Tenho certo fascínio pelo filme SATORI USO, do diretor paranaense Rodrigo Grota. Considero-o um verdadeiro achado cujo sentido se amplia quando se conhece a história que envolve a sua criação. Nesse sentido é um filme que possui um contra-face literária, digamos assim, ou mesmo conceitual, que, se não é indispensável para apreciá-lo como filme, amplia em muito o seu significado. O curta-metragem,lançado em 2007, “documenta” a estadia do poeta japonês Satori Uso em Londrina, na década de 50, utilizando para tanto trechos de um filme inacabado sobre o poeta, realizado por um cineasta underground americano, Jim Kleist Ocorre que o poeta e o cineasta jamais existiram, mas uma série de artifícios os fazem parecer reais. Logo, o filme é daqueles que relativizam a fronteira entre verdade e ficção, estabelecendo nesta fronteira o território próprio do poético. Agora, se você conhece o fato que deu origem ao roteiro do filme, este se mostra, talvez, como um documentário sobre o próprio ato criativo. Satori Uso, na verdade, foi inventado pelo poeta paranaense Rodrigo Garcia Lopes, que publicou, em 1986, num jornal de Londrina, uma nota sobre a passagem do poeta japonês pela cidade, fornecendo dados biográficos e publicando, inclusive, alguns poemas do “autor”. Quinze anos depois, ele mostrou o jornal a Rodrigo Grota, que teve a idéia de filmar um documentário sobre o poeta fictício. Rodrigo Garcia Lopes e Rodrigo Grota elaboraram o roteiro que só se tornou definitivo quando o diretor teve a idéia de criar o personagem Jim Kleist
Kleist ganha uma biografia que o liga aos poetas beats, como Ginsberg e Burroughs, e ao pintor Edward Hopper. Era um cineasta que se recusava a terminar seus filmes por crer que isso os aprisionava a uma forma fixa contrária a fluidez da vida. Suicidou-se em 1992. Já Satori, definido como poeta das sombras, é mostrado no momento em que estabelece uma relação com uma mulher, Satine. Após o rompimento, o poeta acentua ainda mais o seu isolamento, seu desejo de desaparecer. Tendo lançado um único livro, decide-se a não fazê-lo novamente.
Portanto, Satori e Kleist são artistas que se colocam intencionalmente à margem, cuja arte se afirma segundo suas próprias idiossincrasias, atendendo a uma necessidade interna e intimamente ligada à vida. Arte para si que quer prescindir de uma intermediação cultural óbvia, disposta a pagar o preço do esquecimento. Que sejam artistas “esquecidos” é algo imprescindível para que o artifício do filme funcione. Mas também se pode reconhecer nisso a questão sobre até que ponto um artista que faça esse tipo de opção pode ter o direito de existir. Ou, inversamente, sobre até que ponto os artistas canônicos não seriam, de alguma forma, produtos de uma ficção.
Esse ardil de simular uma biografia documentada de um artista que nunca existiu tem um antecedente famoso. Em 1958, o escritor franco-espanhol Max Aub, mais conhecido entre nós pelo livro CRIMES EXEMPLARES, lançou o “romance” JUSEP TORRES CAMPALANS, que revelava para o mundo a existência de um pintor catalão, Campalans, radicado no México, e que teria sido o verdadeiro inventor do cubismo. Católico, anarquista, companheiro de Picasso, Torres Campalans viveu em Paris até o começo da I Guerra, quando, desiludido com a arte, teria se refugiado no México. Aub inclui no livro documentação, anais, referências, um catálogo de uma exposição sobre o artista na Tate de Londres, em 1942, que acabou não sendo realizada; um caderno de notas do artista que teria sido fornecido ao autor por Jean Cassou, crítico respeitado; e, o mais impressionante, várias reproduções de quadros e desenhos do suposto pintor (trabalhos que foram realizados, na verdade, pelo próprio Aub. Há, inclusive, uma foto na qual Campalans aparece ao lado de Picasso.
A fraude de Max Aub tinha, é claro, uma intenção crítica e irônica. Após o lançamento do livro, setores desavisados da intelectualidade francesa chegaram a considerar como real a figura do precursor do cubismo. Isso talvez revele algo sobre a forma como certas tradições são construídas. Algumas frases atribuídas a Campalans expressam divergência e desilusão:
“O que explica se rebaixa. Por isso todos os críticos são pequenos.”
“Mentir de quando em quando para dar com a verdade. Não há outra maneira. Copiar engana sempre: estrada morta.”
“Eu pintava para me salvar. Assim como pretendo salvar minha alma no dia da minha morte que se aproxima. Para salvar-me na terra, supunha fazê-lo entre os homens que, não tinha dúvidas, seriam cada dia melhores. Quando me dei conta do meu equívoco, renunciei."
Torres Campalans com Pablo Picasso
Obras de Campalans (Max Aub)
Max Aub