quarta-feira, 16 de junho de 2010
Outros Poemas
ENTRE SÍTIOS (3)
(Para Kenia Cris e seu Poesia Torta)
a-
Da torre pós-Babel,
ilusoriamente
torta,
a alma livre
lambe a paisagem extensa
com a língua duplicada:
sentimento e razão.
b-
Por horror à revelação
do truque, ardil
do próprio engano,
o prestidigitador
reclama o favor
do eterno arcano:
farsa admitida.
Já o truque da vida
desdenha ocultação.
Para ser permanente
opera (desinibido
e em tom profano)
magia evidente
na pele do cotidiano:
contato humano.
AGADOISÓ
Há palavras correntes
com feitio d’água:
inodoras, insípidas, incolores.
E vitais, infelizmente.
HERANÇA
O meu avô era agrimensor.
Herdei alguns de seus instrumentos
Misteriosos que eu tanto admirava.
Mas o seu teodolito foi vendido;
Percebi sua ausência no armário
Onde era guardado solenemente
(eu achava que teodolito
Tinha algo a ver com deus).
Mas ganhei réguas, trenas, esquadros,
Magníficos transferidores, prumo, penas
E esse estranho bípede: o compasso
Que anda em círculos.
Ah, sim: um tira-linhas incompreensível
Porque não as tirava, mas as ordenava,
Paralelas.
Aprendi a utilizar a todos.
Esqueci de mencionar um manual
Cheio de ilustrações de um mundo
Desconhecido e todo certinho,
Incluindo um retrato do desaparecido
Teodolito.
Deixei para o final da lista
O que de melhor o meu avô me legou:
Uma planta cheia de linhas e letrinhas,
Com um X longínquo, quase apagado,
Assinalando
Por onde desterrar os meus olhos.
Mondrian - Pier e Oceano - 1914
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Serei Poeta?
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Como gosto de poesias tortas... das suas, das da Kenia, que é uma fofa e escreve delicadamente bem.
ResponderExcluirBeijos.
↓
ResponderExcluirLindo todos!
...
Há palavras que escorremdoloridas pela face...
...
Mapa
Este mundo de curvas de níveis,
este planialtimétrico - traçado de vidas.
...
Sabes Marcantonho,
meu primeiro trabalho como desenhista profissional,
foi desenhar o mapa da minha cidade,
no interior do meu estado
cujo levantamento topográfico
foi feito por um amigo (topógrafo) do meu pai.
Tinha 17 anos nesta época,
"andei por tantas ruas, entre lotes",
na direção Norte até a capital
e cá estou lendo este 'tes(x)ouro' de poema...
Marcante Marcantonho!
Abraço-tchê!
Agadoisó é o máximo, Marquinhos, e nos pega justamente quando admite vitais as tais palavras-água. Mas a Herança, com o teodolito (parece mesmo coisa de Deus, assim dito), é ma-ra-vi-lho-so, com um quê de enigmática ternura, ou ternura enigmática. Você, definitivamente, É poeta!
ResponderExcluirAbração,
Tânia
Meu caro, embora relutes em ser poeta, o poema Herança é de uma beleza sem par, beira o limite da prosa contando uma história, mas cheia de lirismo, e eu me pergundo Teodolito? me fizeste desejar um teodolito para lembrar de um avô que nunca conheci.
ResponderExcluirabração
Homenagem digníssima para Kenia...
ResponderExcluirTenha uma ótima quinta-feira =)
Beijos.
Marco, belíssimo. Não sei se você conhece o tarot, mas a primeira estrofe do primeiro poema remete a dois arcanos do tarot, a Torre e a Estrela. A última estrofe "b" remete ao Mago.
ResponderExcluirE contas histórias em versos. Serás poeta? Duvidas?
bjs.
Marco! De encher os meus olhos da alegria mais pura! Pra mim que estou meio doente essa semana (por isso não vi antes essa homenagem tão bela!), valeu-me três vezes mais do que qualquer remédio de gosto estranho e eficácia duvidosa que eu tenha colocado na boca nos últimos dias!
ResponderExcluir"A alma livre" remeteu-me ao Humano, demasiado humano de Nietszche, e com que delicadeza você fala da minha poesia torta - perceber a sua percepção é a coisa mais fantástica, participar por um minuto das suas conexões mentais coloca-me de frente com a grandeza e a simplicidade do seu pensamento. Agradeço muito, com o sorriso maior do mundo.
A magia da vida é quase palpável no seu segundo poema, e o truque da vida assim nos mantêm todos vivos.
AGADOISÓ é da transparência necessária à àgua e à vida - trama genial de palavras. Lindo!
Estórias sobre avôs sempre me comovem - sejam elas reais ou inventadas. Não conheci nenhum dos meus dois, herdei deles só um sobrenome comum.
o teodolito do seu avô tem pra mim os ares de um caleidoscópio. Na certa faria a mesma magia se você tivesse tido uma única chance de ver através dele. =) Lembranças são herança valiosa. Guarde-as em local seguro, sempre.
Marco!!! Ainda estou com os olhos cheios de estrelas dessas suas palavras. Peço permissão para republicar o poema da Torre lá no Poesia Torta ( - é o único que conseguiria traduzir sem a perda da magia operada por você, meu vocabulário é simples, você sabe).
Agradeço de novo e de novo e novamente. Muito obrigada. =)))))
Beijo sempre carinhoso.
E o fluxo segue escapando pelos dedos transgressores que desdobram razão em sentimento e memória.
ResponderExcluirBípede Falante
magnífica a herança que constróis entre sítios com ardis de prestidigitador refinado. contigo as palavras são como agadoisó: insípidas, inodoras, incolores e vitais. felizmente!
ResponderExcluirum abraço, marcantónio!
Lara, falar da Kenia impõe um dilema: focar sua escrita, tão repleta de achados expressivos, com uma sábia simplicidade que projeta sentidos profundos, não raro desconcertantes; ou falar da terna empatia humana que ela demonstra? Resolvi, então, falar dos dois aspectos, pois deve haver entre eles, segundo vejo, uma intersecção inevitável.
ResponderExcluirUm beijo.
Marco, que beleza de versos sua homenagem. Confesso que não conhecia ainda o blog da kenia, mas fui lá rapidinho para entender do que tu falavas, e gostei um tanto. Fiquei com a imagem da "alma livre que lambe a paisagem extensa..."
ResponderExcluirHerança é maravilhoso! Tem um gosto acarvalhado, como vinho antigo. Fui lendo e lembrando do vídeo canopo, a sensação de sacralidade que envolve ambos.
Gostei demais!
sobre a imagem, poderia ficar olhando para ela horas a fio, sempre outra...
um beijo pra ti
Ô Tonho, o seu comentário me deixou comovido. Obrigado mesmo,
ResponderExcluire um grande abraço pra você!
Em tempo: "tes(X)ouro" é muito bom!
Tânia, realmente, no uso corrente há palavras que se tornam tão banais, tão sem graça, tão planas, mas experimentemos abrir mão delas! E, de repente, elas estão lá no poema, de mãos dadas com outras que as puxam para o fluxo do mistério.
ResponderExcluirPoeta ou não, me fascina o surgimento de uma frase solta e aérea que, em seguida,se faz copa, desce em troco e finca raízes num sentido antes ignorado, inconsciente. Alguns galhinhos aparados e... parece algo bom de ser dito. Um poema?
Grande abraço, Tânia. (Saudades do Roxo-violeta no topo da lista de blogs.)
Assis, acho que não fiz senão ordenar memórias sob esse viés que se pode dizer poético. O meu avô morreu quando eu tinha nove anos. Só então tive acesso a esses objetos dele que despertaram o meu fascínio e que me foram dados pelo fato de eu já demonstrar talento para o desenho. Mas o teodolito realmente sumiu. O nome soava tão bonito. Tenho esse apego simbólico por objetos "remanescentes", esses que parecem encarnar parte da vivência de seu antigos donos.
ResponderExcluirO seu comentário, como não poderia deixar de ser, conclui-se de forma belíssima. Sempre poeta.
Abração!
Olá Isabella! É antes de tudo uma homenagem sincera.
ResponderExcluirTudo de bom para você!
Beijo.
Ana,o meu conhecimento sobre o tarot é muito superficial. Pelo que você disse, é uma coincidência interessante. Os símbolos têm esses desdobramentos em variadas leituras, o que é muito fecundo, não é?
ResponderExcluirEstou superando essa dúvida, aos poucos, mas mantenho o marcador porque é bonito. Rs.
Beijo.
Kenia, não precisa agradecer nada não; é um poema que fala sobre o prazer de ler os seus escritos e frequentar o seu Poesia Torta.
ResponderExcluirA sua menção ao "Humano, demasiado humano" (um dos títulos mais belos!)me toca particularmente. É das minhas leituras constantes, daqui de onde estou posso vê-lo logo ali, cheio de papeizinhos-marcadores enfeitando o seu miolo. Quando comecei a lê-lo da primeira vez, decidi sublinhar as passagens mais importantes, bobagem da qual logo desisti, pois o livro todo ficaria pendurado sobre linhas de caneta.
Quanto ao que você falou sobre guardar as lembranças, percebo que tenho feito isso em muito cofres-poemas, sem segredo, deixando a porta entreaberta.
Desejo melhoras rápidas a você, Kenia. E que você permaneça desentortando incompreensões através dos seus versos.
Beijão!
Bípede, você escreve e eu leio fascinado.
ResponderExcluirAbraço.
Ô Jorge, obrigado. Os seus comentários não requerem assinatura para serem identificados; também por essa sua arte de mago de luzes e sombras.
ResponderExcluirGrande abraço!
Andrea, vale a pena acompanhar, não é?
ResponderExcluirEssa ligação que você fez entre o poema e o vídeo é perfeita. Essa sensação de sacralidade descreve bem a minha relação com esses objetos.
A imagem? Um Mondrian enigmático e belo, o que de melhor se pode fazer com segmentos perpendiculares inscritos em um elipse. Provoca evocações.
Um beijo.