Quando escrevo,
um barco afasta-se do ancoradouro,
uma enxada crava-se na terra,
ou uma vindima se inicia.
Mas não são as minhas mãos
que movem o leme,
manejam a enxada
ou recolhem os frutos ao cesto.
Não são estas mesmas mãos
que me fazem a barba,
que seguram os talheres,
que contam moedas.
Tampouco os olhos que acompanham
a pesca ou a semeadura ou a fermentação
das palavras,
são estes mesmos em mim já habituados
à ortogonia do cotidiano
e suas paisagens de alvenaria.
Quando escrevo, nem o dia é mais aquele
que só teve uma aurora,
as horas perdem espessura
e se guardam em fascículos,
e uma parte rarefeita de mim
foge pelos micro-exaustores dos segundos
para um dia sem geometria,
enquanto, outra parte, permaneço
no anverso do momento,
sentado à mesa banal
com uma caneta na mão
sobre uma folha de papel inerte:
pele a ser rompida a partir do avesso
ou mármore a ser entalhado
por dentro.
ÚLTIMO DE SUA ESPÉCIE
Imagino que todo o mundo visível
estreitara-se aos teus olhos dormentes
numa faixa claustrofóbica
de relevos embaçados:
teu friso final de Partenon.
Ali tu indicaras alguma coisa, uma visão
uma memória.
Como interpretar teu último gesto,
solitário representante de uma espécie em extinção?
A- Se tua mão, pomba assustada, se erguera,
dedos abertos, asas tortas e espalmadas, trêmula no ar,
e se contraíra na metamorfose de outro ser alado
em torno do indicador, súbito bico de colibri
parado no ar para... Para quê? Sugar a última seiva
das entranhas expostas da flor do horizonte
esmagada entre o céu e a terra?
B- Talvez pudesses ouvir um coro de anjos,
desejoso de acompanhar com o dedo
as notas saltitando numa partitura invisível.
C- Quem sabe não seria um único anjo a se se aproximar,
confirmando que de fato usa um capuz
e traz uma foice ao ombro?
D- Ou tentavas tocar os ponteiros de um relógio
para retrocedê-los a um ponto virgem
do mostrador?
E- Seria aquele túnel? O tal túnel, o famigerado túnel.
F- Ou a descoberta de algo que não deverias deixar para trás,
aquele rosto redivivo, aquele amor não vivido,
algum erro irreparável?
G- Seria possível que tudo voltasse subitamente, de uma só vez
a vida em roldão, uma onda concentrada, embriagante,
um anestésico?
H- Seria apenas o botão liga/desliga? Off: já é hora
de dormir.
Foi quando reparei na tua outra mão
que se agarrara a tua própria coxa.
Ela não era um pássaro, era talvez um ser terrestre
com fortes mandíbulas, e que não queria partir.
Então, o último suspiro,
a devolução do beijo roubado à vida,
e a mão direita abatida em pleno ar.
Teus olhos já na tinham velas
e o mar parara.
Tua cabeça já era um fruto sem polpa.
Na testa uma tatuagem que começava
a se apagar com o fim de todas as perguntas.
E eu fiquei um hermeneuta impossível
do teu último gesto.
Friso interior do Partenon (detalhe) - Museu Britânico, Londres |