Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

quinta-feira, 29 de abril de 2010

No Miolo Dos Livros

1

Como é bela
a página que se amarelou
atravessando tantos outonos.

Folha que não caiu,
como se permanecesse
entre a flora viva.

2

Algumas retiveram
a pálida silhueta
de marcadores
tardiamente removidos:

Involuntário rubor
pela dissidência do leitor.

3

Espremida entre as páginas,
mata-borrões da seiva viva,
a flor secou, trancada
na escuridão bidimensional.
Mas urdiu à força
uma ilustração intrusa
e temporal.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Mínimos Múltiplos Comuns


1- efeito colateral

Classificar um rio como PERENE,
é como fazê-lo parar.
E se o dizemos TEMPORÁRIO,
infundimos em sua águas
o desespero de chegar.

2- quem me prometeu?

Quem irá me atar
ao rochedo de meu destino
sob um céu isento de abutres?

Enquanto aguardo
construo, com fogo e medo,
um simulacro.

3- bem sorrir

Se me levarem a sério,
me farão gargalhar.
Quero apenas mostrar
os meus dentes externos
ternamente.

4- vagabundear

A pretensão nos impõe
carregar um fardo desnecessário
já largado por outro
no meio da estrada.

Mas a despretensão vagabundeia,
leve,
olhos postos na beleza do chão.

5- sem racionamento

A imaginação é uma torneira
aberta em todas as residências.
Mas muitos não toleram seu forte fluxo
e os inevitáveis respingos:
pensando no preço a pagar,
adotam um triste racionamento.

















Monotipia s/ Título - Marcantonio

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Quixotescas



1

Após ler o Dom Quixote,
planejei transformar meu ego gigante
num moinho de ilusões.

2

Entre as nossas tristes figuras
nunca houve conflito de gerações.

3

Rocinante, dormindo em pé,
sonhou que era um cavaleiro
ajuizado, de preclara fé.

4

Se a minha vida é quixotesca,
cabe, entretanto, num opúsculo:
aventuras de bolso.

5

Pelo menos a minha dulcíssima
Dulcinéia del Toboso é real.
Sério. Palavra de cavaLHeiro.

6

Conheci um Sancho:
era um fotógrafo lambe-lambe.
Mal sabia de seu homônimo
literário.
Era magro, não tinha pança,
mas engordava de esperança.

7

Ao ter testada a minha fé,
eu pensaria:
- Não saia da jaula leãozinho,
Quietinho, não saia!
E fecharia os olhos do meu temor.


















Daumier - Dom Quixote e Sancho Pança

sábado, 24 de abril de 2010

3,5 Poemas



ANTIFOTOGENIA

Saio mal em fotografias:
Não sobressaio aos cenários.
Aquela cara de indivíduo
Sem valia,
demissionário.

Congelado antes do disparo,
Mal sorrio, não digo ”x!”
Nem percebo o tal passarinho
E, sem preparo...
Eis o infeliz!

É a custo que desfaço a pose,
Por tentar me reencontrar:
O flash que turva meus olhos
Sequer chega a me iluminar.


NATUREZA-MORTA

Negro, incerto
Um cachimbo
Sobre a estante.

Quase perto
Desse anfíbio
Petulante,

Um binóculo,
Outro módulo
De visão.

O cachimbo
Só conspira,
Não expira
Mais fumaça.

Já o binóculo,
Cientista,
Vê (revista)
O que passa:

- Precaução!



REMINISCÊNCIAS

Unicamente na infância sonhamos
Porque enxergamos no escuro.
Quando adultos, alugamos
Os sonhos verbais dos poetas
Que, embora cegos, ainda recordam.



DISCURSO SEM MÉTODO

A memória é uma Penélope sem método:
Faz, desfaz e refaz por nada esperar.






















Marcantonio, Carpe Diem - Téc. Mista s/ Tela - 2005

Para ver imagens de outros trabalhos meus:

http://cadernosdearte.wordpress.com/galeria/

terça-feira, 20 de abril de 2010

Sem Remédio

Ah, pudesse qualquer poema
aliviar esta apreensão.
Acalmar-me a mente
que febricita
e, aflita,
inventa sombras na escuridão.

Pudesse, pudesse um só poema,
feito remédio,
placebo ou poção,
anular o tédio
que a tudo anula,
e já vir com bula,
posologia
e prescrição.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Ainda Kieslowski

Um pequeno vídeo com cenas e trechos de entrevistas de Kieslowski, relizado por alunos da disciplina Teoria da Comunicação(créditos no YouTube). Há uma passagem em que o diretor explica a função da cena do torrão de açúcar no filme Bleu (A Liberdade é Azul).

segunda-feira, 19 de abril de 2010

Coincidência para Matar a Saudade

Há dias, na casa de amigos queridos, assisti ao primeiro filme do "Decálogo" de Kieslowski. Fascinante. Na noite seguinte, ao passar pelo canal Futura, reconheci imagens de alto teor poético: estava sendo exibido A Dupla Vida de Véronique. Não fiz pouco caso da coincidência e assisti uma vez mais a esse filme belíssimo. Dizer que aprecio o cinema de Kieslowski seria pouco. Seus filmes me deixam num estado de alerta estético, pois cada imagem parece ocupar o lugar de uma palavra num poema; há sutilíssimos vínculos que podem ser descobertos a cada exibição. E desconfio que poderia assisti-los com prazer partindo de qualquer cena, pois é mais uma questão de sentir do que propriamente entender, e sempre temos a sensação de sermos arrebatados por uma atmosfera integral, profunda. Poesia, metafísica, sentidos flutuantes que podem se inverter subitamente ao mapear as relações dos seres humanos entre si e com os "mistérios" de um mundo tomado por objetos nunca banais.

O filme trata da inquietante noção de duplo. Duas mulheres (interpretadas por Irène Jacob) aparentemente iguais, uma polonesa, Weronike; a outra francesa, Véronique. Ambas lidam com música e têm a estranha sensação de que jamais estão sozinhas. Acompanhamos, a princípio, a vida da polonesa que morre de um ataque do coração em plena apresentação como solista em um concerto. Neste ponto a ação muda para a França, onde a vida de Véronique parece mudar de rumo.

A trilha sonora do filme, composta por Zbigiew Preisner, inacreditavelmente bela, se torna também personagem e atinge um climax maravilhoso na cena da morte de Weronike. O compositor foi colaborador assíduo de Kieslowski.
Em uma dessas estranhas sincronicidades tão caras a ele, Kieslowski também morreu de ataque cardíaco em 1996.

Abaixo, a cena da morte de Weronike e, em seguida, o belo trecho das marionetes, espécie de intermezzo poético que mostra de maneira simbólica a morte no palco e um renascimento, além de dar início ao interesse de Véronique pelo misterioso performer e escritor.



domingo, 18 de abril de 2010

Sob as Raízes dos Meus Cabelos

Ouvia as gotas frias
da torneira defeituosa
como vocativos lúcidos.

De resto, era um silêncio
em arcada flácida
sobre a sala vazia.

Eu ensaiava posturas de sombras
nas paredes que pareciam recuar
sobre trilhos fluidos.

Pensei que fosse a vertigem final
surgida assim, estúpida, simplificada,
de dentro de mim.

Mas não era. E permaneci
no centro eqüidistante
aos meus quatro cantos.

Então, meus pés dançavam,
em espasmos sobre o chão já oblíquo,
alheios ao meu tronco rígido.

Quis expulsar o silêncio,
já enraizado na minha laringe
com um grito, um uivo, um vômito seco!

Em vão.

Devo permanecer sob as raízes dos meus cabelos.
Devo esquecer  os meus sapatos cosmopolitas.
Colar o selos no íntimo dos envelopes.
Devo edulcorar os meus símbolos irascíveis.
E polir a prataria da memória com os forros dos meus bolsos.

Nasce o dia agora
(ou nunca, ao menos o esperado)
e ainda me vejo aqui
conforme a luz fraca da manhã
revela as ninharias
do meu degredo farsesco.

Meus olhos, ainda límpidos,
descarnam de vez o sono.

















Monotipia s/ título - Marcantonio

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Viver em Prosa

Talvez eu conceba a minha vida como uma narrativa, dessas carregadas de detalhes irrelevantes e descrições obsessivas e desnecessárias. De tal modo me impaciento com a passagem natural dos dias e suas incontornáveis 24 horas, que gostaria de poder suprimir os circunlóquios, as tramas secundárias costuradas pelos minutos e os  intermináveis diálogos dos personagens coadjuvantes.

É insuportável viver assim, almejando pular capítulos. Pudesse dar aos meus dias as feições circunstanciais dos poemas, autônomos, bastantes a si mesmos! Abandonar a lógica conectiva da prosa que pressupõe culminâncias e desfechos! Mas é impossível. Os dias são tão solidários em causalidades e consequências...

Talvez a alternativa seja tentar a prosa-poética.  

sábado, 10 de abril de 2010

Pássaro, passa, passará...

Eu não deveria ter de buscar o sentido das coisas. Ele deveria me ser dado tão franca e naturalmente como o ar que me adentra pelas narinas e preenche os meus pulmões, se incorporando ao que quer que eu seja.
Mas sou tolo o bastante para, se algo cheira mal, querer saber do que se trata.

Não me bastaria apenas ver esse pássaro súbito e anônimo que atravessa o quadro da minha janela sem ter de nomeá-lo? Mas, porque suponho que ele retornará, que possua semelhantes, que tenha genealogia e que siga um intuito, eu o nomeio como ser e não como evento: pássaro em vez de passou ou passará. Assim suponho que o retenho, pássaro que fica, pássaro substantivo.

Não traímos a coisa quando fazemos o intercâmbio entre seu estado e seu suposto ser?

Sim, as coisas são levadas sobre a correnteza densa de um rio para longe-longe, onde cremos que elas ainda serão exatamente as mesmas. Mas o que importa realmente não é que, em sua fuga, as coisas estejam passando  diante de nós agora? Este momento nos pertence preso a nós, ou cada coisa traz e leva consigo o momento?

Eu me pergunto se a poesia se nutre desse suposto mistério por detrás das coisas ou de sua original obviedade que há muito decidimos ignorar...


















Monotipia s/ Título - Marcantonio

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quatro Poemas

1- SE É OUTONO

Lâmina vegetal,
Vibrátil,
Viva folha.
Despenca
Solitária
Sendo, já,
Outra coisa.

2- INVENTÁRIO

São numerosas as palavras ilhadas
Por mares mortos.

E infindas as palavras dúbias,
Frágeis insetos coletados
Por entomólogos cuidadosos.

Quantas palavras são solventes
Para lavar conceitos adiposos!

Inúmeras palavras-peixes:
Solidárias ao trajeto do cardume.

Ai, ai! Muitas palavras soterradas
Vivas
Sob a pirâmide dos costumes.

3- A MESMA LUZ

Esse mar é o mesmo
Em toda parte,
Afora o seu verde
Instável e pálido.

Esse sol é o mesmo
Que noutra parte
Decompõe a noite,
Tirante o maior ardor
Do seu louro pálio.

E quando esse sol
Absoluto verte
Sua nata prateada
Sobre esse mar
Que a inflecte,
Tal beleza maior não é
Do que a da espiral de luz
Dentro da xícara de café.

4-

Sobre o papel,
Breve feição,
Qualquer traço
É sempre o epitáfio
De uma intenção.

















Monotipia s/ Título - Marcantonio