo e o Barril,
Mas lhe daria vestes, bebida &beijos mil.


O PEQUENO VAGABUNDO

(Na minha livre tradução-adaptação)

Querida mãe, querida mãe, a Igreja é fria,
Mas a Taverna é agradável, quente & sadia;
Além disso, digo: tratam-me bem por lá,
De um modo que não sei se no céu haverá.

Mas se na Igreja a cerveja nos fosse dada,
E um bom fogo a nos manter a alma animada,
Cantaríamos e, rezando o dia inteiro,
Não teríamos fora da Igreja paradeiro.

O pastor a pregar & beber & cantar,
E nós felizes como aves soltas no ar;
E Dona Abandono que na igreja tem abrigo,
Não teria filhos fracos, jejum ou castigo.

E Deus, pai amoroso que se alegra em ver
Seus filhos, como ele, felizes em viver,
Com o Diabo e o Barril não mais altercava,
Mas dava-lhe roupa & bebida e então o beijava.


O PEQUENO VAGABUNDO

(Na minha libérrima tradução-adaptação)

Ô mãe, minha mãe, na igreja é uma friagem,
Mas no boteco caloroso há sadia vadiagem;
E ainda lhe garanto: por lá só pratico o bem
E de um modo que no céu não me cairia bem.

Mas se na Igreja nos servissem boa cerveja,
Em meio ao calor que alma humana deseja,
Toda gente rezaria & cantaria pela madrugada
A nave da Igreja de gente viveria abarrotada.

O Pastor bebendo, a pregar & a cantar louvores,
E seríamos como pássaros na estação das flores.
E a Senhora Conversão na Igreja faria história
Sem crianças tristes, nem jejum ou palmatória.

E Deus, como pai camarada que folga em ver
Os filhos sadios, e vivendo com prazer,
Não faria mais encrenca ao Diabo & à garrafa do “elixir”,
Mas lhe daria beijos, um copo e roupa que vestir.


terça-feira, 22 de junho de 2010

Quatro Novos Poemas

ENTRE SÍTIOS (5)

(Para Andrea de Godoy Neto
e seu Olhar em Versos e Inversos)

sabemos: é sobre o vôo
que versa
a palavra ‘asa’
mas de tal modo é ela
e tão ansiosamente
ao espaço destinada
que mesmo inversa
é
 re\/oada
  re\/oada
   re\/oada
    re\/oada


FACE REAL

Em Botafogo
Olhei para o alto,
E, de repente,
Era o Cristo, agora vestido,
Acomodado
Na cruz inexistente.

Olhei para a calçada,
Um, dois, cem, mil rostos.
Olhei para dentro do ônibus lotado,
Faces cansadas e outonais.
Voltadas para fora.
A face mítica da cidade
Desaparecera sob os rostos reais
Daqui, agora.


CONFIDENCIAL

As palavras me confidenciaram
Que nas prateleiras do meu poema
Padecem ainda da originária solidão.

Conjunções e preposições
Ameaçam se atirar lá de cima.


DE GUARDA

Há algo do lado de fora.
Não é um corvo.
Não é a morte.
Escuta escuta agora!
É o silêncio
Que comigo se importa,
Um vira-lata
Pulguento e faminto
Ao qual enxoto, mas volta,
Acostumado que está
A guardar a minha porta.























Melancolia 12 - Marcantonio - Tec. Mista
(2006)

Mais imagens minhas em Cadernos de Arte

sábado, 19 de junho de 2010

Poemas de Meados de Junho



ENTRE SÍTIOS (4)

(Para Tânia Contreiras e seu Roxo-violeta)

Consta
que as violetas
e seus roxos
requerem pouca água.
É que a sua sede se faz
De imaginários matizes
E terrosos aromas.
Nesse pêndulo,
Suas raízes.


FEITO PEDRA

Perdi o costume de ser outro
Tal como poderia me dispor o dia,
Esse levante orgânico,
Essa explosão de portos,
Esse mercado assaltado por tantos dialetos.

Não serei outro após a meia noite.

Como me confinei no exercício
Desta angústia venosa retornada ao meu peito
Vinda dos meus pés chumbados
Sob a soleira de uma única porta?

Como despetalei o calendário
Deixando a inevitabilidade dessa única pétala
Metálica que vibra como paleta de oboé
Emitindo a mesma nota de gélido sopro?

Como fui constituir-me
Em outdoor de rua sem saída?

Perdi a capacidade de me contradizer
Em arquipélagos
Para me inteirar em continente
Dessas (anti)ilhas costuradas.

As canções curtas já não me embalam
Pois todas as palavras vazam
Por aquele filtro suspenso sobre as horas.

Se me tornei pedra, perdi a memória da górgona
Que mirei
No dia em que as notícias passaram a se acumular
Em monturos no meu quintal.


A PARTE E O TODO

O horizonte amoroso
Num fio de cabelo castanho
Em contraluz.

Teu corpo-teleférico
Atravessando essa linha
Entre as minhas mãos.


PALAVRA-LUZ

Na cópula com a escuridão
Injeto-lhe meu sêmen de fótons,
Semiótico

E espero
O renascimento da luz
Para dar-lhe outro nome.
















Joseph M.William Turner - Aurora no Castelo de Norhan - 1840

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Curiosa Dialética

Quando a conversa recaía sobre as relações humanas, ele costumava citar:
- É muito bom ser importante, mas é muito mais importante ser bom! – Sem declinar o autor da frase de efeito.
Era infalível que, dali a instantes, viesse com outra máxima:
- Não me importo com o que os outros pensam de mim, mas sim com o que penso dos outros.
Essa me soava individualista. Além disso, julgava eu que a segunda oração como que reafirmava o sentido da primeira. Eu objetava: ora, mas se é importante o que penso dos outros, daí decorre que o que os outros pensam de mim também é relevante; é uma mera inversão do papel de sujeito em objeto; quando olho o outro, sou sujeito, ele objeto; quando ele me olha se dá o contrário. Não seria melhor a conclusão “me importo com o que penso de mim”?
Que tolice a minha! Sempre tão apegado à definição dos termos e restrito ao meu orgulhoso formalismo filosófico. Pseudo-filosófico, para ser justo. Era simples a questão: o que o outro pensa de mim é importante para ele, não para mim. O sujeito de ambas as orações é o mesmo: eu. E nisso estava toda a diferença. A pessoa deve agir a partir das próprias convicções, e não motivar-se como um objeto que se adéqua ao que o outro predica. Era uma expressão de autonomia, confiança na própria capacidade de agir de modo autêntico e acima das convenções sociais.
Tudo bem. Mas ainda assim soava como um credo individualista.
Posteriormente pude constatar que para ele as duas citações estavam relacionadas por uma curiosa dialética, como se advogasse o seguinte:
- Ser importante é uma ilusão construída pelos outros a meu respeito. Como não me importo com o que pensam de mim, não me julgo importante. Mas, como julgo que o importante é ser bom, então, ao ser bom só me importo com o que penso a respeito dos outros.
Era uma estranha conversão de um suposto individualismo em sentimento altruísta! De deixar órfãs as minhas vaidosas noções livrescas. Se ele tivesse uma maior destreza com as palavras (que, no fundo, é menor do que a destreza de viver), talvez se expressasse assim: só atinjo a total sensação de ser eu mesmo quando vejo no outro um ser igual a mim, não um juiz, e nem mesmo um objeto do meu julgamento.
Pelo que acompanhei da sua vida, posso afirmar que a citação daquelas frases não visava disfarçar qualquer possível ressentimento contra o seu destino de homem comum e “desimportante”. Viveu a vida metendo-se nela dos pés à cabeça, jamais  desnaturalizou a vida como pré ou pós-vida. E morreu sendo bom, o que era importante.

Intermezzo

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Outros Poemas



ENTRE SÍTIOS (3)

(Para Kenia Cris e seu Poesia Torta)

a-

Da torre pós-Babel,
ilusoriamente
torta,
a alma livre
lambe a paisagem extensa
com a língua duplicada:
sentimento e razão.

b-

Por horror à revelação
do truque, ardil
do próprio engano,
o prestidigitador
reclama o favor
do eterno arcano:
farsa admitida.

Já o truque da vida
desdenha ocultação.
Para ser permanente
opera (desinibido
e em tom profano)
magia evidente
na pele do cotidiano:

contato humano.


AGADOISÓ

Há palavras correntes
com feitio d’água:
inodoras, insípidas, incolores.
E vitais, infelizmente.


HERANÇA

O meu avô era agrimensor.
Herdei alguns de seus instrumentos
Misteriosos que eu tanto admirava.
Mas o seu teodolito foi vendido;
Percebi sua ausência no armário
Onde era guardado solenemente
(eu achava que teodolito
Tinha algo a ver com deus).

Mas ganhei réguas, trenas, esquadros,
Magníficos transferidores, prumo, penas
E esse estranho bípede: o compasso
Que anda em círculos.
Ah, sim: um tira-linhas incompreensível
Porque não as tirava, mas as ordenava,
Paralelas.
Aprendi a utilizar a todos.
Esqueci de mencionar um manual
Cheio de ilustrações de um mundo
Desconhecido e todo certinho,
Incluindo um retrato do desaparecido
Teodolito.

Deixei para o final da lista
O que de melhor o meu avô me legou:
Uma planta cheia de linhas e letrinhas,
Com um X longínquo, quase apagado,
Assinalando
Por onde desterrar os meus olhos.


















Mondrian - Pier e Oceano - 1914

terça-feira, 15 de junho de 2010

Tensão e Densidade



1

Estando tenso
serei mais denso?

2

Não estou sobre o poema rabiscado.
(não sou peso de papel),
nem no poema obturado.
Remoto, não me escondo aqui.
A bem da verdade,
com um remoque em mente,
não estou nem aí.

Koan

domingo, 13 de junho de 2010

Entre Sítios (2)

(Para o Fouad Talal, do Versos de Cor)

Ah! Sim... O conteúdo das entranhas
é objetivo (ó eufemismo!)...
Já o cansa todo esse subjetivismo,
no qual o EU se mitifique
em currículo de dores, pessoal e aflito.

Havendo luz entre as suas têmporas
é o que ele transmite.







Clique, entre os vídeos relacionados, na 2ª parte.

sábado, 12 de junho de 2010

Seis Poemas



ENTRE SÍTIOS (1)

(Para Roberto Lima, e seu Primeira Pessoa)

Na casa clara, sem reposteiros,
Há um cadiquim de sombra de saudade,
Veladura diluída em terebentina
Que logo se evapora.

Ri-se a valer lá dentro da casa clara.
Mas, das muitas janelas
Os olhos vão ao largo,
Ou escalam galhos de céu,
Ou pendem para a terra
Das raízes clânicas de óxidos emigrados.

Na casa clara,
Poemas móbiles
Transcontinentais
Brotam do teto expansivo
Enquanto uma música toca sem parar,
Jardim em vasos flutuantes
De cores crônicas.

Na porta não há crivo algum,
Mas um polegar levantado:
Entra-se livremente
Na casa clara.
Rara.


DIACRONIA

Eu li a palavra LIBERDADE.
Pensei em flexibilidade
De juncos presos na margem
(Não pensaria em asas,
Já cansadas e recolhidas
enquanto metáfora).

Eu li a palavra EU.
Pensei em alteridade
Mas a ilustrei com um narciso
Aprisionado no espelho
De uma lágrima.

Eu li a palavra SOL.
Imaginei poros,
Ilustrei com raízes douradas.

Eu li a palavra AMOR.
Aí sim me ocorreu pensar
Em asas.

Eu li a palavra MORTE.
E pensei em desjejum,
Um café da manhã típico de hotel.
Que curioso!
Por que será?
Por que será?


GERÚNDIO

(Para o meu amigo Wellington Trotta.)

De bom grado serei
O grande ausente
Das festas do futuro
Se me atrasar ou me perder
Procurando o presente ideal.


POR HÁBITO

Escrevo versos
Com lápis de grafite.
Hábito de desenhista.
A palavra no papel
É só contorno.
Em torno, o ar
A perder de vista.


EVAPORAÇÃO

Agora éter...
Já evolou-se desse frasco.
Não ter.


AQUI OU LÁ?

Aipim
É nome breve
De fruta ligeira
E já sem casca.
Prefiro macaxeira,
Sono de flor soterrada,
Casca de sombra
E
Carne de alvorada.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Outras imagens minhas em Cadernos de Arte

quinta-feira, 10 de junho de 2010

PUZZLE

O quebra-cabeça jamais fora devolvido a sua caixa. Depois de montado, eu o ostentava orgulhosamente sobre a mesa, e iniciei o rito de ir olhá-lo, de hora em hora, com a esperança inconfessável de que as pequenas fendas entre as suas partes desaparecessem, soldadas e aplainadas por qualquer arte do tempo. Pouco tempo, se possível. Seria uma imagem integra que não pudesse ser retalhada, por uma lufada mais forte de ar.
Não pude evitar que ele aparecesse desalinhado algumas vezes; coisa de fácil reparo, no entanto. Mas, começava a acontecer com freqüência. Até que o encontrei embaralhado, o que me provocou uma estranha ira, daquelas de trincar os dentes, de cerrar punhos, de rosnar como um animal. Porra! Passei a mão sobre a mesa jogando a minha imagem desconstruída ao chão. Quebra-cabeça de merda!
Fiquei olhando como um estúpido para as peças espalhadas. Procurei por elas, antes mapeando sua localização para então me ajoelhar e recolhê-las uma a uma.
Remontar a minha imagem foi uma operação que se iniciou sob o peso de uma desilusão. Aquilo jamais teria se soldado sozinho desde o início. Que bobagem! Mas prossegui com a reconstrução apenas pelo desafio de rever o quebra-cabeça montado. Logo já me envolvia no prazer de desafiar a minha memória e rapidez. Uma corrida comigo mesmo! Apurei a percepção da coincidência de linhas, da extensão dos campos de cor, das formas negativas. Quando estava para terminar, tive a intuição de que faltariam peças. Olhei ao redor em sumária busca, mas prossegui.
Eu estava certo: faltava uma peça! Há de estar por perto. Procurei de todas as formas, e nada!
Foi penoso constatar aquele primeiro extravio. A finalização impossível, a  expectativa  permanente a partir  
daquela tatuagem escavada, ausência desenhada pelo contorno das peças vizinhas. Era sobre aquele ponto que o olhar primeiro incidia. O buraco sugava todo o quebra-cabeça como uma estrela que se apagasse; um ralo conceitual, um sorvedouro de sentido. 
Deixei aquela porcaria montada sobre a mesa, daquele jeito mesmo, falha, inacabada. Era outro tipo de permanência.
Dali em diante outras peças foram se perdendo. A cabeça já estava quebrada mesmo. Por fim, sobraram quatro peças que não podiam mais se perder. Era questão de jogá-las no lixo. Mas eu não podia fazê-lo. Pensei: quatro pontos cardeais. Assim os dispus. Vez ou outra, sem nada por fazer, me sentava à mesa e, com o queixo apoiado na palma da mão, ficava a lhes dar uns petelecos para que se chocassem. Outra bobagem.
Mas, afinal, qual era a imagem estampada no quebra -cabeça? Não me recordo. Só me lembro do desenho vazio da peça faltante. E dos pontos cardeais, claro.




Imagem retirada daqui

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Caso Típico

Sou um caso típico
De desperdício de si mesmo.
Como se me fendesse
A artéria femoral da alma:

Pressão com as mãos!
Torniquetes!
Paramédicos!
Emergência!

Tudo em vão.

Vaso inapelavelmente,
Enquanto nós tentamos me conter.


domingo, 6 de junho de 2010

Tal Como Me Ocorreu Ainda Há Pouco



( Feito na ocasião rara em que as minhas próprias palavras me levaram às lágrimas.)

ASSIM, MENINO EU

Alguma vez sou surpreendido
pela palavra que chega mais cedo,
Então, entre as coisas tristes com que lido,
faz-se um folguedo.

Este sorriso travesso e inapropriado
com que inicio um rito
que é ao tempo roubado,
um fazer-me menino que se oculta
em esconderijo
como se tivesse nas mãos
varinha e prodígios,

deixando a vida passar,
claudicante e a custo,
para inocente e num grito (a-há!)
matá-la de susto.


PROPEDÊUTICA

Deixemos de falar
como se falar fosse um evento.
Façamos silêncio:
- Sinta esse vento.

sábado, 5 de junho de 2010

Líricas ou Céticas Brevidades (Seis Poeminhas)

ROTAS

Está sempre em curso
A cotidiana navegação,
Deslizar para o que não somos
Entre o que não é nosso.


SIMBOLOGIA

Símbolos são símbolos,
Nada há que os explique.
Mas,
Não cruze a fina linha
Que separa o símbolo
Da coisa ela mesma:

Não se crucifique!


POÉTICA NÚMERO-ADVERBIAL

Para ser plural
Hei de me desmentir
Singularmente.


TEMPO:

Borracha e cimento.


IN DUBIO PRO REO

Eu me iludo?
Profano vício
Ou sacro ofício?
Sagrado serei
Pelo sacrifício?


ALVEJANTE

Para máculas causadas pela dor
Utilize o ceticismo,
Potente removedor de abismos.

E amacia o tecido da alma.
















O Método (33×65), Técnica Mista, 2004 - Marcantonio


Para ver outras imagens minhas Cadernos de Arte

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Três Poemas de Junho

DESPERTAR

(Para Assis Freitas)

Bandos de palavras canoras
carregam auroras
para a minha janela.
Mesmo na alternância
das horas
não as despeço,
E me desperto nelas.



CERTEZA

Já não sei o que,
Não será tal e qual,
Nem saberei como.
Pressentido,
Mas encoberto.
Quê? Qual?Como?
Com certeza
Será incerto!



ARQUEÓLOGO

Desprendidas da procissão
As palavras transmigram de objetos
E lhes comprimem a carne como ventosas,
Tanto que uma rosa não é mais uma rosa
Que não é mais uma rosa,
Mas uma coroa de conchas espetadas,
Vermelhas e aveludadas .

No meu espírito, agora
Há outros vales dos reis
De um diverso Egito:
Adormeço e acordo
Com olhos aflitos:
Caracóis com fôlego de guepardos.

Depois dos quarenta anos
Tornei-me em arqueólogo
De adormecidas perplexidades
E esquecidos fardos.






















     Fazer   Quarenta - Téc. Mista - Marcantonio.

Outras imagens minhas em : Cadernos de Arte

terça-feira, 1 de junho de 2010

O Lírico e o Épico

Se você encontrar lírios
em beiras de estradas
não venha me contar
(ainda que saibamos
que nem mesmo Salomão,
em toda a sua glória,
jamais se vestiu como um deles).

Mas, se você vir
aquela tal pedra
no meio do seu caminho,
mande-me notícias solidárias.


















Van Gogh,  Lírios de Saint-Rémy  (1889)

Fogem as Imagens

Aonde foram todas as visões que tive?
Viajaram tantas coisas que vi?
De onde me enviam esses postais
giratórios,
pálidos cata-ventos
discos de Newton em aceleração?






















Postado também no Mínimo Ajuste

A Vida e a Obra
















* Inspirado pelos comentários de Tânia Contreiras ( Roxo-violetae Andrea de Godoy Neto ( Olhar em Versos e Inversos ) sobre  o meu post  "A Praia e a Garrafa do Náufrago".