Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Verdade e/ou Ficção


Tenho certo fascínio pelo filme SATORI USO, do diretor paranaense Rodrigo Grota. Considero-o um verdadeiro achado cujo sentido se amplia quando se conhece a história que envolve a sua criação. Nesse sentido é um filme que possui um contra-face literária, digamos assim, ou mesmo conceitual, que, se não é indispensável para apreciá-lo como filme, amplia em muito o seu significado. O curta-metragem,lançado em 2007, “documenta” a estadia do poeta japonês Satori Uso em Londrina, na década de 50, utilizando para tanto trechos de um filme inacabado sobre o poeta, realizado por um cineasta underground americano, Jim Kleist Ocorre que o poeta e o cineasta jamais existiram, mas uma série de artifícios os fazem parecer reais. Logo, o filme é daqueles que relativizam a fronteira entre verdade e ficção, estabelecendo nesta fronteira o território próprio do poético. Agora, se você conhece o fato que deu origem ao roteiro do filme, este se mostra, talvez, como um documentário sobre o próprio ato criativo. Satori Uso, na verdade, foi inventado pelo poeta paranaense Rodrigo Garcia Lopes, que publicou, em 1986, num jornal de Londrina, uma nota sobre a passagem do poeta japonês pela cidade, fornecendo dados biográficos e publicando, inclusive, alguns poemas do “autor”. Quinze anos depois, ele mostrou o jornal a Rodrigo Grota, que teve a idéia de filmar um documentário sobre o poeta fictício. Rodrigo Garcia Lopes e Rodrigo Grota elaboraram o roteiro que só se tornou definitivo quando o diretor teve a idéia de criar o personagem Jim Kleist

Kleist ganha uma biografia que o liga aos poetas beats, como Ginsberg e Burroughs, e ao pintor Edward Hopper. Era um cineasta que se recusava a terminar seus filmes por crer que isso os aprisionava a uma forma fixa contrária a fluidez da vida. Suicidou-se em 1992. Já Satori, definido como poeta das sombras, é mostrado no momento em que estabelece uma relação com uma mulher, Satine. Após o rompimento, o poeta acentua ainda mais o seu isolamento, seu desejo de desaparecer. Tendo lançado um único livro, decide-se a não fazê-lo novamente.

Portanto, Satori e Kleist são artistas que se colocam intencionalmente à margem, cuja arte se afirma segundo suas próprias idiossincrasias, atendendo a uma necessidade interna e intimamente ligada à vida. Arte para si que quer prescindir de uma intermediação cultural óbvia, disposta a pagar o preço do esquecimento. Que sejam artistas “esquecidos” é algo imprescindível para que o artifício do filme funcione. Mas também se pode reconhecer nisso a questão sobre até que ponto um artista que faça esse tipo de opção pode ter o direito de existir. Ou, inversamente, sobre até que ponto os artistas canônicos não seriam, de alguma forma, produtos de uma ficção.



Esse ardil de simular uma biografia documentada de um artista que nunca existiu tem um antecedente famoso. Em 1958, o escritor franco-espanhol Max Aub, mais conhecido entre nós pelo livro CRIMES EXEMPLARES, lançou o “romance” JUSEP TORRES CAMPALANS, que revelava para o mundo a existência de um pintor catalão, Campalans, radicado no México, e que teria sido o verdadeiro inventor do cubismo. Católico, anarquista, companheiro de Picasso, Torres Campalans viveu em Paris até o começo da I Guerra, quando, desiludido com a arte, teria se refugiado no México. Aub inclui no livro documentação, anais, referências, um catálogo de uma exposição sobre o artista na Tate de Londres, em 1942, que acabou não sendo realizada; um caderno de notas do artista que teria sido fornecido ao autor por Jean Cassou, crítico respeitado; e, o mais impressionante, várias reproduções de quadros e desenhos do suposto pintor (trabalhos que foram realizados, na verdade, pelo próprio Aub. Há, inclusive, uma foto na qual Campalans aparece ao lado de Picasso.

A fraude de Max Aub tinha, é claro, uma intenção crítica e irônica. Após o lançamento do livro, setores desavisados da intelectualidade francesa chegaram a considerar como real a figura do precursor do cubismo. Isso talvez revele algo sobre a forma como certas tradições são construídas. Algumas frases atribuídas a Campalans expressam divergência e desilusão:

“O que explica se rebaixa. Por isso todos os críticos são pequenos.”

“Mentir de quando em quando para dar com a verdade. Não há outra maneira. Copiar engana sempre: estrada morta.”

“Eu pintava para me salvar. Assim como pretendo salvar minha alma no dia da minha morte que se aproxima. Para salvar-me na terra, supunha fazê-lo entre os homens que, não tinha dúvidas, seriam cada dia melhores. Quando me dei conta do meu equívoco, renunciei."                     
Torres Campalans com Pablo Picasso
     

Obras de Campalans (Max Aub)



Max Aub

4 comentários:

  1. Satori Uso é para mim poesia em película, em preto e banco. Grota é um poeta que filma.

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  2. Não conhecia a obra dele e achei interessante. Bem radicais suas opiniões!
    abração

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  3. Este artigo expõe uma das maiores fragilidades do mundo contemporâne ao relatar um dado ficcional como se real fosse. A aparência de realidade permeia muitos links da rede mundial de computadores, levando os desavisados a crerem na fidedignidade de certas fontes que não passam de logros reais, distorções propositais ou crédulas de informações científicas, históricas, artísticas, etc. De um lado, a meta-realidade, digamos, que se converte em ficções fílmica e literária, a ponto de iludir intelectuais não inteiramente cientes da história das artes plásticas, de outro lado, a ilação deste modesto comentarista acerca da extensão de links imprecisos para comentários e dados açodados e falsos, sem lastro histórico ou científico a tornar imcerto grande parte dos conteúdos difundidos pela rede. Parabens pelo artigo, assim como pelo blog, que está muito bom e, ao contrário de tantas tolices cibernéticas, enseja um confronto inteligente de dados bem atuais, mesmo quando vinculados ao passado. históriico recente.

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  4. Marco, muito obrigada pela indicação deste link e do próprio curta, que não conhecia, embora talvez já tenha esbarrado nele em alguma exposição ou mostra. Gostei especialmente disso: "até que ponto os artistas canônicos não seriam, de alguma forma, produtos de uma ficção." Procede.

    Nesse sentido, quanto ao questionamento que as obras referidas pretendem, acho que a palavra "verdade" mostra-se deslocada. Tudo não passaria de ficção/ficções. Uma delas, a mais importante, o dinheiro, o valor de mercado que passa a ter uma tela, uma obra

    Abraço!

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