Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 26 de dezembro de 2010

Três Poemas na Última Semana do Ano

O POEMA


O poema te procura,
Remota ânsia,
Matéria escura;
Sons andarilhos.
Sino de faiança,
Chamado estranho
À tua vizinhança.

O poema concentra,
A tua distância
Na cela acesa,
Sol amparado,
Céu reduzido,
Vôo simulado
De ave presa.

O poema te arma,
És sentinela,
A mão na faca
Atrás da porta;
Hirto, velas,
No próprio pulso
As horas cortas.

O poema te detém
Remotamente,
Grato refém
Desse exercício,
Louca assistência:
Içar palavras
Suicidadas
No precipício
Da existência.


CYCLADES

A mesma folha
Enche-se de ilhas,
Uma, duas, cem.
Logo está saturada
De Cyclades
Flutuantes
Sobre abismo branco:
Uns tantos destroços vulcânicos
Coagulados.

Nada afunda
E nada se fundamenta.

Nenhum navio transita.
Não há naufrágios.


AFASTAMENTO

Com carvão desenho um perfil na tela.
É todo um ser de proximidades.
Recuo alguns passos:
O entorno enquadra o quadro.
Mais alguns passos para trás:
O entorno do entorno o engole.
Recuando ainda mais:
O entorno do entorno do entorno
Toma tudo para si:
Já não vejo o que pretendera representar.

Magritte, A Condição Humana, OST, 1933

domingo, 19 de dezembro de 2010

Quatro Poemas

ANALOGIA

É preciso limpar o sifão da pia.

Que simbólico é esse sifão da pia!
Uma curva que cria um lago,
Certo Letes represado
Que faz o esquecimento dos miasmas,
Do mau cheiro subterrâneo.

Um poeta limpando o sifão da pia.

- Vamos, vamos, Orfeu! Mãos à obra!


CODA

Eu a vejo encarquilhada
Junto à janela,
O olhar perdido,
Espantando as moscas
Persistentes
Num almoço distante.
Muito distante.

Eu a vejo encarquilhada
Junto à pia da cozinha,
Manipulando
Irritantes inutilidades,
Agora a faca e o tomate
Vermelho.

Eu a vejo encarquilhada
À mesa,
O garfo suspenso,
A refeição-esfinge.
Não há o que nutrir.

Eu a vejo encarquilhada
No leito.
Deitada de lado.
O braço estendido,
A mão espalmada
Para um óbolo abstrato.
A outra sobre a face.
Há dois sulcos fundos
Entre as sobrancelhas


ILUSÂO

É ilusório que eu transgrida
os teus ritos, ó rotina;
não sabia que eras retina.


EXPOSTA

(Após leitura de um poema de Mirze Souza, aqui)

Todo o meu pesar,
Empatia aflita,
Pela histórica ruptura,
Fratura de um sonho
Que jamais solidifica.

Marcantonio, O Avesso do Jornal 10
Técnica Mista - 1994  (Aqui)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Um Poema sobre o Natal e mais Dois Agregados

NATAL

As sombras da noite, lá fora,
remontam à era pré-histórica
quando os fósseis de agora
andavam sobre a terra
                                  sem museus,
                                  sem feriados,
                                  sem cristos,
                                  sem bem nem mal,
                                  sem Natal.

Aqui dentro, a película da luz artificial
sobre as faces se estende esfacelada:
estão todos pregados em suas cruzes
                                  alugadas.

Há desamparo,
mas reparo que só há bocas
que queiram sorver cardumes
de iguarias natalinas,
para emudecer os queixumes
de suas vidas bovinas.

Eis que o chefe da família,
perfeito homem de negócios,
começa a partir o peru
exemplar de uma espécie
que no futuro será fóssil.
Fóssil como o próprio futuro
                                sem museus,
                                sem cristãos,
                                sem feriados,
                                sem negócios,
                                sem bem nem mal,
                                sem natal,

                                só ócio.


ERRO

É um sofrimento
nem tudo dizer do que quero:
falo do que posso tal como posso
e espero.

Abre-se um fosso, rasgo exangue
De onde nenhum alívio sobrevém:
a palavra errada flutua no pus,
inútil refém.


SEMPRE INÉDITO

Não exijo coerência dos pássaros,
permanência ou conseqüência.
É todo um canto absorto
que explode no ar da manhã!
Como errantes partículas,
todos esses estrídulos brilhantes,
essas bolhas de luzes sonoras,
som que tem cor que em nenúfares
se transforma.

Não perguntarei amanhã:
- Eram vocês que cantavam ontem?
Será uma beleza sempre outra
que nunca poderá ser datada.

Van Gogh, Os Comedores de Batatas, óleo s/ tela, 1885

domingo, 12 de dezembro de 2010

Três Novos Poemas

AS HORAS DISPARADAS

Oh, meu amor, sei que teus olhos coniventes
Conhecem todos os rios vermelhos
Desenhados nas luas brancas dos meus olhos.
Foram tão infecundas todas as horas
Que não consumimos no amor!
Eram elas estes animais cruéis
Que nos levam em suas costas.

Não sei do que é feito o corpo dessas horas.
Será do mesmo carbono que está em nossa fragilidade
E no corpo do diamante faz a pele dura?
Quando outrora tentei lhes cravar as esporas
Elas não desembestaram o passo;
Se agora lhes puxo o freio, cínicas relincham,
Rindo das rédeas absurdas que tenho nas mãos.
Elas têm o olhar ríspido e fixo dos celerados;
As narinas hirtas, amplos túneis
Para o trânsito de um vento finito.

Oh, meu amor, sobre nós o céu tem rotas pavimentadas,
Para a corrida sem fim das nuvens amortecidas e vaporosas.
Mas, aqui no solo, já nos fere os olhos apavorados
A poeira que sobe como limalha de alumínio,
E o óleo queimado que das visões escorre
Não serve para lubrificar nossos músculos
Ou as cartilagens ressecadas da espinha que nos sustenta.

Gostávamos desse vento quente na cara
Sem saber que ele era a nossa perdição:
Achata as nossas feições
Como se tivéssemos os rostos contra uma vidraça
Que um mínimo sorriso pode trincar;
Vem erodindo em nós o frontispício
Das nossas esperanças;
Desidrata nossas pálpebras e lábios;
E pincela ácido em nossas cordas vocais
Para que não blasfememos contra o outono.

Oh, meu amor, já me caem dos bolsos os fatos irrelevantes,
As poucas moedas, as balas de hortelã, as chaves
Uma a uma, e meu mini-dicionário de hieróglifos.
E ainda sinto tão virgens as solas dos meus pés!

É urgente que falemos com os olhos
Porque as borboletas carinhosas que me saem da boca
O vento as arrebata e esfarela antes que toquem teus ouvidos.

Agarra, meu amor, os meus dedos,
Que como os teus já são garras limadas,
Que não conseguem lanhar o dorso do tempo:
Não poderemos saltar sem arrebentarmos nossos corpos
No rastro de pedras frias e cortantes
Trituradas pelos cascos das horas disparadas.


COMPAIXÂO

Tenho universal ternura
por todos os derrotados:
nós que temos cota finita
de ar para ser inspirado.


REVISÂO

Faço essa noturna leitura,
Quiromancia do presente:
Todas as linhas do teu corpo
Nas minhas mãos conferentes.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Três Poemas


NÃO SEI O QUE É MANIFESTO


Eu não quero falar do pouco;
O pouco já está em minhas mãos.

Não me interessam as migalhas
Que já estão sobre a mesa
E grudam nos meus cotovelos.

Os passantes não me interessam.
Os transeuntes são o que são:
Untam-se de sol e suor
E passo derreado entre eles
Que comigo passarão.

Não quero falar da encefalite, da cefaléia,
Da artrite, da artrose, da isquemia
Ou de qualquer necrose da alma:
Farmácias são tão banais.
Os dramas repetidos, performáticos,
Já não são mais drásticos:
Eis o nosso solo comum.

Não quero falar dos cactos cordatos,
Da harpa lírica de arames farpados.
Também não entro em perfumarias,
Cosméticos não me interessam:
Os disfarces já são as faces.

Quero terminantemente
Ignorar o conseqüente:
Só me interessa o desavisado:
Como se afirma a negação.

Mas também não me interessam
As margens altas do que digo,
Esse porquê do dever dizer o que digo:
Não sei quem foi mallarmé,
Não sei se foi mal amado,
Só busco o precipício no qual se chocam os dados,
Se rolando vão barthes no inesperado, e daí?
Também não sei de lacan,
Se laico, lacrado ou sagrado,
Se césar, se cristo ou kristeva,
Se jakobson, se romance, se karamazovi
Se saussure, se salsugem, se salva de palmas;
Se freud, se foda, se forca;
Se jung, se unhas ou ungulados;
Se ossian, se cioran, se siderados,
Se fósseis ou fossas profundas;
Se deleuze, se de luzes ou sombras.
Não quero saber dos ecos,
De longe, de perto ou de humberto .

Não quero em apoteose orar a ti, ó teoria!

Eu quero falar do nada
Que não cabe em minhas mãos.
O que posso viver não preciso dizer.
O que quero dizer é o que não vivo.
E é vão. Não é tomara, ou oxalá.

Ainda te superarei, ó referência,
Com uma palavra deserdada,
Anti-palavra que nada dirá.


EROSÃO

Meu espanto maior
é não-fala,
raiz vital
erodindo por dentro
a rocha vocabular.


NATURAL

O teu corpo muda.
Mudo, o meu corpo
em si mesmo o percebe.
E daí, se nos transfigurarmos
enquanto nus brincarmos
nas águas do rio que segue?

Nossa nudez se integrará
à transparência.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Quatro Poemas Para Receber Dezembro.

MESQUINHO

Eu amesquinho as tuas asas
Enquanto ejeto os meus temores.
Nisso, eu mesmo me torno mesquinho
E verto um vinho que eu não beberia,
Vinho acre de volume amazônico.

Nas vielas em que me vejo
Comigo mesmo não cruzaria
Se fora antes advertido:
É que estou vindo esse ser soturno
Com as mãos nos bolsos sempre.
Quem me garante que não guardo
Escondida uma navalha
Para me desfigurar o rosto?

Ao menos sei que me avizinho,
E tenho um átimo de segundo
Para evitar a minha má companhia
Em sua descida aos subterrâneos.


VARIEDADES

Parece que o tamanho não diz respeito à poesia:
Não é documento que a habilite.
O poema é protéico,
Veste o mínimo,
Veste o máximo, veste o excedente.
Contém momentaneamente o trânsito.

A águia não cabe de volta
No ovo de águia.
O céu é o novo ovo
Da águia.
Mas os olhos da águia têm pupilas.
O bico tem uma curva agressiva.
Na cabeça da águia uma penugem
Vibra em paz ao vento.
A águia é uma panorâmica.
A águia é um close.

Cabe um corvo num haicai.
Cabem mil corvos num haicai.
Mas não cabe todo “O Corvo”
Num haicai.


VÉRTICE

Há momentos em que pasmo!
E o pasmo é um lacre
Sobre as horas restantes do dia,
Ver se torna adentrar uma fresta
Exclusiva.

Como agora: esse caramujo
grudado à vidraça epifenomênica


CONTRA-ATAQUE

Do meu próprio palavrório
Rio sintético.

Ilustração de Doré para  "O Corvo" de Poe

sábado, 27 de novembro de 2010

Se Novembro Finda...

PELA MESMA VIA

                  Para Mai

O que colhe o olhar ao longe?
Não serão flores
Que a estas a atmosfera faminta destempera;
Não serão pássaros
Que estes ao longe são lentas formiguinhas
Subindo pelas paredes do ar;
Não serão cores
Que remotas abdicam de colorir;
Não serão linhas
Que pela distância têm os ossos desconjuntados;
Não será fumaça
Que no longínquo não há respiros ardentes;
Não serão rios
Que estes do horizonte caem na foz suspensa;
Não serão números
Que já estão lá acampados no conjunto vazio;
Não serão nomes
Que os muros do olhar não têm ouvidos;
Não serão pedras
Que estas aos pés é que são sólidas;
Não serão almas
Que almas distantes não se movem.

Talvez os olhos ao longe nada busquem,
Mas enviem, remetam, revidem.
Quem sabe projetem algo que sobre o nada incide?
Projetem o que? Isso: o “quê?"  [o quid].


PRONOMES IMPRÓPRIOS

Seja sincero, sujeito! Tudo é você, não é mesmo? Sobretudo
por eu não saber se quando falo você não é ao nós que me refiro.
Mesmo porque nesse tudo-você convivem outros-você-mesmo
com si-mesmos outros, tais como esse eles que para mim mesmo escrevo 
quando você nos lê.


PIQUETE

Sons desencaminhadores
Propondo pactos:

- Deixa o dia se perder!
A tua alma
Já pertence mesmo
Ao vazio... Das palavras.


Marcantonio, monotipia s/ título
Outras trabalhos meus AQUI

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Distâncias, Procedimento e Registro Flutuante

DISTÂNCIAS

Olho para o sol
no extremo
da vertical.
Olho, no oposto
Ponto,
A minha sombra
Residual.
O sol.
A minha sombra.
A minha sombra
O sol:

Há um nada entre eles.

Olho os ponteiros
Do relógio,
O das horas,
O dos minutos
(Aquiles e a tartaruga).
O ponteiro
Das horas.
O ponteiro
Dos minutos:

Há um nada entre eles.


PROCEDIMENTO

Primeiro é o registro súbito,
Fotográfico,
De um pássaro aguardado
Que não se sabe de onde vem.
Ou, grosso-modo, um esboço
De pássaro deposto em pouso.

Prendo-o na gaiola da imagem
Para reformulá-lo.

Pois a um pássaro solto
Não se pode modificar.

Mas, se já é perfeito o pássaro
Para ocupar as alturas,
Por que alterá-lo?

Trata-se de outra forma de voar.


REGISTRO FLUTUANTE

Encontrei num caderno amarelado
A letra trêmula de meu pai:
Uma anotação banal -
Lista da feira -
De um dia também banal.

Porque era meu pai falecido
Aquela escrita se desgrudara
Daquele dia.

Como se fora aquele um dia virgem,
Habitado por um só ser flutuante
Cujos pés não aceitassem o alvitre das horas,
Cujas mãos não se maculassem nos objetos,
Cujos olhos não ocupassem um raio de sol.

Algum dia terá tal resplendor
Um só dos meus poemas?


Escher, Liberação

domingo, 21 de novembro de 2010

Que Haja Sempre um Poema Efêmero na Primeira Página!



SUMÁRIO

...................................................................................Amanhã                                                                                  
Viverei um dia
Que não seja sumariado
Pelo índice remissivo das horas.

Se não for amanhã
Será
...................................................................Depois de amanhã.                                                  

Mas, se acaso não for
Em um dos sete dias
Desta coerção semanal,
Quiçá esteja ele entre os dias da
......................................................................Próxima semana. 
                                                        
Vá que transcorram quatro semanas
E esse dia único não venha...
Não há de ser nada,
Ele me surpreenderá no
...........................................................................Mês que vem.                                                                  

Porém, se os meses se contarem doze
E não propiciarem esse dia,
Ele virá no
............................................................................Ano seguinte!
                                                                 
Ora, mas se ele não incidir
Sobre uma dúzia de anos? Paciência,
Eu aguardarei esse dia improvável
Para os oito anos restantes da
.......................................................................Década vindoura.

No entanto, se as décadas rolarem por
.............................................................................. Meio século,

Receio que esse dia de liberdade
Não virá mais, não chegará antes do
...................................................................Fim do meu tempo.

Ou será ele próprio o
.................................................................................Último dia?



Mitos

Gerome, Pigmalião e Galatéia

Nunca gostei do mito de Pigmalião; porque creio que há algo de nobre no artista que subestima a própria obra (orgulho às avessas?), mais ainda naquele que, de ato pensado, é capaz de destruí-la. Talvez haja nessa visão um franciscanismo hipócrita da minha parte; ainda estou consultando o meu inconsciente para investigar.
A esse respeito, não sei se por engano,  sempre vi no mito de Orfeu uma alusão ao caminho do artista: quando ele olha para trás, perde o seu objeto de desejo; fixado pela perda ao momento único, desesperado, será estraçalhado (fragmentado) pelas ninfas, as mesmas que o cobiçavam ao cobri-lo de glória.
Esse olhar para trás é uma decisão presente e se refere ao apego pelo presente como afeto, ao aprisionamento do desejo no que já existe, à obra, enfim. Mas, criar não seria um ato ascensional, mesmo que ilusório? Pois parece que só inflama o desejo e merece o afeto a obra que está para ser feita. Ela ainda não existe! E se já existe é porque chegou o fim, sedimentou-se ao patamar que não é mais do que o próprio térreo. E a obra realizada se torna um signo da impotência, do desfalecimento, do desespero íntimo que nem as dialéticas noções de glória e reconhecimento, nem a pequeno-burguesa idéia do dever cumprido são capazes de aplacar. Pois o artista sabe que faria tudo novamente mesmo que fosse de maneira anônima. E, no fundo, sempre é um esforço anônimo, senão para ele próprio.
O amor pela obra presente só pode ser relativo e volúvel. Alguém nos diz que é boa, mas desconfiamos que não. Em contrapartida, quanto amor pela obra futura que é cobiçada entre o entusiasmo e a melancolia pelo temor de não poder realizá-la. Muitos artistas dizem lidar com o efêmero, mas fazem registros e documentam a obra para que não seja... efêmera! Dirão que é para a remontagem posterior do próprio processo, do seu percurso; porém, se há registro é porque julgam que o que importa é a obra (mesmo que seja feita de fezes de artista). Ora, se há processo ativo ele é interno, e se refere à única obra que não é efêmera, a futura. Processo se faz por etapas superadas, relativas, que não podem ser superestimadas. Parece que é inevitável a confusão entre o olhar do artista e o olhar do outro que o julga a partir da obra já realizada.
Desconfio que Michelangelo jamais chegasse a desafiar o seu Moisés; só um observador não-criador poderia dizer à estátua: Parla!
Talvez para muitos essa questão não se refira à gênese da obra, mas ao Eclesiastes. Quem sabe até para mim mesmo! Ou isso se deve à minha desconfiança para com o que realizo?

Michelangelo, Moisés




quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Um Poema Em Doze Partes

POR TRÁS DAS CÂMERAS

I

Teu coração se mistura
Ao ar frio e instável.

Que fazer com o que te cerca?
Tanta coisa miudinha,
Tudo que amiúde alinhas
Em inventários sentimentais:
Coisinhas, coisinhas
Tão tuas,
Tão cotidianas e amoráveis!
Tão chegadas aos teus olhos!

Como impedir que se extraviem?

II

Janelas reticentes...
Quem é teu vizinho?
Quem - junto a ti
Ou a mil cabeças -
Não estará sozinho?

III

Na noite convulsa,
A tua mente girará
Como um farol disparado
A repartir as trevas
Em angulosas frações:

O universo sustenta
A tua insônia.

IV

E pouco importaria
Se os peixes se trocassem
Com os pássaros;
Se cavalos fossem só os marinhos;
Se as maçãs caíssem para o alto;
Se os homens fossem todos irmãos,
Ainda assim teus olhos teriam
A solidão das câmeras.

V

Há ninhos que ignoras
Sob os parapeitos lívidos.
Há rachaduras no reboco,
Vias angulosas que levam
Seres diminutos-diminutos,
Tingidos pelo pó amargo
Do edifício.

A tinta se desprende das paredes,
Raspas de palimpsestos:
Um toque menos doce
As transforma num sal amnésico.

Madeiras apodrecendo
E tacos soltos,
Pequenos quadros sem paisagens.
Canos oxidados e mármores
Com veios corroídos.
Os azulejos encardidos
Já órfãos da sua série.

O mofo, a gordura calcificada,
As teias devolutas (nem as aranhas
Te habitam).

VI

A faca sobre a mesa
Tão distinta da toalha!
A angústia entre os dedos,
Uma fissura, um rompimento,
Uma falha.

A fruta sobre a mesa
Concertante com a parede!
A angústia entre os olhos,
Uma armadilha, um cerco,
Uma rede.

VII

Estrelas há
Que tu verás queimar
Ao dia azul
Se a mente vazar
Por atalhos cortados
Nas horas.

VIII

Se de uma varanda distante,
Observada da tua janela,
Faces diluídas pelo espaço
A ti observam... O que pensar?

Que os olhos se chocam
No ponto médio
Entre o anonimato dos rostos?

Eles também são seres blindados
Como tu.

IX

Formas são
O que o que a tua mão quer
Na areia ardida,

Essa argila indócil.

X

Em dado momento
A alma nada pode
Ou determina.
Então, o corpo excede,
Se arremete para além
Como mastro de nau
Rompendo a neblina.

XI

Não há sendas
Verticais
Nessa via dupla,
Ir e vir,

Percorrendo as rachaduras
Do dia,
No tempo desses segundos
Orgânicos,
As pulsações.

E queima-se um pavio,
E soam uns bordões.

E tu guardas o teu lugar
Sem chegares a qualquer parte.
Ainda estarás aí se te mudares.
Sempre, se estiveres,
Será aí.

XII

Tudo o que há
É o que vês:
Grãos, gralhas, gemas,
Bolas de esterco.

Tudo o que ouves
É o que vês:
A boca exala fonema,
Prosódia de bêbado.

Tudo o que cheiras:
É o que vês:
O pus da perna enferma,
O capim seco.

Pouco importaria
Se os peixes se trocassem
Com os pássaros;
Se cavalos fossem só os marinhos;
Se maçãs caíssem para o alto
E os homens fossem todos irmãos...

Ainda assim terias o foco solitário
Das câmeras.


terça-feira, 16 de novembro de 2010

Três Poemas de Meados de Novembro

OLHOS PLÁSTICOS

Os meus olhos estão ausentes.
Há duas flores em seu lugar,
Justas na cavidade ocular.

Não são flores quaisquer;
São plásticas:
Não têm lastro de realidade,
Não secam nem se dissolvem.

Quando prevejo florações, é certo
Que elas ocorram perto de mim:

A visão se me tornou a cegueira de florir.


PASSAGEIRO

O que muda a minha palavra
Na face de um mundo surdo?
Nada sabe dos meus acenos
A alma de um mundo cego.
Meus ouvidos são obsoletos
Para esse mundo emudecido.

Ah, mas o mundo anda!
Corre o mundo veloz,
Velocíssimo pelo espaço!
E me leva no bagageiro:
Um passageiro
Mudo,
Cego,
Surdo
E paralisado.


CONTRA NARCISO

Não me fascinou
a minha imagem
simétrica
(fantasma nítido
sobre a água clara).

Vi, além, o fundo,
o fundo escurecido,
o fundo vazio da luz
dos nomes.

Enamorei-me desse fundo
onde tudo não era eu.

Marcantonio,  Melancolia 47 - Narciso - 2007

Outras imagens minhas AQUI

domingo, 14 de novembro de 2010

Três Poemas

I- EMPRÉSTIMO

Para duelar contigo
trago onomatopéias lânguidas,
e a face branda
que roço nos teus seios nus.
Tenho a mente pura
amparada por ternuras,
e rancor nenhum.
Amando, confio-te o meu paradeiro,
preserva-o como a uma confissão.
Nada sei de raivas e remorsos,
passam apenas, sempre passarão.
Escuta isso agora:
são tantos os meus sonhos e apelos!
Mas tu poderias concebê-los enfim?
Toma-os, porém, tenta convertê-los
e serão teus em mim,
que eu já dou aos teus tanto desvelo
que os sonho, emprestados a ti.


II- LUGAR-COMUM

Doce, assim definiria o teu corpo. Doce.
Mas, pouco fosse, diria então embriagante.
Não sendo anda o bastante, insuficiente
Este lugar-comum, diria a ti bem rente:
- Teu corpo, o teu corpo é tão quente!

E não há nada no teu corpo que eu invente,
Mesmo se é ele a aventura que empreendo,
Essa loucura em que louco me entendo,
O desatino que incendiado me conduz
Para um ponto de ti no qual eu destilo luz.



III- PULSAÇÕES

Há silêncios breves entre nós;
Sombras rápidas interpostas
Como negativos fotográficos.

Algo entardece subitamente
Como se fôramos feitos de células-
Estrelas que mudassem de cor.

As veias dos nossos contatos
Obstruem-se, vez em quando.

Mas há sístoles e diástoles.

Então giramos num círculo virtuoso:
Ora nos digladiando nas arenas
Que montamos por um triz;
Ora dando asas ao verbo amar
Que conjugamos felizes e febris.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Em Tempo Real

Esta é uma experiência urgente:
escrevo em tempo real um poema
que ainda não é poema,
que talvez nem queira ser poema,
que talvez seja apenas um raio circulando
entre as minhas orelhas
como se fosse muita energia
para o meu circuito fechado.
Em vias de um curto circuito
abro as janelas para a noite
em busca de sol, porque se trata sempre SEMPRE
de ansiar por sol, mais sol
(vê? Goethe acaba de pincelar algo na minha garganta)!

Entre a necessidade de dizer e a forma de fazê-lo
crescem as unhas, doem os ossos raízes expostas,
as células revalidam  a sua ditadura tão longinqua
que que costuma ocultar-se sob noções abstratas

(basta ver que não falo de sangue porque não o reconheço
sob a rotina pálida da pele do meu corpo, eu devo ser anêmico,
eu devo ser exato, só sei do sangue o nome hemácias, o nome
hematócritos, linfócito, hemoglobina, plaquetas; sim, eu tenho
a anemia da abstração, mas não sei quantas vértebras
há na coluna vertebral, afinal os ossos ainda resistem
quando todo sangue já se evaporou; para os ossos
não crio metáforas pois já são eloquentes em si mesmo; respeito
a dor e a densidade histórica dos ossos, sobretudo do fêmur,
o maior deles, difícil de ser extraviado numa exumação)!

Mas entre a forma e o conteúdo há um lapso a ser desfeito
com murros na mesa, com o mandar à merda a estética,
a semiótica,  a esclerótica, a robótica e qualquer tipo de ótica!
Já há tantos poemas no mundo, formam uma longa cauda
de réptil ondulando sobre uma cratera vulcânica aberta há séculos.
Que falta fará mais um? Que falta farão essas digitais aos dedos  que
virarão

                                         pó?

Como transformar essas linhas num poema? Para que?
A próxima linha está vazia, como esta estava há 38 caracteres atrás.
Com que encherei a próxima linha?
Acabo de preenchê-la com a pergunta: "com que encherei a próxima linha?"!
Esta aqui adornarei com os caracteres da angústia. E a próxima também:
angústia, angústia, angústiaangústiaangústiaangústiaangústiarrrrrrrrrrrrr
Já me sinto melhor.
Não seriam as linhas da escrita a melhor transcrição da idéia do tempo?
Ocorre que esqueci do ponto final ao fim de tanta angústia há quatro linhas atrás!
E ainda há um ponto e vírgula sobre a minha cabeça como uma espada de Dâmocles.
Qualquer dia conto sobre a história de Dâmocles.
Mas quem quer saber da história de Dâmocles?
Um dia cairá a vírgula presa por um fio de cabelo
e restará apenas o ponto final. Mas havendo um ponto final
ele indicará que algo foi concluído. Três pontos indicariam suspensão...

... reticências  não seriam um triplo obstáculo ao infinito?
Deste ponto de interrogação, caindo o ponto resta uma foice!
(Muito apropriada foice que  também já foi símbolo do trabalho no campo).
Mas não estou com isso desviando os olhos da idéia da morte,
pois comecei este nunca-poema ao ouvir a história de uma mulher
encontrada morta em sua casa. Sofrera um enfarte. Morava sozinha.
Foi quando abri as janelas e vi toda a não paisagem da noite e chamei
pelo sol, mais sol! E me lembrei do LUZ, MAIS LUZ! de Goethe:
um ícone literário se misturara à minha reflexão sobre a morte!

Mas eu pensei em dar conta de todos os pássaros sombrios
que se chocam indistintos dentro da minha cabeça,
e de todo um oceano que não vejo mas sei que está lá,
e de toda uma floresta ambulante como aquela de Macbeth,
e de todos os dias que não são promissórias resgatáveis,
e de todos os dias que são asas transparentes de inseto,
e de todas as tempestades contidas nas íris dos meus olhos
e de tudo que não pode ser nomeado como unidade.
Mas é sempre em vão, pois uma coisa é a coisa mesma,
outra coisa é o meu medo da coisa, e outra coisa é a palavra

COISA
essa coisa, aquela coisa, todas as coisas. Coisa nenhuma!
Não vou reler o que acabei de escrever. Se há erros de ortografia,
que permaneçam como rugas importunas. Se faltam letras, e daí?
Que importam falhas dentárias para um jamais-poema que não pretende sorrir?
São 2:20 de uma madrugada propícia à insônia.

E não haverá uma ilustração?

Não.

      

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Três Poemas no Início de Novembro



ADVERSA

A palavra víscera
É importantíssima,
A palavra víscera.

É palavra avessa
Ao sol mais puro.
É palavra espessa,
Conduto escuro.

É tão importuna
A palavra víscera,
Não se coaduna
Com pele e carícia.

A palavra víscera
Tem oculta face
Que se pronuncia
Invasiva, rapace.

A palavra víscera
Não é gregária:
Não tem convívio,
Coisa contrária.

A palavra víscera
Faz-se sevícia
Aos ouvidos sãos:
É cirúrgica e dura,
Requer sutura
E cauterização.

E mais se oculta
A palavra víscera,
Reativa obliteração,

Se o mau poeta
A exterioriza
Pelo eufemismo
Da conotação.


ONDAS INTERNAS

O que me aterroriza tem sempre a feição
De uma perda de humanidade,
De fim do mundo que me transcende;
Uma invasão de oceano afogando os signos.

Por isso me aplico tanto em sonhar,
Para resgatar desse líquido vácuo
Uma coleção de imagens humanas.

A água mina do fundo lacerado do barco,
E eu, com uma canequinha,
Faço ondas tremendas do lado de dentro.


NEGAR TRÊS VEZES

Poesia, tu és tão inútil!
E me envergonhas.
Quisera negar-te três vezes.

Acaba de cantar o galo pragmático;
E o meu dia, que pertence ao mundo,
Austero se inicia.

Guardo-te na mala, poesia,
Como se foras um boneco de ventríloquo.
























Da Vinci, Desenho Anatômico.


* Postei hoje um poema no Mínimo Ajuste, aqui.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Referenciais

PARA MEU PAI

Será chegada a hora de enumerar
Tudo o que recebi de ti?
Antes de tudo, a vida,
Perplexa ânsia de permanecer partindo.

Nos distantes dias de inciência
Os balizamentos encantados
Entre a verdade e o medo,
Entre a imagem e o real...
E tantas notícias sucessivas
Vindas da tua fortaleza:
A noção de honra em meio ao mundo desabado;
A pura e granítica sensação do humano,
O que vai, o que vem dentro do mistério sem palavras.

Ah! Certa dignidade em ser feito de sonhos não revelados.
A ingenuidade de um cavaleiro solitário de espada em riste
A pregar no próprio jardim.
O estoicismo de adiar o desejo ainda não encontrado.
A monástica adesão ao essencial,
Ao que é feito de matéria apropriada.
O sorriso involuntário e incrédulo
De um contador de histórias para platéias miúdas.
A perícia arqueológica de encontrar dia a dia
Razão para viver:
Essa razão não é comentada,
E essa razão não é definitiva.

Não. Tu não me garantiste estradas desimpedidas,
E seguir de perto o teu trajeto
Era concluir da distância entre o indivíduo e o mundo,
Esse mecanismo surdo,
Esse oráculo sem a grande solução.

Percebes que ao falar de ti também falo de mim?
Herdarei as tuas observações:
Serei o curador das tuas memórias;
Terei uma sala própria para elas,
E eu as modificarei, certamente,
Enquanto a tua imagem for desvanecendo,
Enquanto eu prosseguir deixando este mundo
De rios voláteis e florestas minguantes.

Agora, quando tu és um velho barco
Num estaleiro escuro que não posso alcançar,
Penso no que trouxeste para mim
De uma única viagem acidentada,
E no quanto mercadejaste em remotas regiões
Para legar-me o que não posso ponderar.

Se, de fato, morreres agora,
Saberei das lágrimas pelos encontros adiados,
Lágrimas carregadas de tudo o que não te pude dizer.


PARA MEU FILHO, VICTOR

(um poema escrito há dezenove anos)

Nesta noite, edificada em silêncios negros,
Anjo translúcido, o meu filho dorme
Apascentando um rebanho de mil sonhos gêmeos.

Nas fímbrias de seus olhos semicerrados
Vivem infusos espirituais mistérios
E insondáveis enteléquias.

Para que pensar num oblíquo futuro
Se a vida corre nele em longos sorvos
E suas mãos agitadas tateiam rotas de grãos?

Surpreendente vida com começo invisível
E presença indisfarçável,
De cujo fim não se cogita se pelo rio vamos,
As mãos nos remos, o vento em contrário
E os olhos no horizonte descontínuo.

Segue, meu filho, a tua progressão, do ínfimo
Ao infinitamente desconhecido.
Por dia, teus dedos intentam uma altura nova,
Maior é o acorde dos teus passos
E tocas distraído o extremo da luz.

Até chegar o momento em que navegarás
Nas tuas próprias perguntas,
Menos densas que a vida, e que sobre ela flutuarão.

_______________________________________


Há alguns meses publiquei aqui este poeminha:

GERÚNDIO

(Para o meu amigo Wellington Trotta.)

De bom grado serei
O grande ausente
Das festas do futuro
Se me atrasar ou me perder
Procurando o presente ideal.


Um poema minúsculo e pouco inspirado dedicado a um grande amigo de longa data.
Mas, ele já me perdoou. 
Pois bem, esse amigo criou recentemente um blog,  publicando experiências poéticas.
Seus poemas são, no mínimo, extremamente pessoais, refletindo uma dialética entre
lirismo e inquietação filosófica. Abaixo, um exemplo:


MULTIDÃO
Mesmo no meio da multidão de compactos rostos,
fisionomias misturadas num perder-se de peculiaridades
no vazio uniforme desvairado-insistente,
de muitos andares sem saber o que desejam,
ou que só desejam, e desejam muito
sem atentar que desejam por desejar incessantemente…
… mesmo nessa multidão de compactos semblantes,
mixórdia de expressões perdidas em pensamentos iguais e pueris,
tão obscuros que me vi cercado por uma escuridão de significados,
portas que fechadas para o tudo se abriam para o nada, solenemente,
no bater de pernas na velocidade de lábios desconectados,
numa realidade só julgada pelos mais loucos critérios de verdade…
… zombavam de mim, anonimamente,
pela dominação que sofro cruelmente
de tua presente-ausência que:
domina meu pensamento impiedosamente,
seja de noite ou de dia, sob sol ou chuva, mas sempre.
Mesmo que de repente, ao súbito o sono se acabe, acordo,
continuando a sonhar pelo calor de tua presença,
pela força de tua ausência, pelo odor de tua lembrança.
Tua imagem refletida no meu espírito assemelha-se ao caminho das nuvens:
de um ponto a outro temperando o rigor do sol,
embelezando o crepúsculo de mais um dia,
abrigando a lua em tuas imensas espumas brancas,
guardando no interior da chuva a terra onde me afirmo.
Tua presença castiga lentamente meus olhos úmidos e fixos,
espelhada numa folha escrita repleta de palavras banhadas pelo teu nome,
pela rima que tens em ti, pela melodia que exala de ti em si mesma.
Quando penso, e penso muito em ti, penso pensando no nada, nas noites
sem silêncio e na leitura sem concentração.
Quando penso em ti sou tomado por ondas de sentimentos,
por uma espécie de velocidade arrebatadoramente ingênua,
sem direção para qualquer lugareem que se tenha felicidade.
Tua presença, tua ausência, tua lembrança não causam dor,
apenas um estado d’alma reflexivo nas estruturas do ser,
na certeza do tempo que transforma paisagens e esculpe formas,
erige normas de se trabalhar mãos, sonhos e esperanças.
Tua presença caminha por onde caminho, por onde vivo, se escrevo, leio ou
mesmo completamente parado, presença que ensaia uma despedida pelo
pelo adágio de um sorriso
por uma pincelada de cores que borrando o papel em branco,
constrói contornando seu rosto na expectativa-perspectiva
sobre meu peito no infinito limitado de tuas mãos.
(Wellington Trotta, em 06/07/2009)

Quem tiver interesse em ler outros poemas dele, basta acessar o blog Páginas (Des)ocultas clicando no link abaixo:

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Três Novos Poemas Sem Títulos

I

Vejo a lenta retirada da vida
do cofre dos teus olhos,
e uma crispação das tuas mãos
agarrando o vácuo aberto
pela queda dos objetos inertes.

Os dias caminham para o cinza.
Quando tudo será
uma aguada de nanquim?

Um olhar desdenhoso para a manhã
já decifrada por décadas e décadas.
Mas ainda respondes aos sons
mais estrídulos:
                               as inacreditáveis
                               aves urbanas.

E teus pés?
Quando ignoravas a terra insidiosa
eles eram lépidos,
agora se arrastam pelo solo
como se escavassem nele
a derradeira carícia.


II

Ela quisera ter nascido
das espumas sacras do mar
como Afrodite Anadiômene.
Sonhara para si mesma
uma gestação de pérola
perfeita,
na perfeita escuridão
da ostra.

O parto? Um beijo apaixonado
da luz do verão.

Mas, quando chegava uma concha
aos ouvidos,
uma voz de nereida lhe dizia:
- Não é verdade, não é verdade!

E ela sofria, sem sangue frio,
um exílio
de peixe nascido com pulmões.


III

Impus às palavras
um pacto arbitrário:
que não referenciem
nada visível
porque as coisas visíveis
estão presas como vagões
deslizando em silêncio
sobre linha férrea.

Fecho os olhos
esperando que passem,
aquém das pálpebras,
palavras inesperadas
como riscos de luz,
vagalumes ríspidos
sobre o horto de sombras.

Mas nada ocorre nesta noite
voluntária.

Abro os olhos
e tudo tem uma alma nova,
mas volátil,
expirada em segundos!

Quando fechar os olhos
devo capturar alguma palavra,
como uma flor carnívora
atrai e aprisiona um inseto.

As palavras só me falarão
de fora para dentro.



















Marcantonio - Estudo em óleo.

Outras imagens minhas AQUI

domingo, 10 de outubro de 2010

Quatro Novos Poemas



VERSO ELÁSTICO

          Dedicado a Nydia Bonetti
          e a partir da leitura de seu poema Poliverso


Tentar abarcar o desmedido
como se fora ínfimo;
tocar o pequeno
como se transbordasse.

A forma inconclusa
das cordilheiras verdes,
a estranha flor azulada
sobre a pedra inóspita.

Para o besouro
(grifo guerreiro)
mil palavras.
Para a vida e a morte
dois monossílabos;
para a estrada inteira,
um discurso impossível
com vírgulas erradicadas.

Para cada urgência de água,
navegar
com diferentes calados:
a canoa instável
na arável superfície;
o rude encouraçado
assustador;
o submarino silente
sob a voragem.

Para toda a arte,
um aceno pasmo,
em pé na beira,
do todo à margem.


EMBALAGEM

A metáfora
é para ser abandonada
- papel de embrulho –
quando a vida nua
chega à porta.

Não agora.


EMBARCAÇÕES

No branco úmido
dos olhos,
o grande oceano
onde tudo voga
na véspera contínua
do último naufrágio.


TRAVELLING *

Na estrada
que seguia para o interior
os meus olhos recolhiam
o poema já feito.

* Postado também no Azul Temporário















Camille Pissarro, óleo s/ tela, 1871

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Três Poemas e uma Dúvida

ENTRE-SÍTIOS (13)

(Para Cris de Souza e seu Trem da Lira)

Prismas abstratos
desviam a luz
para o farol que vela
a enseada turbulenta
da ilha-palavra.

Novos sentidos ali não naufragam.



ENTRE-SÍTIOS (14)

(Para Gerana Damulakis
E seu leitora crítica)

Nas estantes aguardam
Os diários fechados
Que anotaram os sismos
Do tempo.

Sobre o momento
Aberto,
Os dedos entrelaçados
Nas crinas das palavras
Indômitas, sempre vivas,
Que correm à beira
Do precipício
Ou do princípio
Da história.


POEMA IMPOSSÍVEL

Qualquer
coisa
MORTA
não pode ficar
sobre a terra,

mesmo
convivendo
apenas
com as coisas
adormecidas,
de rígido e
inamovível
sono,
nunca na
iminência
de deixar
um sonho
que, embora
feito
de esperas,
não as deco
mpõe.

Sim, essas
coisas
diuturna
mente
adormecidas,
mesmo bu
lidas
ou seque
stradas,
mesmo vendidas
ou extr
aviadas,
mesmo gastas
pelo farto
uso,
essas coisas
não
se deco
mpõem
em seu sono
definitivo.

E
se a coisa
MORTA
permanecesse
entre as
restantes

[essas que
inteiras
dormem
somadas
às que
parcialmente
dormem
enquanto
se movem
com tent
áculos
e olhos,
e mesmo
des
maiadas
crescem
em rugas,
unhas e
cabelos]

se a coisa
MORTA
entre essas
permanec
esse
logo
lhes tomaria
o território,
terrificando
o ar que
as envolve.

Ademais,
a coisa
MORTA
transgride
a convivência
do visível
pelo poder
que tem
(horripilante
poder!)
de deixar de
ser imagem
paulatina...
...mente
como anti-
imagem
do próprio
repouso
erosivo.

E às coisas
que
parcia
lmente
dormem
não
convém
teste...
...munhar
o
abandono
erosivo
da
geo
metria
orgâ
nica
outrora
vivente,
a
ação
lívida
sobre
o ser
íntegro
pelo
não
-ser
dissol
ven
te.



LIMBO

A minha biografia
É esse intervalo
Crítico
Entre os meus olhos
E as minhas mãos.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Enquanto Setembro Finda, Três Poemas

ATIVIDADE INTERNA

Há tanto dentro de ti
que não queres conhecer:
umas flores semi-enterradas
na tua aridez íntima
que não se dão
à carícia afásica dos teus dedos.

Há também um sol tresnoitando
que bronzeia a película das tuas veias,
e do qual não podes suspeitar
na tez pálida das tuas palavras.

Há um regato de vontades
onde peixes desmedidos nadam
- forçosamente anfíbios.

Há uma garça escura
em pé sobre teus intestinos
que bica o fundo dos teus olhos
tão logo comeces a ignorar a luz.

Há muito trabalho no teu interior,
polias, rolamentos e roldanas incansáveis.

Há sim uma oficina que quer abrir fendas
no sono eterno,
que faz hora-extra enquanto tu engendras
dicionários
sem saber que o que te obceca
é a palavra morte,
esse ramo da noite
que carregas durante o dia.


SONETO DA VIDA MENOR

Eu preferia não saber se o saber me aflige,
Se ao rio que livre vige anteponho escora.
Que de dentro para fora se abra a mera flor
Não me basta supor: preciso penetrá-la

Além do que trescala na cona da cor
(substância do ser flor). Por que fazer ciência
Da não-aparência? Por que fazer invento
Dessa flor pensamento que não tem aroma?

A aflição que me toma por saber da vida
Que devera ser vivida e não dissecada,
Desviou-me da estrada que caminha por si.

Em paralela segui, preso a indagação,
Num rito de pretensão, de busca ilusória...
Queria a memória do que pleno senti!


CIDADE À SOMBRA

Deveria ser cidade solar...
Mas, pela manhã
já parece uma embarcação
ancorada
na tarde que finda.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Três Poemas Alheios À Primavera

SER-ESTAR

Por que cismar que as coisas estão incompletas?
Será um longo caminho até perceber:
não há caminhos que esperem por mim.

Perceba que o verbo ser é uma rocha
que conteve um fóssil lívido,
memória do que não é vida:
não fala de veias, de sangue
de carne putrefata, de células fugitivas.

Manejamos mal o verbo estar
porque ele escorre para o solo
feito arroio de urina e suor e lágrimas.

Sob os nossos pés o inevitável verbo estar se evapora.


A MEMÓRIA NAS PALAVRAS

Era poeta.
Inventara para si uma biografia:
tudo transcorrera na acrópole das palavras.

Acreditava que a palavra proferida lhe suscitava
saber hoje o que seria ontem.
Como?!
Poetas crêem que as palavras esperam pelas coisas,
e não o contrário;
e percorrem longas corredeiras de vida
seguindo por detrás dos nomes.

Poetas não sabem dizer agora em carne e osso
porque têm a memória inflamada e cheia de pus.


NO AZUL TEMPORÁRIO

Com que material
eu, inábil, faria poesia
senão com as escamas
numeradas do meu dia
fugindo peixe
nas mágoas correntes?

Seria o caso de hospedar
esse peixe num aquário,
dentro do azul temporário
da ilusão?

Seria fútil questão
ou intenção cruel
extraditar o meu dia
de seu meio líquido
para matá-lo de asfixia,
cindindo-o ao meio
com a faca estética
e deixá-lo secar ao sol
como forma sem vísceras
e hermética?

____________________________________________

Estou com um novo blog cujo título deriva do poema acima: O Azul Temporário.
Ele surge da necessidade de um espaço mais livre (e leve) para ensaios, esboços e experimentações (fundadas, infundadas ou afundadas, sabe-se lá!), que não corresponderiam ao feitio do Diário..., mesmo que, de alguma forma, o complementem. Não custa tentar. E embora eu só atenda àqueles flutuantes e incertos 10% de inspiração, espero poder atualizá-lo diariamente com um poeminha, dentro do espírito “nem um dia sem uma linha” (a rima não foi intencional). Além do mais, pode ser divertido.

Para quem quiser conhecer: