É preciso limpar o sifão da pia.
Que simbólico é esse sifão da pia!
Uma curva que cria um lago,
Certo Letes represado
Que faz o esquecimento dos miasmas,
Do mau cheiro subterrâneo.
Um poeta limpando o sifão da pia.
- Vamos, vamos, Orfeu! Mãos à obra!
CODA
Eu a vejo encarquilhada
Junto à janela,
O olhar perdido,
Espantando as moscas
Persistentes
Num almoço distante.
Muito distante.
Eu a vejo encarquilhada
Junto à pia da cozinha,
Manipulando
Irritantes inutilidades,
Agora a faca e o tomate
Vermelho.
Eu a vejo encarquilhada
À mesa,
O garfo suspenso,
A refeição-esfinge.
Não há o que nutrir.
Eu a vejo encarquilhada
No leito.
Deitada de lado.
O braço estendido,
A mão espalmada
Para um óbolo abstrato.
A outra sobre a face.
Há dois sulcos fundos
Entre as sobrancelhas
ILUSÂO
É ilusório que eu transgrida
os teus ritos, ó rotina;
não sabia que eras retina.
EXPOSTA
(Após leitura de um poema de Mirze Souza, aqui)
Todo o meu pesar,
Empatia aflita,
Pela histórica ruptura,
Fratura de um sonho
Que jamais solidifica.
Marcantonio, O Avesso do Jornal 10 Técnica Mista - 1994 (Aqui) |
CODA ressoa em mim como solidão, distância e ausência... Tão presentes dentro da mecânica do dia-a-dia. E logo abaixo a IlUSÃO... ressoando mais alto ainda.
ResponderExcluirAdorei, Marquinho!!!
Beijo grande.
Marcantonio!
ResponderExcluirO sifão é onde se aloja o lodo, aquilo que esquecemos de limpar, de dizer, lembra a sujeira que nosso rastro deixa!
Coda, com a refeição esfinge, "não há o que nutrir" [MARAVILHA]
EU? Que surpresa é essa? Até tirei a postagem por achar por demais forte. Não sabia que tinha lido e feito de outra forma, muito mais bonita!
Parabéns, poeta! E obrigada!
Beijos
Mirze
Sempre que vejo o número 4 relembro de um conto do Henry Jame - Os quatro encontros. Justamente por lidar com a impossibilidade cotidiana. Mesmo os acontecimentos mais comuns, mais cotidianos, são ornados por uma aura de devir. Trocar o sifão da pia, aparar a grama, recolher o lixo. Na minha metafísica de não conclusões o sifão continua esperando para ser trocado infinitamente, como a grama e o lixo. Coisas que precisam se repetir para que os nossos olhos cansado sobejem outra amplidão. Ilusória rotina a despregar-se das retinas,
ResponderExcluirgrande abraço
Sempre talentoso, Marcantonio! Sempre ótimos poemas! CODA é sensacional, meu caro.
ResponderExcluirAbraços!
ANALOGIA é um poema onde o pensador se encontra com o poeta. muito boa a ideia, muito boa. o desenvolvimento do verso em si nos dá duas oportunidades de observar os seus questionamentos como artista: você cria, você pensa e em você as duas coisas se condensam.
ResponderExcluirOrfeu é o mito certo para tal invocação!
CODA, que título oportuno! parabéns pela escolha.
ao ler o poema revi os últimos dias de minha mãe, engraçado como as imagens que você escolheu ficaram forte quando você descreveu as sensações do personagem... minha mãe encaixava-se exatamente nas sensações do seu poema... morreu cedo e sei que foram mais os desgastes emocionais do que qualquer outra coisa, os responsáveis por ela arrefecer. tocou-me bastante marco.
ILUSÂO é fantástico! genial. você definiu a rotina.
EXPOSTA, apesar de ser um diálogo com um poema de mirze souza criou também um perfeito diálogo com o seu trabalho "O Avesso do Jornal 10". o poema de mirze é fortíssimo e suas considerações líricas ficaram no mesmo tom!
marco, sou fã de seu trabalho como poeta.
um abraço!
Cada qual a seu modo, os poemas falam alto, e se Analogia soa filosófico, Coda é todo sensibilidade (sempre vai lembrar alguém para quem o lê - ou vai fazer pensar no que vem por aí) e Rotina vem de um lado implacável da vida que por isso mesmo rende esse impossível que faz os bons poemas. Queria ler o poema da Mirze.
ResponderExcluirBeijo.
Já não é mais o ralo que assusta essa pia, nem o triturador, é a língua do homem que a domina e degrada conforme a fome que lhe vem e vai e sobra ou falta.
ResponderExcluirQue qualidade, Marcantonio!
beijos
Gostei especialmente do primeiro poema: o verso "É preciso limpar o sifão da pia!" é demais.
ResponderExcluirMas o último me deu vontade de poemar - mais ou menos assim:
Quebrei o osso do tornozelo
(simplesmente por falta de zelo)
e se não foi uma fratura exposta,
se não foi uma histórica ruptura
- muito menos a fratura de um sonho -,
como dói, caramba! Não há poesia
que resista
a uma fratura do tornozelo.
Abração.
Impossível não voltar!
ResponderExcluircaro marcantónio,
ResponderExcluirsão as pregas que coleccionam o tempo que fazem daqueles que já nada esperam o maior desafio da criação. viver sobre a seda é iludir o homem e o pulso que lhe cronometra o batimento do coração.
haja sempre natal do lado de dentro e que as pregas avulsas que se desenham na pele sejam sentidas como passos de/a vida. não mais que isso...
um abraço natalício!
Você é muito generoso, Marcantonio.
ResponderExcluirNão é todo poeta que presenteia os amigos no fim de ano com quatro poemas da mais alta estirpe literária.
Nos seus versos há sangue "que jamais solidifica" e vida. Vida humana que se rega no jardim das delícias terrenas.
Não sei se foi sua intenção, mas o quadro me pareceu que alude à célebre cena de Marcantonio com o cadáver de Julio César nos braços.
Belo, belo.
Boas festas, amigo, e muita poesia em 2011.
Natal, Novo Ano
ResponderExcluir¨¨¨@
¨¨@*@
¨@@*@@
¨¨¨¨@
Desejo a você feliz 2011, um ano de muito sucesso, 12 meses de muita saúde, 62 semanas de muitas alegrias e coragem, 365 dias de muita sorte, 8760 horas repletas de amor e paz.
reexpostas as penas,
ResponderExcluircom ou sem crase.