Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?
Foram raríssimas as ocasiões em que pude ouvir algum poema meu declamado. E fui surpreendido pelo vídeo abaixo postado no blog Poetas Vivos por Cris de Souza no qual ela recita um poeminha meu, "Entre as orelhas". E o poeminha creceu muito por obra e arte da Cris! Achei o resultado de muito bom gosto. Pareceu-me ótimo, realmente. Agradecido, Cris, por essa partilha e pela sua gentileza com a minha poesia.
Um poema ceifa a dor:
Sequer sintoa amputação Do dia.
CHEIA
Com dejetos, Cascalhosdo cotidiano,
Segue assoreado O rio da minha
palavra:
E em vão atua o meu
espírito e seu desejo
feito draga.
FOLCLÓRICO
Não aplique mais às nuvens
A imagem de um rebanho
Conduzido por amoroso pastor:
É algum flautista desmedido
Que as escolta para a queda
No abismo.
OCTETO
1
Ele queria saber se ela possuía pontos fracos ocultados pelas palavras. Mordia-lhe
os tendões de Aquiles.
2
Suas panturrilhas o fascinavam, era como se ela estivesse continuamente na
ponta dos pés sem sapatilhas.
3
Perguntava-se sobre sua alma feminina: seria tão doce quanto suas virilhas?
4
Seus grandes lábios, escondidos por um tênue véu de algodão, pulsavam úmidos
com vitalidade animal, em incessante oratória.
5
Não era pouca coisa abrir-lhe a pequena concha do sexo, pronta para ser
arrebatada pela espuma de uma onda vinda de longe. Afrodite e sua concha
sedenta de espumas.
6
Uma grande mulher com pelos pubianos recendendo à embriagante maresia. Mas o
púbis de Afrodite não é qualquer território livre, qualquer varanda aberta...
7
Sua nuca parecia uma ilha secreta onde Eros brincava com Psiquê. Eles deslizam
por sua espinha, kundalini-onda marinha, fazendo suas nádegas tremer.
8
Ele se deixava arrebatar por aquela liturgia sensual de palavras rebeladas e
sedutoras, toda uma poética inesperadamente construída para se repetir e se
repetir a cada ato de se despir.
Neste poema instauro
Um despotismo cosmológico:
Com férreo domínio sobre o sol,
Eu o condeno a brilhar para sempre
Nesta página,
Feito áurea roldana
Que aqui içou o esplendor da iluminura,
E em seguida travou-se como mecanismo.
Assim condeno a noite ao ostracismo
Para além da literatura,
Com boca, olhos e ouvidos selados,
Ato poético de ordinária censura.
À NOITINHA
Já ouço os soluços vindos
Do berço da noite.
Ela começa a chorar.
Teria fome de pesadelos?
Todos juntos poderíamos levar aos seus lábios
Um enorme duto
Pelo qual ela sugararia o oceano
Dos nossos medos.
Talvez ela tenha dores no ventre
Inflado de gases nebulosos e astronômicos
Ou farto da loucura, do mal e da morte
Ainda por digerir.
Teria se mirado no espelho côncavo,
Suspenso móbile,
E descoberto ter ela mesma medo de si?
Choro insuportável. Como aguentamos?
Onde estará a mãe da noite?
Dizem que ela tem apenas um pai
Ausente e operoso
Em trabalho eterno no vão entre a luz e a escuridão.
Pobre noite.
Vamos aceitar o encargo de sermos suas babás?
Balancemos seu berço,
Cada qual toque a parte dele
Que lhe chega à janela,
E afinados sussurremos um acalanto:
A insônia pode ser
Um salto mental
Em busca de sol.
MISSIVA
Juntei quinhentas palavras,
Granítico vocabulário
Para erguer rígida muralha
Entre nós.
Fracasso de engenharia,
Este discurso de alvenaria
Não resiste ao sopro quente
Da tua voz.
PARA AMANHÃ
Preciso mudar o tom
E o suporte:
Não será no chão da ágora,
Com algum cinza neutro.
Dispensarei a parede sombria
Do cárcere onde grafitar-me
Sombrio redundante,
Sombra sobre sombra
Simula o transparente.
Será mudança meteorológica:
Um céu tão claro
Sobre um vinco apagando-se
Que ninguém diria horizonte-
Oriente-orientar,
E mar!
Com as palavras o sobrevoando,
Livres de sentido,
Ensinando às gaivotas, enfim,
O não-
Mergulhar.
QUANDO REPRESENTA A AÇÃO
Algumas palavras mudam de grau
Sem que nada se lhes acrescente.
Por exemplo:
Não é falada,
Mas escrita,
Que a palavra escrever
Exulta e se realiza.
Haverá outras?
Talvez a palavra pintar
Anotada com pincel e tinta.
Haverá outras?
Talvez a palavra sangrar
Realizada por um Pollock
Num dripping
Com um filete de sangue.
Haverá outras?
Não sei, não vou pensar.
Mas uma exceção extrema
Me vem à consciência, Uma que plena apenas se realiza Quando não falada nem escrita: A palavra ausência.
CORRIDA*
A temporalidade
É a minha Atalanta,
E sou seu Hipômenes.
Preciso superá-la na corrida
Porque a quero desposar.
Ela é tão mais veloz...
Jogo-lhe uns pomos de ouro
À frente!
Mas, contra o mito de outrora,
Ela não os nota,
Passa rente sem lhes dar bola...
Guido Reni, Atalanta e Hipômenes, óleo sobre tela, 1616.
* Sobre a história de Atalanta e Hipômenes, ver aqui
Não tem este ecrã
a variação luminosa
de uma página de papel:
Aqui fixou-se a manhã,
de forma que a palavra
não se esforça
para não entardecer.
Ademais, e a maciez
da pele que registra
o arrependimento?
Aqui não há.
Meu rascunho
já tem cunho de arte final.
Não transparece
a tatuagem involuntária
da palavra removida,
como no papel que acumula
novas fibras.
EM REDE
Já havia tanto o que pensar
sobre o mundo objetivo
e suas normas e leis sociais.
E agora essa dúvida a mais:
darei crédito a tantos éditos
pessoais?
VALOR
Eu queria ter guardado
aquela hora-horizonte
que foi valiosa e nobre...
Porém, o dia já se vai
e não deixou o segredo
do cofre
de ontem.
EU-OUTRO
Como é difícil simular a alteridade
quando o pensamento ensaia uma ação
contrária, que para efetivar-se
requer prévia ocultação:
não consigo jogar xadrez comigo mesmo
pois para a estratégia que prevejo
já há uma adversária antecipação.
Fosse partida de pôquer
jogaríamos eu e o eu-outro
totalmente a descoberto,
e eu não poderia ser no blefe
mais que eu mesmo esperto.
Mas em se tratando apenas de pensar,
ter comigo mesmo livre conversação,
não ao pé, mas entre os ouvidos,
surgem debatedores desconhecidos,
(sem querer interromper, e já interrompendo)
e monta-se o seminário da alter-multidão.
RECONHECIMENTO
Pensando bem,
o que posso acrescentar ao todo?
Um suplemento elementar,
um apêndice-engodo.
PARTITURA
Onde a pauta, maestro?
Em que claves por as vozes
que de ouvido mal orquestro?
INSANO OFÍCIO
Talvez não me custe imaginar
o que foi a Inquisição:
tenho um tribunal na mente
e lenha já acumulada
na praça do meu coração.
TRAGICOMÉDIA
Quer saber de uma coisa?
Não creio na existência
de um pássaro dionisíaco
que jamais pousa.
CINZA
Dia chuvoso.
Diria o poeta:
céu plúmbeo.
Parece uma síntese
de nuvens antitéticas:
plumas de chumbo.
ÍRIS
Tens olhos
de fundo de xícara.
Vitrificada faiança
com sobra
de doce chá.
Marcantonio, óleo sobre tela, 2003. (Clique para ampliar)
Tudo o que faço é um símbolo da minha própria esperança, tal como a garrafa lançada ao mar com uma mensagem é para o náufrago. Mas posso andar na praia apenas ouvindo o discurso definitivo das ondas…
Artista plástico.
Supõe-se poeta, ainda que menor e sem livro editado. Um curioso desambientado, blasé, interessado em filosofia e em todas as formas de arte. Um pessimista esperançoso.