Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Dois Poemas


FIXIDEZ



Tu sabes não é mesmo? Tu sabes perfeitamente
quanto seria bom nada ter a dizer:
a alma tornada assim, de súbito, uma árvore,
ou a carcaça de um velho automóvel
num ferro-velho.

A árvore nada fala, é o vento que farfalha
entre as folhas
que em conjunto nunca foram os cabelos
despenteados da árvore.
As folhas sempre foram sempre foram... Folhas.
Certamente tu jamais as perceberas como tais
antes que caíssem.
E bem sabes que se o vento trouxesse uma folha
ao teu quarto, dirias: de onde veio esse anjo?
Sim, porque perceberas primeiro que os anjos caem,
e talvez a copa de uma árvore seja uma das inúmeras
formas que o céu pode assumir.
Ocorre que os anjos têm asas e as folhas não;
e se os anjos caem é porque perderam as asas
em algum tipo de outono,
ou espécie de muda, num ciclo inverso ao das borboletas
oriundas de lagartas. Caem os anjos em casulos de sono
e acordam lagartas.
E não é fato que lagartas habitam as arvores?
Por isso é até admissível que uma copa frondosa
possa ser uma subespécie de céu,
mas não que uma folha seja um anjo,
pois estes se alimentam de folhas verdes e tenras.
Enfim, até aqui sabemos
que os anjos caídos já não são mais anjos
assim como a folha caída já não é mais árvore.

Mas entendo o teu pensamento: a folha é uma carta
enviada pela vida à atmosfera asséptica do teu quarto
de onde retiras todos os sinais invasivos da morte
sem perceberes que a morte é também maníaca por limpeza.
Então a folha que entrasse pela janela
seria realmente a anunciação, não de algum nascimento,
mas de uma perda que macula o teu chão.
Considera, porém: se a entrega dessa carta é feita pelo vento,
este não seria Zéfiro,
E sim Hermes que tinha asas presas aos tornozelos
e não às costas como os anjos.
Vê como é difícil escapar dos anjos, das asas, dos carteiros
e dos resíduos da morte?

Suponho que, irritado, jogarias essa folha no vaso sanitário
e a verias sumir por obra de uma sonora descarga.
Talvez assim a folha ex machina se tornasse um peixe!

Eu juro que não pretendera dizer desde o início
que as folhas sempre foram sempre foram... Peixes!
Embora pudesse agradar à alma que teima em muito dizer,
dizer também que a copa de uma árvore é todo um cardume
de peixes secos, pendurados e farfalhentos.
Ora, isso seria um absurdo mesmo para uma alma insana:
afinal, o que comeriam os anjos? Peixes?
Ah, que tipo de mutação constante suportaria a folha
dessa árvore quase genealógica, quase taxonômica?
Não, eu pretendera dizer mesmo que folhas sempre foram
apenas folhas.

Eis porque nós dois sabemos o quanto seria bom
se a alma se tornasse fixa como uma árvore
que delegasse a eloqüência transitiva ao vento
farfalhando entre as folhas apenas folhas.

Oh, eu me esqueci da carcaça de automóvel no ferro-velho
pela qual falam os óxidos e as intempéries,
assim como fala o vento nas árvores!
Havia tanto a dizer sobre essa carcaça... Mas, ela se basta.


COLORAÇÕES

A pele porosa
Filtra a ganga
De óxidos
Dolentes.

Apenas aglutino
O pigmento
Que se origina
No ambiente.

A boca franca
Restitui
Água-tinta
Impermanente.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Três Poemas

HIDROLATRIA

Cristais de sal
a memória:
conserva a vida
desidratada.

Ressequido
anseio o mar:
memória diluída
n’água.


DIAGNOSE

Tu achas que sou triste?
Será em razão de haver na água dos meus olhos
fragmentos do solo das luas que jamais viste?

Ou deve-se ao ar de mistério que sai das minhas narinas
aquecido por um sol que nunca raiou noutro hemisfério?

Talvez seja porque me fuja da boca um rio afluente
De sílabas que vez alguma me retornou da foz alheia.

Ou porque as minhas mãos não saibam como plantar
uma árvore na fronteira entre o outono e a primavera.
Não há fronteira exata entre o outono e a primavera?!
Talvez esse seja o motivo.

Ou então porque a estrutura óssea dos meus pés
Não seja apropriada para caminhar sobre um solo
Feito de farelo de ossos.

Afora isso,
Não sei qual a razão de achares que sou tão triste.




amplos
separados
campos 
de cor

azul crença 
de
céu

vermelho carne
avesso
incréu

ocre terreno
ao léu
espelho
vindouro

amarelo anel
anelo
d’ouro
insólito
eloqüente
solvendo
-se

no vácuo
logos
silente


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Quatro Poemas de Meados de Fevereiro

ASFIXIAR-SE

[Publicado também em OGATODAODETE]

Estou exausto.
Corri para selar
todas as entradas do poema
antes que o mundo a ele retornasse.

Preguei madeiras em todas as portas,
janelas.
Vedei com cera cada fresta.
E os ralos. Sim! Sobretudo os ralos!

Não sei quanto ar ainda me resta.


EDÊNICO

Cidade pequena,
Pequena cidade,
Os olhares
Das tuas janelas
Querem me desnudar.
Mas por que me devo
Envergonhar
Com essa falta de siso
Se sempre quis voltar
Nu ao paraíso?


VANTAGEM

Vontade de me ver virando uma esquina
E me dar uns quinze minutos de dianteira,
Para que, ainda que eu vá no meu encalço,
Já não me encontre mais pela vida inteira.


BERCEUSE

Em pé na orla. Olhos fechados.
O horizonte me sopra a face.
O horizonte me chega às narinas.
O horizonte murmura aos ouvidos.
O horizonte envolve os meus pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia fui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés
e
a areia flui fina sob os meus dedos
e
outra onda me toca os pés


domingo, 6 de fevereiro de 2011

Três Poemas No Início de Fevereiro

ESPERANÇA E MEDO

Você permanece uma manhã brilhante
Engastada no meu peito que entardecia,
Então todos os pássaros do meu mundo
Não fazem senão saudar a sua chegada.

Toda essa seiva de sol sempre nascente,
Inoculada nas minhas veias viciadas
No fluxo mortiço das horas nubladas,
Talvez signifique que este súbito apego
À vida jamais se oxidará no meu corpo.

É por tanto que temo que esse encontro
Embriagado da aurora com o crepúsculo,
Se atire de peito aberto, suicida precoce,
Alucinado, sobre a lâmina afiada da noite.


PLANALTO

Do alto de mim
Observo-me:
Tal servo da terra,
Das coisas.

Do alto de mim
Observo-me:
Severo espectro
Com olho de pássaro
Adicto ao mundo.

Pastor de perguntas
Mancas, erradias,
Desgarradas das trilhas
Dos costumes.

Do alto de mim,
Megafone em punho,
Espantalho de gestos
Desesperados,
Figurante de cenas
Não filmadas,
Locutor de mensagens
Cifradas,
Encenador habitual
De fantasmagorias,
Este que se altera
No alto de mim,
Guarda de trânsito
Multando-me os sonhos
Estacionados
Nas amplas calçadas
Sem transeuntes
Que há sob mim.


SUSPENSÃO DE JUÍZO

Não busco mais definições.
Apenas observo a cortina
Esvoaçando
Contra o frontispício do mundo.

Decididamente não busco mais
Teoremas.
Descuido-me enfim dos adjetivos
Dos pronomes retos, oblíquos
E demonstrativos.

Somos artigos indefinidos:
Eu, tu, ele... Nós? Quem sois vós?
Vozes passivas ou reflexivas,
Expelimos grunhidos.

E o particípio morrendo?
E o gerúndio vivido?

Patéticos,
Nós, postos, opostos,
Ainda recorrendo
Ao superlativo absoluto sintético.

Mas que sujeito ainda se perderia
Na absoluta síntese?