Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 19 de dezembro de 2010

Quatro Poemas

ANALOGIA

É preciso limpar o sifão da pia.

Que simbólico é esse sifão da pia!
Uma curva que cria um lago,
Certo Letes represado
Que faz o esquecimento dos miasmas,
Do mau cheiro subterrâneo.

Um poeta limpando o sifão da pia.

- Vamos, vamos, Orfeu! Mãos à obra!


CODA

Eu a vejo encarquilhada
Junto à janela,
O olhar perdido,
Espantando as moscas
Persistentes
Num almoço distante.
Muito distante.

Eu a vejo encarquilhada
Junto à pia da cozinha,
Manipulando
Irritantes inutilidades,
Agora a faca e o tomate
Vermelho.

Eu a vejo encarquilhada
À mesa,
O garfo suspenso,
A refeição-esfinge.
Não há o que nutrir.

Eu a vejo encarquilhada
No leito.
Deitada de lado.
O braço estendido,
A mão espalmada
Para um óbolo abstrato.
A outra sobre a face.
Há dois sulcos fundos
Entre as sobrancelhas


ILUSÂO

É ilusório que eu transgrida
os teus ritos, ó rotina;
não sabia que eras retina.


EXPOSTA

(Após leitura de um poema de Mirze Souza, aqui)

Todo o meu pesar,
Empatia aflita,
Pela histórica ruptura,
Fratura de um sonho
Que jamais solidifica.

Marcantonio, O Avesso do Jornal 10
Técnica Mista - 1994  (Aqui)

13 comentários:

  1. CODA ressoa em mim como solidão, distância e ausência... Tão presentes dentro da mecânica do dia-a-dia. E logo abaixo a IlUSÃO... ressoando mais alto ainda.


    Adorei, Marquinho!!!

    Beijo grande.

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  2. Marcantonio!

    O sifão é onde se aloja o lodo, aquilo que esquecemos de limpar, de dizer, lembra a sujeira que nosso rastro deixa!

    Coda, com a refeição esfinge, "não há o que nutrir" [MARAVILHA]

    EU? Que surpresa é essa? Até tirei a postagem por achar por demais forte. Não sabia que tinha lido e feito de outra forma, muito mais bonita!

    Parabéns, poeta! E obrigada!

    Beijos

    Mirze

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  3. Sempre que vejo o número 4 relembro de um conto do Henry Jame - Os quatro encontros. Justamente por lidar com a impossibilidade cotidiana. Mesmo os acontecimentos mais comuns, mais cotidianos, são ornados por uma aura de devir. Trocar o sifão da pia, aparar a grama, recolher o lixo. Na minha metafísica de não conclusões o sifão continua esperando para ser trocado infinitamente, como a grama e o lixo. Coisas que precisam se repetir para que os nossos olhos cansado sobejem outra amplidão. Ilusória rotina a despregar-se das retinas,



    grande abraço

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  4. Sempre talentoso, Marcantonio! Sempre ótimos poemas! CODA é sensacional, meu caro.

    Abraços!

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  5. ANALOGIA é um poema onde o pensador se encontra com o poeta. muito boa a ideia, muito boa. o desenvolvimento do verso em si nos dá duas oportunidades de observar os seus questionamentos como artista: você cria, você pensa e em você as duas coisas se condensam.
    Orfeu é o mito certo para tal invocação!

    CODA, que título oportuno! parabéns pela escolha.
    ao ler o poema revi os últimos dias de minha mãe, engraçado como as imagens que você escolheu ficaram forte quando você descreveu as sensações do personagem... minha mãe encaixava-se exatamente nas sensações do seu poema... morreu cedo e sei que foram mais os desgastes emocionais do que qualquer outra coisa, os responsáveis por ela arrefecer. tocou-me bastante marco.

    ILUSÂO é fantástico! genial. você definiu a rotina.

    EXPOSTA, apesar de ser um diálogo com um poema de mirze souza criou também um perfeito diálogo com o seu trabalho "O Avesso do Jornal 10". o poema de mirze é fortíssimo e suas considerações líricas ficaram no mesmo tom!

    marco, sou fã de seu trabalho como poeta.

    um abraço!

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  6. Cada qual a seu modo, os poemas falam alto, e se Analogia soa filosófico, Coda é todo sensibilidade (sempre vai lembrar alguém para quem o lê - ou vai fazer pensar no que vem por aí) e Rotina vem de um lado implacável da vida que por isso mesmo rende esse impossível que faz os bons poemas. Queria ler o poema da Mirze.

    Beijo.

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  7. Já não é mais o ralo que assusta essa pia, nem o triturador, é a língua do homem que a domina e degrada conforme a fome que lhe vem e vai e sobra ou falta.
    Que qualidade, Marcantonio!
    beijos

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  8. Gostei especialmente do primeiro poema: o verso "É preciso limpar o sifão da pia!" é demais.
    Mas o último me deu vontade de poemar - mais ou menos assim:
    Quebrei o osso do tornozelo
    (simplesmente por falta de zelo)
    e se não foi uma fratura exposta,
    se não foi uma histórica ruptura
    - muito menos a fratura de um sonho -,
    como dói, caramba! Não há poesia
    que resista
    a uma fratura do tornozelo.

    Abração.

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  9. caro marcantónio,
    são as pregas que coleccionam o tempo que fazem daqueles que já nada esperam o maior desafio da criação. viver sobre a seda é iludir o homem e o pulso que lhe cronometra o batimento do coração.
    haja sempre natal do lado de dentro e que as pregas avulsas que se desenham na pele sejam sentidas como passos de/a vida. não mais que isso...
    um abraço natalício!

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  10. Você é muito generoso, Marcantonio.
    Não é todo poeta que presenteia os amigos no fim de ano com quatro poemas da mais alta estirpe literária.
    Nos seus versos há sangue "que jamais solidifica" e vida. Vida humana que se rega no jardim das delícias terrenas.
    Não sei se foi sua intenção, mas o quadro me pareceu que alude à célebre cena de Marcantonio com o cadáver de Julio César nos braços.
    Belo, belo.
    Boas festas, amigo, e muita poesia em 2011.

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  11. Natal, Novo Ano
    ¨¨¨@
    ¨¨@*@
    ¨@@*@@
    ¨¨¨¨@
    Desejo a você feliz 2011, um ano de muito sucesso, 12 meses de muita saúde, 62 semanas de muitas alegrias e coragem, 365 dias de muita sorte, 8760 horas repletas de amor e paz.

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