Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 12 de dezembro de 2010

Três Novos Poemas

AS HORAS DISPARADAS

Oh, meu amor, sei que teus olhos coniventes
Conhecem todos os rios vermelhos
Desenhados nas luas brancas dos meus olhos.
Foram tão infecundas todas as horas
Que não consumimos no amor!
Eram elas estes animais cruéis
Que nos levam em suas costas.

Não sei do que é feito o corpo dessas horas.
Será do mesmo carbono que está em nossa fragilidade
E no corpo do diamante faz a pele dura?
Quando outrora tentei lhes cravar as esporas
Elas não desembestaram o passo;
Se agora lhes puxo o freio, cínicas relincham,
Rindo das rédeas absurdas que tenho nas mãos.
Elas têm o olhar ríspido e fixo dos celerados;
As narinas hirtas, amplos túneis
Para o trânsito de um vento finito.

Oh, meu amor, sobre nós o céu tem rotas pavimentadas,
Para a corrida sem fim das nuvens amortecidas e vaporosas.
Mas, aqui no solo, já nos fere os olhos apavorados
A poeira que sobe como limalha de alumínio,
E o óleo queimado que das visões escorre
Não serve para lubrificar nossos músculos
Ou as cartilagens ressecadas da espinha que nos sustenta.

Gostávamos desse vento quente na cara
Sem saber que ele era a nossa perdição:
Achata as nossas feições
Como se tivéssemos os rostos contra uma vidraça
Que um mínimo sorriso pode trincar;
Vem erodindo em nós o frontispício
Das nossas esperanças;
Desidrata nossas pálpebras e lábios;
E pincela ácido em nossas cordas vocais
Para que não blasfememos contra o outono.

Oh, meu amor, já me caem dos bolsos os fatos irrelevantes,
As poucas moedas, as balas de hortelã, as chaves
Uma a uma, e meu mini-dicionário de hieróglifos.
E ainda sinto tão virgens as solas dos meus pés!

É urgente que falemos com os olhos
Porque as borboletas carinhosas que me saem da boca
O vento as arrebata e esfarela antes que toquem teus ouvidos.

Agarra, meu amor, os meus dedos,
Que como os teus já são garras limadas,
Que não conseguem lanhar o dorso do tempo:
Não poderemos saltar sem arrebentarmos nossos corpos
No rastro de pedras frias e cortantes
Trituradas pelos cascos das horas disparadas.


COMPAIXÂO

Tenho universal ternura
por todos os derrotados:
nós que temos cota finita
de ar para ser inspirado.


REVISÂO

Faço essa noturna leitura,
Quiromancia do presente:
Todas as linhas do teu corpo
Nas minhas mãos conferentes.

12 comentários:

  1. Ah... Lindo!

    Deixo-te um suspiro, meu amigo.

    Beijo.

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  2. Lindíssima a "Revisão". Fechas com chave de ouro...bjos!

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  3. É urgente que falemos com os olhos
    Porque as borboletas carinhosas que me saem da boca
    O vento as arrebata e esfarela antes que toquem teus ouvidos

    Que lindo isso, Marquinho! Todo o poema!
    Beijos de fã,

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  4. Pudesse eu ver...Quem dera eu soubesse que:
    quando há temor ou tremor, a boca engole as palavras, e se veste de pudor.
    O olhar tem sempre algo de nudez,
    e dirá: "te amo", mesmo quando houver mudez.
    O olhar denuncia o coração,
    mas há olhos que vêem, outros não.
    O olhar sempre diz a verdade;
    e quando se desvia é porque mente.
    .
    O devaneio é meu e a culpa é sua e desses tres novos poemas.

    abraços e boa semana!

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  5. Adoro poemas de amor e poucos o escrevem tão bem.
    Porque será? Parece que hoje as pessoas tem vergonha de falar de amor. Adorei esse poema onde o amor e as horas se complementam.
    Compaixão: "Tenho universal ternura por todos os derrotados" (FANTÁSTICO) assim como: "todas as linhas do teu corpo nas minhas mãos conferentes"

    O Vídeo do Charles...SENSACIONAL!

    Um SHOW de postagem!

    Aplausos!

    Mirze

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  6. Essas horas que nos carregam hostis, esse vento que dispersa as palavras, quem os põe em nosso tempo?

    Beijo, Marco.

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  7. Falar o quê dessa obra de arte?

    "Oh, meu amor, já me caem dos bolsos os fatos irrelevantes..."
    Não encontro palavras minhas...
    bj

    Rossana

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  8. "É urgente que falemos com os olhos
    Porque as borboletas carinhosas que me saem da boca
    O vento as arrebata e esfarela antes que toquem teus ouvidos."

    Só me resta dizer *****.
    abraço

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  9. são pois as horas febris, mola, propulsão. tempestades, vendavais - tudo converge amor-amantes-gozo-morte - vide Baudelaire,

    interessante que estes poemas me remeteram ao Pessoa: as odes fantásticas de Álvaro, a Compaixão para aquele célebre poema em linha reta e a Revisão já que o Pessoa era versado em magias. Ou como ele mesmo disse:“A felicidade está fora da felicidade.”


    abração

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  10. entenda
    meu minuto
    de silêncio
    como milênios
    de admiração

    ...

    MAGO!

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  11. "É necessário estar sempre bêbado. Tudo se resume a isso, eis o único problema. Para não sentir o fardo horrível do tempo, que abate e faz pender a terra, é preciso que nos embriaguemos sem cessar. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, como achar melhor. Contanto que nos embriaguemos.
    E se, algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do nosso quarto, você despertar com a embriaguez já atenuada ou desaparecida , pergunta ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunta-lhes que horas são; e o vento, e a onda, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder.
    - É a hora da embriaguez! Para não ser martirizado pelo tempo, embriagai-te. Embriaga-te sem tréguas.
    De vinho, de poesia, ou de virtude, como achar melhor ".

    (Baudelaire)

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  12. marco,

    há em "Revisão" a atmosfera apimentada pelo humor, ótimo!

    "Compaixão" é poema para poetas, artistas, leitores especializados, gente que sente a tal cota. excelente.

    "As Horas Disparadas" é lindíssimo! para quem vive ou viveu o amor até o ponto de saber o caminho que o tempo percorreu em si e no outro, é de fazer sentir... até chorar. não cabem mais comentários. se o verso nos atinge como leitores, então o poeta se torna perfeito.

    abraços.

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