I
Vejo a lenta retirada da vida
do cofre dos teus olhos,
e uma crispação das tuas mãos
agarrando o vácuo aberto
pela queda dos objetos inertes.
Os dias caminham para o cinza.
Quando tudo será
uma aguada de nanquim?
Um olhar desdenhoso para a manhã
já decifrada por décadas e décadas.
Mas ainda respondes aos sons
mais estrídulos:
as inacreditáveis
aves urbanas.
E teus pés?
Quando ignoravas a terra insidiosa
eles eram lépidos,
agora se arrastam pelo solo
como se escavassem nele
a derradeira carícia.
II
Ela quisera ter nascido
das espumas sacras do mar
como Afrodite Anadiômene.
Sonhara para si mesma
uma gestação de pérola
perfeita,
na perfeita escuridão
da ostra.
O parto? Um beijo apaixonado
da luz do verão.
Mas, quando chegava uma concha
aos ouvidos,
uma voz de nereida lhe dizia:
- Não é verdade, não é verdade!
E ela sofria, sem sangue frio,
um exílio
de peixe nascido com pulmões.
III
Impus às palavras
um pacto arbitrário:
que não referenciem
nada visível
porque as coisas visíveis
estão presas como vagões
deslizando em silêncio
sobre linha férrea.
Fecho os olhos
esperando que passem,
aquém das pálpebras,
palavras inesperadas
como riscos de luz,
vagalumes ríspidos
sobre o horto de sombras.
Mas nada ocorre nesta noite
voluntária.
Abro os olhos
e tudo tem uma alma nova,
mas volátil,
expirada em segundos!
Quando fechar os olhos
devo capturar alguma palavra,
como uma flor carnívora
atrai e aprisiona um inseto.
As palavras só me falarão
de fora para dentro.
Marcantonio - Estudo em óleo.
Outras imagens minhas AQUI
quarta-feira, 20 de outubro de 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Caro Marcantonio. Sua poesia é uma passagem de primeira classe ao imaginário. Forma um sem numero de imagens como se estivesse acabando de nascer. A II manifesto minha afeição em especial. Uma legítima obra de arte.
ResponderExcluirParabéns.
PS: Saúdo aqui tbm pelo seu estudo a óleo. reflete sua poesia. Da a liberdade de escolha.
Belas palavras que falaram de fora para dentro e foram capturadas. E gostei também do estudo em óleo.
ResponderExcluiruma aguada de nanquim, uma gestação de pérola, vagalumes ríspidos - fragmentos dos sem títulos, eu fico sem jeito de comentar, reverencio
ResponderExcluirabraço
Marcantonio
ResponderExcluirVocê está, sempre, a nos oferecer jóias.
Hoje nos traz precioso pendentif, onde rebrilham três ricas pérolas, gestadas com perfeição, na escuridão da ostra.
Abraço apertado, meu querido amigo!
Inspiro a plenos pulmões quando te leio, mas para sentir tudo aqui tbm busco brânquias. Reinvento sentidos, órgãos, e como é boa essa poesia que nos faz renascer de outras formas.
ResponderExcluircaro amigo,
ResponderExcluirjá nos tens habituado a cascatas de poesia, assim em catadupa, de um modo tão sibilino que quase nos deixa sem fôlego. agarro-me aos dizeres daquela ostra que vivia entre o delírio da pérola e a clausura da noite, num festim onde o mar é o maior predador... ainda que com pulmões para lançar o grito, as palavras secam nos lábios (já nem de dentro para fora ousam ser)...
um abraço, poeta!
é impossível não amar este texto, usei a simbologia do teu abrir e fechar dos olhos no meu blogue, obrigada pela inspiração
ResponderExcluirbeijos
Laura
Marcantonio!
ResponderExcluirTudo que aqui leio me parece sagrado! Tamanho magnetismo em manusear palavras que se acomodam inspirando à todos os sentidos a excelência da poesia, quando em estado Maior!
Fantástico!
A tela, maravilhosa!
Receba minha reverência!
Beijos,
Mirze
Caramba, esse teu pacto com as plavras, de não fazerem referências a nada visível, cara, é tudo o que eu precisava fazer, pelo menos em alguns momentos, coisa que a alma pede e que não atendo. Ah, mas vc tem a vantagem de criar com as tintas,criar como artista plástico, que já é o máximo. De-mais o poema, e também o poema em óleo!
ResponderExcluirAbraços,
Quando li os dois últimos versos e os olhos se viram na tela...tive a sensação de viver exatamente o que dizias, a palavra falando de fora para dentro. De um jeito raro. Lindo, Marcantonio. Um beijo!
ResponderExcluirOs três poemas são muito bonitos, mas o segundo é uma história completa em forma de poema, e o terceto final é magnífico.
ResponderExcluirAbração e um ótimo fim de semana.
nosso senhor das águas! que fôlego é esse?!?
ResponderExcluir" Quando tudo será
uma aguada de nanquim? "
(eis o mistério do deslocamento)
" E ela sofria, sem sangue frio,
um exílio
de peixe nascido com pulmões. "
(é a tal ironia netuniana)
" As palavras só me falarão
de fora para dentro."
(estou de barbatana em pé)
Psiu... tu és oceânico!
Beijo, mago.
Vesti as escamas!
ResponderExcluirCaro, Marcantónio
ResponderExcluirCreio que a poesia se justifica nesse labor perene que vai do silêncio à palavra e a ele retorna. Creio também que é nesse labor que nos fazemos homens frágeis, imperfeitos, heróis e também imbecis quando tentamos escapar a esse destino matricial. Creio igualmente ser esse labor que habita a tua palavra e, por isso, é poesia. Grande.
Parabéns. Abraço
Marcantonio, buscamos as palavras e somos seus prisioneiros. Queremos comunicar-nos com as palavras - sentimo-nos ricos, superiores, porque temos as palavras, o instrumento preciso para a comunidcação. Mas comunicar o quê? Se precisamos das palavras, de seu poder de encanto e sedução. E de seu nada, seu tanto-faz. As palavras confessam-se impotentes. Criam imagens, que não têm compromisso com a comunicação, apenas com a beleza. Por isso somos poetas. Escravos das palavras. Senhores das imagens, que ultrapassam as palavras.
ResponderExcluirAbração.
marco,
ResponderExcluira derradeira carícia é a palavra ofertar-se ao fim, assim como você permitiu que ela fizesse no primeiro verso. lindíssimo!
a vênus que não nasceu onde quis e viveu a dor física de ser peixe fora d’água. ah! especialmente guardarei o verso para reler. você conseguiu descrever sensações. muito bom.
a frase:
E ela sofria, sem sangue frio,
um exílio
de peixe nascido com pulmões.
é especial! .
no terceiro e belíssimo verso, está um retrato seu nos versos:
Impus às palavras
um pacto arbitrário:
que não referenciem
nada visível
porque as coisas visíveis
estão presas como vagões
deslizando em silêncio
sobre linha férrea.
Fecho os olhos
esperando que passem,
aquém das pálpebras,
palavras inesperadas
como riscos de luz,
vagalumes ríspidos
sobre o horto de sombras.
é exatamente assim que eu o vejo quando penso em você poeta. nunca retratar o óbvio, a primeira impressão, o previsível... com certeza são tais qualidades que me atraem para o seu trabalho.
a conclusão é o resumo do ideal lírico:
As palavras só me falarão
de fora para dentro.
sou fã do seu trabalho.
abraços!
PS: belo óleo.
Marco, faço coro ao pessoal acima.
ResponderExcluirTrês poemas de grande magnitude poética.
Perdoe o pleonasmo.
À primeira vista são independentes, mas quando lidos em sequência tornam-se um só poema.
O "Estudo em óleo" também é magnífico.
Parabéns.
Vida que segue.
Marco, sempre sinto nos teus poemas um "algo" que me desloca, uma urgência das coisas que não se deixam ser ditas. O II me arrebatou, saber-se peixe e ter pulmões é tão difícil.
ResponderExcluirDeixe que tuas palavras referenciem o que é visível, talvez seja essa tua mais marcante característica, o olhar único que perscruta com maestria o que aos outros pareceria banal.
gostei muito desse teu estudo em óleo,
vejo nele caminhos e descaminhos, em labirintos.
Mas acho que é apenas o meu olhar falando de dentro para fora.
um beijo
Tão linda as imagens que você cria como as que suscitamos, embalados pelos seus textos.
ResponderExcluirbeijo grande
Talvez estejamos mesmo derivando para cinzas, forças como a de Afrodite podem nos fazer derivar para pérolas. Em outros textos teus que li até agora, achei forte, intenso o diálogo com os mitos, com as imagens. Muito fôlego para teus poemas!
ResponderExcluirHá a emoção para além das palavras, há estes poemas-pérolas, um estudo guardado em tela - de composição.
ResponderExcluir