Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Três Poemas de Meados de Novembro

OLHOS PLÁSTICOS

Os meus olhos estão ausentes.
Há duas flores em seu lugar,
Justas na cavidade ocular.

Não são flores quaisquer;
São plásticas:
Não têm lastro de realidade,
Não secam nem se dissolvem.

Quando prevejo florações, é certo
Que elas ocorram perto de mim:

A visão se me tornou a cegueira de florir.


PASSAGEIRO

O que muda a minha palavra
Na face de um mundo surdo?
Nada sabe dos meus acenos
A alma de um mundo cego.
Meus ouvidos são obsoletos
Para esse mundo emudecido.

Ah, mas o mundo anda!
Corre o mundo veloz,
Velocíssimo pelo espaço!
E me leva no bagageiro:
Um passageiro
Mudo,
Cego,
Surdo
E paralisado.


CONTRA NARCISO

Não me fascinou
a minha imagem
simétrica
(fantasma nítido
sobre a água clara).

Vi, além, o fundo,
o fundo escurecido,
o fundo vazio da luz
dos nomes.

Enamorei-me desse fundo
onde tudo não era eu.

Marcantonio,  Melancolia 47 - Narciso - 2007

Outras imagens minhas AQUI

10 comentários:

  1. marco,

    eu vim aqui ler os meados de novembro mas... vou precisar fazer mais tarde a leitura, agora eu fiquei presa aos seus novos dizeres no cabeçalho e na garrafa ao mar. sabe o que mais me espanta? seu domínio quanto ao efêmero, sua clareza filosófica...

    Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

    Tudo o que faço é um símbolo da minha própria esperança, tal como a garrafa lançada ao mar com uma mensagem é para o náufrago. Mas posso andar na praia apenas ouvindo o discurso definitivo das ondas…

    gostei demais.

    ...

    ...

    ...

    abraços.

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  2. profundos incrementos, na maré cheia a lira deslancha de vez...

    sabe a quê veio!

    beijo, mago.

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  3. plasticamente dissonante este teu primeiro poema, exercita os sentidos mais delirantes do olhar. a anti-visão final - o oposto do oposto em luz - é deveras atordoante. aliás me parece que uma maldição escrevinha junto ao olhar, como se desver - isso existe? - estivesse além do visível. as imagens dos outros dois se me resvalam em vazios, tal qual na mitologia a figura torta busca em suas costas o espelho labiríntico. acho que foi Umberto Eco que escreveu um ensaio sobre os espelhos, desafiando modos de ver e ver-se ou rever-são. acho que devaneei...


    abração

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  4. Ô Betina, obrigado. Bem, se essa clareza existe, ela se deve, por contraditório que pareça, a um misto de angústia e desencanto; a diferença é que, para o meu espanto, eles se tornam produtivos!

    Abraços.

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  5. Cris, que essa lira deslanchada siga para um ponto no qual poente e nascente não se diferenciem. Na verdade, não sei a que vou!

    Obrigado,

    Beijo.

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  6. Assis! O seu comentário impressiona. Rapaz, quanta coisa dá para pensar dessa relação ver/desver. Esse desver agora existe, ao menos para mim, e embora pareça significar 'não ver', é aparentado com desvelar, desvendar. Talvez trate-se de impor ao real as imagens resultantes de um desvendamento interno!

    Como o mundo seria chato se os devaneios não fossem visíveis, compartilháveis!

    Grande abraço.

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  7. "as flores de plástico não morrem"

    ***

    "mundo mundo, vasto mundo
    se eu me chamasse Raimundo
    seria uma rima, não uma solução"

    ***

    "é que Narciso acha feio
    o que não é espelho"

    ***

    a poesia que brota da tua lavra, se espraia feito flores na primavera, feito as dores do mundo. porque desconstruir Narciso é preciso.

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  8. Sabes, Marquinho... Alegria é compartilhar da tua cegueira (que é clara, colorida e poética).

    Amei a Garrafa. Será que a encontro nos mares de cá? Se não, posso também ficar com as ondas (como tu bem disseste).

    Beijo, beijo, beijo.

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  9. Marcantonio!

    Pleonasmo é dizer e falar de sua genialidade,que vai da disponibilidade criativa e lúdica até a simetria dos espelhos em Narciso. A ótica do espelho foi descomplicada aqui.

    Belíssimo!

    Beijos

    Mirze

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