Por que cismar que as coisas estão incompletas?
Será um longo caminho até perceber:
não há caminhos que esperem por mim.
Perceba que o verbo ser é uma rocha
que conteve um fóssil lívido,
memória do que não é vida:
não fala de veias, de sangue
de carne putrefata, de células fugitivas.
Manejamos mal o verbo estar
porque ele escorre para o solo
feito arroio de urina e suor e lágrimas.
Sob os nossos pés o inevitável verbo estar se evapora.
A MEMÓRIA NAS PALAVRAS
Era poeta.
Inventara para si uma biografia:
tudo transcorrera na acrópole das palavras.
Acreditava que a palavra proferida lhe suscitava
saber hoje o que seria ontem.
Como?!
Poetas crêem que as palavras esperam pelas coisas,
e não o contrário;
e percorrem longas corredeiras de vida
seguindo por detrás dos nomes.
Poetas não sabem dizer agora em carne e osso
porque têm a memória inflamada e cheia de pus.
NO AZUL TEMPORÁRIO
Com que material
eu, inábil, faria poesia
senão com as escamas
numeradas do meu dia
fugindo peixe
nas mágoas correntes?
Seria o caso de hospedar
esse peixe num aquário,
dentro do azul temporário
da ilusão?
Seria fútil questão
ou intenção cruel
extraditar o meu dia
de seu meio líquido
para matá-lo de asfixia,
cindindo-o ao meio
com a faca estética
e deixá-lo secar ao sol
como forma sem vísceras
e hermética?
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Estou com um novo blog cujo título deriva do poema acima: O Azul Temporário.
Ele surge da necessidade de um espaço mais livre (e leve) para ensaios, esboços e experimentações (fundadas, infundadas ou afundadas, sabe-se lá!), que não corresponderiam ao feitio do Diário..., mesmo que, de alguma forma, o complementem. Não custa tentar. E embora eu só atenda àqueles flutuantes e incertos 10% de inspiração, espero poder atualizá-lo diariamente com um poeminha, dentro do espírito “nem um dia sem uma linha” (a rima não foi intencional). Além do mais, pode ser divertido.
Para quem quiser conhecer:
Vejam matéria e fotos do making off das filmagens para o documentário sobre CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ DO DESERTO, a comunidade que foi aniquilada, a exemplo de Canudos, por balas e bombardeios aéreos. Leia, Comente e divulgue:
ResponderExcluirhttp://valdecyalves.blogspot.com/2010/09/caldeirao-de-santa-cruz-do-deserto.html
Marcantonio, meu amigo:
ResponderExcluiré assim mesmo.
As asas pegam fogo
e sempre o voo
é tão rasante
que sobram
réstias
do que somos.
Tu, grande poeta,
percebes os verbos.
Percebendo-os, já eternizas
os estares e os seres.
Forte abraço,
camarada.
[deste lado também a palavra vegetal, a estação ao contrário, o Outono Boreal: quem manda o mundo não ter estação igual...]
ResponderExcluirum imenso abraço, Marcantonio
Leonardo B.
marcantonio,
ResponderExcluir"ser-estar" é um poema físico! você é poeta da muitas sensações e nos proporciona viajar por elas. há conceitos filosóficos e metafísicos. muito bom.
a frase:
Sob os nossos pés o inevitável verbo estar se evapora.
é valiosa!
em "a memória nas palavras" o seu retrato para definir poeta colocou os contornos de sombra do lado certo do rosto, pude ver ali vários dos indefiníveis caio's fernando, dos anjos, maiakovski's... e suas faces.
"no azul temporário" um adorável surrealismo em aquário para mil peixes elétricos.
sua poesia encanta-nos!
abraços.
Palavras esperando pelas coisas... uma imagem e tanto.
ResponderExcluirSempre poemas de qualidade aqui, poemas que nos leem. Adoro seu espaço, e adorarei seguir o outro blog, claro!
Beijo.
Os três poemas anunciam uma mudança e vejo que ela já aconteceu lá em direção ao seu azul temporário, excelente nome para um blog, para qualquer coisa, que você tranforma qualquer coisa com as suas ideias, sua escrita e os seus desenhos. Vou lá no azul, ainda que temporário, ver o que você está aprontando. Beijo.
ResponderExcluirSER poeta em autobiografia sem dizer do que há de sangue e suor é ESTAR no azul temporário das veias de ligação entre verbos sem liga...
ResponderExcluirabraço, poeta!!!
sentidos da condição humana e o ser da poesia: sob o manto da idiossincrasia vão-se tecendo. o bom do ser/estar é o temporal, chuva de existência, nuvem de esquecimento,
ResponderExcluirabração
Marco, os poemas são belíssimos e, a meu ver, tratam da relação do poeta com a poesia e a palavra, sobretudo os últimos. Nada mais terrível do que ficar debatendo e dissecando poemas, mas só uma observação: o poeta prescinde das palavras. Nem todo poeta escreve e a poesia não precisa de palavras. Alguns ousam escrever e num formato não textual. Nada mais vivo e "desmemoriado" do que a poesia, a quem as palavras servem e não o contrário. Quanto ao primeiro poema, puxa, é filosófico, lindo!
ResponderExcluirbjs.
Teus poemas são para sentir...lindos! Vou lá conhecer o outro espaço! Bjão.
ResponderExcluirTudo lindo, meu querido Marcantonio!
ResponderExcluirTudo lindo!
E vamos ao O Azul Temporário...
Certamente será um sucesso!
Como poderia não ser?
Forte abraço, grande poeta amigo!
Só por estes versos, eu já tiro o chapéu:
ResponderExcluir"Com que material
eu, inábil, faria poesia
senão com as escamas
numeradas do meu dia
fugindo peixe
nas mágoas correntes?"
Melódicos, versos que dançam...
Marcantonio seus versos me encantam. E, me surprendem também. Hoje me sinto como o 'peixe' no aquário, sufocando... à medida que lia me faltava folego. Hoje, sou inteira esse poema. Acho que estou em combustão!
ResponderExcluirFica aqui um convite com profundo respeito:
Nova Postagem na minha Casa.
Espero sua visita, e um retalho se desejar. Será uma honra ve-lo passear por lá.
com amor e carinho,
Sílvia
http://www.silviacostardi.com/
já tô indo!
ResponderExcluirMarcantonio!
ResponderExcluirComo sempre é extrardinária sua poética!
Nunca sou, sempre estou, porque mutável e pobre ser humano em aprendizado.
Somos todos peixes neste imenso aquário!
Um forte abraço!
Mirze
a memória nas palavras… esta subserviência humana transcende.
ResponderExcluirentregamo-nos às palavras como se elas fossem a estrela de david no trilho de uma redenção obsessivamente almejada. algum tempo depois, percebemos de que delas apenas sobra a cadência das estrelas tombando em silvos silenciosos, ao mesmo tempo que anunciam falsos clarões de luz. as palavras não têm memória e o seu único referente as explosões de luz nos olhos de quem as procura. o projecto poético, porque fundado nestas tatuagens apócrifas, será, para sempre, adiado. sabes, ainda persigo a verdade da escrita de sangue, onde as palavras sejam apenas os sorrisos, os moveres de olhos, as contracções musculares, os espasmos de alma. desisto! não quero caminhar para onde inevitavelmente me esperam (citando saramago).
um abraço, amigo marcantónio. esta efabulação é apenas um sinal de fumo sobre a planície deserta. descobri que de lá de cima o mundo pode ser percepcionado, tocado, cheirado, escutado e saboreado… não necessariamente nomeado.
invocando negrereiros: morte ao dantas, pim! morte ao verbo, pum!
Estar talvez seja mais humano... o infinito de coisas fugidias. Ser parece um deus distante demais de nós mortais. Ritualizemos, então, o Ser? ou não.
ResponderExcluirabraço,
Maria.
Marcantonio, seus poemas são daqueles em que a ambiguidade da poesia expressa uma exatidão incrível. Aula de poema.
ResponderExcluirPosso publicar esses poemas no Poema-amigo do inscrições?
Beijo.
Poesia dorida para a primavera - bem alheios à. Mas com passagens fortes, como:
ResponderExcluir"Com que material
eu, inábil, faria poesia
senão com as escamas
numeradas do meu dia
fugindo peixe
nas mágoas correntes?"
Que vale os três poemas.
Abração.