Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sábado, 1 de janeiro de 2011

Três Poemas no Primeiro Dia do Ano

COMUM

Sentado de frente para o mar
Não espero uma mensagem terrível;
Ele jamais a trará.

Já não temo abismos e maremotos
Nem a desafiadora escuridão
Que dominava o fundo remoto;

Pois o mar agora é somente planura
Como plano é o mundo,
Isento de loucura.

As nuvens ascendem
Como letreiros de um filme.
Não há mais diários de náufragos,
Ou o terror inconfessável
Vivido entre o zarpar e o aportar.
Nada de náuseas a bordo,
Sorvedouros, arrecifes e míticas fráguas;

Pois o mar agora é sólida planície
Como plano é o mundo,
E nada há de incomum
Em andar sobre as águas.


INCOMUM

Tenho medo de ver um morto,
Duas asas de pássaro
Sem corpo de pássaro,
Uma raiz sublevada no deserto
Como se fosse uma copa nua,
Umas conchas a quilômetros
De distância do mar.

Um morto:
Uma chave que não serve
Em mil fechaduras,
Uma nuvem recortada do céu
Que baixasse ao centro da cidade,
Um velocímetro sem ponteiro.

Um morto:
Um veleiro num vale seco,
Um dicionário sem ordem alfabética,
Uma criança que nunca mentiu,
Um cálice cheio de esterco.

Um iguana estático sobre a mesa do almoço.
Um morto.


EXTRAORDINÁRIO

O teu sorriso
Surge com a velocidade
Da luz.

O teu sorriso
É a ilustração rara,
Ardente iluminura,
Que eu tanto procurara
Para um poema
Que jamais serei
Capaz de escrever.

20 comentários:

  1. Aquele camarada que dividiu o calendário para antes e depois do seu nascimento deve ter pensado o mesmo que você em seu Comum. E a antítese do poema é sublime. De fato, não há muitos cálices de estercos por aí. E não se o Extraordinário é impossível de se escrever, acho que você consegue. Abraços, camarada! Muitos abraços!

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  2. Curioso você trazer esses temas nesse primeiro dia do ano, Marquinho, porque já pensei neles lendo seus poemas. Você que transforma, sempre, o comum em extraordinário, que invariavelmente provoca, em que o lê, uma nova forma de olhar as coisas. São fantásticos e subversivos os poemas.
    Beijos,

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  3. Gostei dos três poemas, cada qual a seu modo, mas o segundo me causou certo frisson. Deve ser por causa do tema, quase com certeza. Mas gostei em especial da forma, das imagens.
    Enfim, menino bom, você.

    Beijo

    Estou saindo de férias, mas vou tentar manter algum contato com os amigos.

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  4. Marco,
    Um poema que tu jamais serás capaz de escrever, poeta? BANG!

    Abraço grande,
    Ramúcio Pedro.

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  5. Não há nada de incomum
    em andar sobre as águas.

    E tenho medo de me ver morto
    como se fosse outro
    ocupando o meu corpo.

    Vivo de iluminações
    que são os poemas
    que jamais serei
    capaz de escrever.

    O poeta é um cego
    com um facho a arder
    na noite escura -
    o seu pobre poema.

    Aplausos, Marcantonio. Poesia de primeira.
    Um grande abraço.

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  6. Belíssimos poemas que se comunicam entre si.
    Um mar plano, ou como dizem os escafandristas, um "mar chão" sem ondas, valas, ou correntezas, parece um mar morto.

    Pena que nunca verás um morto, Marcantonio, eles não são assim. Eles foram vida, e representaram o que o mar representa quando planície.Tema os vivos!

    Não haverá poemas que não possas fazer. Bem o sabes.

    Salve, poeta!

    Beijos

    Mirze

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  7. Olhar o horizonte longínquo e vazio e sonhar formas: aqui está o ofício de poeta. Muito bem, marcantonio, siga com essa loucura toda.

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  8. Extraordinário é você
    que de modo incomum
    traz a riqueza do comum.

    Pra mim muitas vezes incompreensível,
    mas mesmo assim comunica-me,
    inquieta-me,
    e isto é bom!

    Abração e obrigado pela visita no po--ética!

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  9. Você e o Assis estão de arrasar corações nos últimos tempos, que se eu ouvisse nos meus ouvidinhos que o meu sorriso é uma ilustração rara, ardente iluminura, eu me rasgava!! :)
    beijo

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  10. Você não tem ressaca não, homem?

    Já começa o ano arrepiando, desconjuro!

    Já eu, não tenho cabeça nem pra decidir qual dos três poemas é o melhor. Fico com "Incomum", por afinidade com o iguana. Só não sou ele, escrito, porque tenho na boca uma maça com gosto de cabo de guarda-chuva.

    Abração

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  11. comum, incomum ou extraordinário sei lá, há epifania por toda a parte,


    abraço

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  12. Um iguana estático sobre a mesa do almoço.

    excelente verso!

    sempre bom começar o ano poemizando :)

    abração!

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  13. gostei de todas as poesias - mas essa do sorriso me arrepiou um sorriso :)

    beijos

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  14. Marco,

    vc bem fixa o ano em três bases. O despojamento de si, o apego dócil à vida e a humildade diante daquilo que por existir já nos basta.

    Um forte abraço! E que seu ano seja uma manifestação da paz poética que encontramos em seus maravilhosos versos!

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  15. É bom poder começar mais um ano aqui contigo.

    Beijo, poeta querido.

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  16. Incomuns são os seus poemas...busco aqui a inspiração! Desejo voltar muitas e muitas vezes neste ano que inicia! Bjo, querido!!!

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  17. Marco, com esses poemas você abre o ano com chave de ouro.

    Grande abraço e um ótimo 2011.

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  18. com o COMUM senti a força incomum
    com o INCOMUN senti o medo comum
    com o EXTRAORDINÁRIO senti o que há de comum no incomum, sendo incomum do comum

    Bom ano!

    Beijos
    Laura

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  19. Ah, roubei um dois seus quadros para usar no blogue!
    Obrigada!
    Laura

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  20. Marquinho,
    há um verso que trago guardado com muito carinho porque gosto de pensar que podia ter sido escrito pra mim. Diz assim:
    "teu riso desata um solstício".

    Agora tenho um poema inteiro para para dedicar o mesmo pensamento: "Extraordinário".
    Apaixonei-me por todos os versos.
    Beijos, querido.

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