Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Em Tempo Real

Esta é uma experiência urgente:
escrevo em tempo real um poema
que ainda não é poema,
que talvez nem queira ser poema,
que talvez seja apenas um raio circulando
entre as minhas orelhas
como se fosse muita energia
para o meu circuito fechado.
Em vias de um curto circuito
abro as janelas para a noite
em busca de sol, porque se trata sempre SEMPRE
de ansiar por sol, mais sol
(vê? Goethe acaba de pincelar algo na minha garganta)!

Entre a necessidade de dizer e a forma de fazê-lo
crescem as unhas, doem os ossos raízes expostas,
as células revalidam  a sua ditadura tão longinqua
que que costuma ocultar-se sob noções abstratas

(basta ver que não falo de sangue porque não o reconheço
sob a rotina pálida da pele do meu corpo, eu devo ser anêmico,
eu devo ser exato, só sei do sangue o nome hemácias, o nome
hematócritos, linfócito, hemoglobina, plaquetas; sim, eu tenho
a anemia da abstração, mas não sei quantas vértebras
há na coluna vertebral, afinal os ossos ainda resistem
quando todo sangue já se evaporou; para os ossos
não crio metáforas pois já são eloquentes em si mesmo; respeito
a dor e a densidade histórica dos ossos, sobretudo do fêmur,
o maior deles, difícil de ser extraviado numa exumação)!

Mas entre a forma e o conteúdo há um lapso a ser desfeito
com murros na mesa, com o mandar à merda a estética,
a semiótica,  a esclerótica, a robótica e qualquer tipo de ótica!
Já há tantos poemas no mundo, formam uma longa cauda
de réptil ondulando sobre uma cratera vulcânica aberta há séculos.
Que falta fará mais um? Que falta farão essas digitais aos dedos  que
virarão

                                         pó?

Como transformar essas linhas num poema? Para que?
A próxima linha está vazia, como esta estava há 38 caracteres atrás.
Com que encherei a próxima linha?
Acabo de preenchê-la com a pergunta: "com que encherei a próxima linha?"!
Esta aqui adornarei com os caracteres da angústia. E a próxima também:
angústia, angústia, angústiaangústiaangústiaangústiaangústiarrrrrrrrrrrrr
Já me sinto melhor.
Não seriam as linhas da escrita a melhor transcrição da idéia do tempo?
Ocorre que esqueci do ponto final ao fim de tanta angústia há quatro linhas atrás!
E ainda há um ponto e vírgula sobre a minha cabeça como uma espada de Dâmocles.
Qualquer dia conto sobre a história de Dâmocles.
Mas quem quer saber da história de Dâmocles?
Um dia cairá a vírgula presa por um fio de cabelo
e restará apenas o ponto final. Mas havendo um ponto final
ele indicará que algo foi concluído. Três pontos indicariam suspensão...

... reticências  não seriam um triplo obstáculo ao infinito?
Deste ponto de interrogação, caindo o ponto resta uma foice!
(Muito apropriada foice que  também já foi símbolo do trabalho no campo).
Mas não estou com isso desviando os olhos da idéia da morte,
pois comecei este nunca-poema ao ouvir a história de uma mulher
encontrada morta em sua casa. Sofrera um enfarte. Morava sozinha.
Foi quando abri as janelas e vi toda a não paisagem da noite e chamei
pelo sol, mais sol! E me lembrei do LUZ, MAIS LUZ! de Goethe:
um ícone literário se misturara à minha reflexão sobre a morte!

Mas eu pensei em dar conta de todos os pássaros sombrios
que se chocam indistintos dentro da minha cabeça,
e de todo um oceano que não vejo mas sei que está lá,
e de toda uma floresta ambulante como aquela de Macbeth,
e de todos os dias que não são promissórias resgatáveis,
e de todos os dias que são asas transparentes de inseto,
e de todas as tempestades contidas nas íris dos meus olhos
e de tudo que não pode ser nomeado como unidade.
Mas é sempre em vão, pois uma coisa é a coisa mesma,
outra coisa é o meu medo da coisa, e outra coisa é a palavra

COISA
essa coisa, aquela coisa, todas as coisas. Coisa nenhuma!
Não vou reler o que acabei de escrever. Se há erros de ortografia,
que permaneçam como rugas importunas. Se faltam letras, e daí?
Que importam falhas dentárias para um jamais-poema que não pretende sorrir?
São 2:20 de uma madrugada propícia à insônia.

E não haverá uma ilustração?

Não.

      

14 comentários:

  1. em tempo real
    e
    de corpo palavra
    presente
    metalinguagem visceral

    [em momentos que são seus me fez lembrar Artaud e seus embates com o dizer por palavras, extrair das palavras o sumo de si]

    Abraços!

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  2. dúvidas, inquietações, causas e efeitos, conhecimento e ignorância, loucura, caos e euforia, sexo e chá, kharma e inferno, sangue sobre a pátina de veludo que escorre sobre todas as COISAS... (e onde as reticências sejam apenas um sinal de pontuação).
    um abraço, poeta em tempo mais-que-real!

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  3. Em tempo real...
    Maravilha, Marcantonio!
    Bem às duas e vinte, hora em que a alma insone se agita, quer partir.
    Hora em que o espirito pede alprazolam, pede absinto; hora do grito, que se enrosca na laringe e se finge de morto...
    Abraço forte, amigo!

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  4. moto-contínuo, campos magnéticos, breton, brechas do inconsciente, urros e jorros

    abraço

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  5. Quando certas agonias não cabem na poesia, há a prosa, há o engarrachamento de letras aparentemente confusas, mas que sabem muito bem o que querem. Lendo isso senti a angústia, tive vontade de gritar, de colocar para fora. Quantas vezes não precisamos disso, mas só deixamos nos nossos diários mentais? Adoro quando as pessoas extravasam assim, deixam as linhas correrem por conta própria, formando todo devaneio no qual a mente sucumbe. Pronto, também me empolguei aqui, rs.
    Só para dizer que estou contigo.

    Beijo.

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  6. Marco,
    Rapaz, que maravilha imensa! Há que arriscar os que cumprem poemas. A arte aqui fez morada, não por acaso era madrugada: casa dos separados do tempo real. Senti um bang em meu peito, estreito espaço pra lhe dizer tudo que seu nunca-SEMPRE-poema foi capaz de pertubar a manhã seguinte. Seguinte: perfeito.
    Parabéns pelo trato com a palavra e pela coragem. Gol de bicicleta, poeta.

    Abraço surrrrrrreal,
    Pedro Ramúcio.

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  7. Angustia, ansiedade, raiva, impotencia? A poesia sempre vai estar aí pra verbalizar o estado da alma. Vim agradecer e visita e vou ficando, abração.

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  8. Marcantonio!

    Se você não existisse tinha que ser inventado!

    É mais que real este poema, ele pulsa, questiona, ensina e tudo mais que você já sabe!

    Parabéns, poeta!

    Beijos

    Mirze

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  9. se há presença, há angústia!

    e é isso essa poesia é toda a angústia, toda a presença do instante já!

    Você é uma figura única, como essa poesia!

    beijo

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  10. Você me lembrou Clarice Lispector com esse poema-grito. Esse ímpeto sem fronteiras que o detenham.

    Beijo

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  11. em tempo real e imaginário. sensacional. a torrente de ideias na corrente das palavras.
    palavras que desfazem o nó da garganta.

    continue a escrever, muita gente, inclusive eu, quer saber sobre dâmocles, a espada, ...

    parabéns poeta.


    abraços.

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  12. Apenas tens consciência de um anseio;
    a conhecer o outro, oh, nunca aprendas!
    Vivem-me duas almas, ah! no seio,
    querem trilhar em tudo opostas sendas;
    uma se agarra, com sensual enleio
    é órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;
    a outra, soltando à força o térreo freio,
    de nobres manes busca a plaga etérea.
    "Fausto" - Primeira parte - Noite - Goethe

    Beijos
    und Mehr licht!

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  13. Ando acompanhando seus trabalhos no Azul Temporário também. E lá e cá, sempre bom te ler. E no Sábados de Caju ainda existem os links para os panfletos: http://fredcaju.blogspot.com/p/amplitude-compacta.html

    Grande abraço! Ah, e na mesma guia também há links para vídeos.

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  14. Marco, e eu que pensei em voltar aos poucos ao mundo dos vivos, caio aqui, em temo real, neste zig-zag de ideias, de pensamentos com sentido, sem sentido, consentidos, todos eles mais do que inspirados, no mundo dos vivos, dos vivos que observam a morte, dos vivos que se entregam a ela, e renascem. Tua mente é vertiginosa (e é disso que eu gosto tanto)
    um beijo

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