Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 21 de novembro de 2010

Mitos

Gerome, Pigmalião e Galatéia

Nunca gostei do mito de Pigmalião; porque creio que há algo de nobre no artista que subestima a própria obra (orgulho às avessas?), mais ainda naquele que, de ato pensado, é capaz de destruí-la. Talvez haja nessa visão um franciscanismo hipócrita da minha parte; ainda estou consultando o meu inconsciente para investigar.
A esse respeito, não sei se por engano,  sempre vi no mito de Orfeu uma alusão ao caminho do artista: quando ele olha para trás, perde o seu objeto de desejo; fixado pela perda ao momento único, desesperado, será estraçalhado (fragmentado) pelas ninfas, as mesmas que o cobiçavam ao cobri-lo de glória.
Esse olhar para trás é uma decisão presente e se refere ao apego pelo presente como afeto, ao aprisionamento do desejo no que já existe, à obra, enfim. Mas, criar não seria um ato ascensional, mesmo que ilusório? Pois parece que só inflama o desejo e merece o afeto a obra que está para ser feita. Ela ainda não existe! E se já existe é porque chegou o fim, sedimentou-se ao patamar que não é mais do que o próprio térreo. E a obra realizada se torna um signo da impotência, do desfalecimento, do desespero íntimo que nem as dialéticas noções de glória e reconhecimento, nem a pequeno-burguesa idéia do dever cumprido são capazes de aplacar. Pois o artista sabe que faria tudo novamente mesmo que fosse de maneira anônima. E, no fundo, sempre é um esforço anônimo, senão para ele próprio.
O amor pela obra presente só pode ser relativo e volúvel. Alguém nos diz que é boa, mas desconfiamos que não. Em contrapartida, quanto amor pela obra futura que é cobiçada entre o entusiasmo e a melancolia pelo temor de não poder realizá-la. Muitos artistas dizem lidar com o efêmero, mas fazem registros e documentam a obra para que não seja... efêmera! Dirão que é para a remontagem posterior do próprio processo, do seu percurso; porém, se há registro é porque julgam que o que importa é a obra (mesmo que seja feita de fezes de artista). Ora, se há processo ativo ele é interno, e se refere à única obra que não é efêmera, a futura. Processo se faz por etapas superadas, relativas, que não podem ser superestimadas. Parece que é inevitável a confusão entre o olhar do artista e o olhar do outro que o julga a partir da obra já realizada.
Desconfio que Michelangelo jamais chegasse a desafiar o seu Moisés; só um observador não-criador poderia dizer à estátua: Parla!
Talvez para muitos essa questão não se refira à gênese da obra, mas ao Eclesiastes. Quem sabe até para mim mesmo! Ou isso se deve à minha desconfiança para com o que realizo?

Michelangelo, Moisés




5 comentários:

  1. Texto riquíssimo!
    E vou sair pensando sobre a função psíquica de se destruir sua obra. Porque o investimento na arte é uma via de elaboração à dor, à própria destrutividade e vazio que se reinscreve incessantemente...
    Fora isto concordarei que "o amor pela obra futura vem junto com o temor de não poder realizá-la, porque entre o entusiasmo e a melancolia, a criação é cobiçada, ou mais que isto é vital! Sempre preferirei Orfeu.
    E lembrei de uma peça que adoro com o Nelson Freire:Gluck da ópera de Orfeu e Euridice

    abraço e boa semana

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  2. Marco, que bom que tu podes pensar...rs
    e fazer pensar...
    Também prefiro Orfeu, sempre.

    Fiquei pensando no orgulho as avessas (uso bastante essa expressão) acredito que ele sempre habita o excesso de modéstia.
    Não sei se há nobreza em 'subestimar' a própria obra. Talvez a questão não seja subestimá-la, mas saber-lhe o devido tamanho. E só quem a cria sabe que, apesar da dor do parto, da complexidade do processo, ela nunca é "A" grande obra e, quase sempre,nem grande ela é. E tão logo seja parida é rapidamente afagada e deixada para o mundo. Os olhos do artista estão sempre no que ainda lhe resta dentro, no desejo de externar o que lhe revolve as entranhas. Penso na criação como numa fotografia, que registra um instante que já deixou de existir antes mesmo da imagem se revelar.

    "Desconfio que Michelangelo jamais chegasse a desafiar o seu Moisés; só um observador não-criador poderia dizer à estátua: Parla!"
    Só o observador não-criador é capaz de ver beleza pura numa obra.

    Tenho certeza de que tu não deixarás a desconfiaça para com a tua obra. Ela está em ti, lá no princípio, nos pilares sobre os quais tu vingou. Faz parte e faz bem. Desconfie e crei, a gente agradece.
    (só não eleva a desconfiança a um grau de orgulho invertido, tá?)

    gostei de vir aqui pensar...rs
    um beijo

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  3. Por falar em mitos eu me achei no direito de pedir um auxílio luxuoso:

    "Muitos escritores, especialmente os poetas, preferem ter por entendido que compõem por meio de urna espécie de sutil frenesi, de intuição estática; e positivamente estremeceriam ante a idéia de deixar o público dar uma olhadela, por trás dos bastidores, para as rudezas vacilantes e trabalhosas do pensamento, para os verdadeiros propósitos só alcançados no último instante, para os inúmeros relances de idéias que não chegam à maturidade da visão completa, para as imaginações plenamente amadurecidas e repelidas em desespero como inaproveitáveis, para as cautelosas seleções e rejeições, as dolorosas emendas e interpolações; numa palavra, para as rodas e rodinhas, os apetrechos de mudança no cenário, as escadinhas e os alçapões do palco, as penas de galo, a tinta vermelha e os disfarces postiços que, em noventa e nove por cento dos casos, constituem a característica do histrião literário."

    Edgar Allan Poe in a Filosofia da Composição

    abração

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  4. Olá, Marco. Pouso pela primeira vez aqui nesse espaço e, sou presenteado pela sua belíssima reflexão sobre o 'parir artístico'.

    Parabéns!

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  5. Marco, que texto instigante!
    Acredito que o impulso de criar é como, bem define a Mai, um modo de elaborar a dor e o vazio que acompanha a gente. Nesse sentido seria também um modo de buscar o Outro ideal e perdido. Quem sabe por isso Michelangelo teria mesmo perdido a cabeça com seu Moisés. Ou quem sabe o impulso de destruição da obra tenha essa mesma raiz, a insatisfação com uma obra terminada, já que só a futura poderá, idealmente, preencher as exigências do artista? O mesmo gesto de Orfeu se explicaria por essa insatisfação?

    Beijo

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