Acho muito curiosa a forma como se constroem certos discursos sobre as mudanças do mundo. Gostamos de imaginar processos de ruptura ou descontinuidade como forma de assegurarmos a inevitabilidade de certo andamento das coisas, algo como crer que mudar é morrer para o antes. Mas ignoramos o dado de que se rupturas imediatas ocorressem talvez não tivéssemos sequer como analisá-las por falta de conceitos ou instrumentos apropriados. As coisas não se dão como se despertássemos para um novo mundo saindo de um longo coma. O princípio de continuidade segundo o qual a natureza não dá saltos é também aplicável a cultura. Mas atendendo a um espírito de combatividade devotado a certos interesses ou predileções, não suportamos períodos de transição nos quais modelos diferentes costumam conviver. Não, é necessária uma espécie de coma conceitual induzido para afastar as consciências refratárias ou incrédulas. Dúvidas? Deixe estar... Ouçamos o piloto do mundo: “Senhores passageiros, estamos passando por uma área de mudança radical, mas fiquem tranqüilos, pois sabemos perfeitamente aonde estamos indo.” Ora, mas se já sabemos, como podemos dizer que se trata de uma mudança radical? Talvez porque não seja tão radical assim.
Alguns desses discursos seguem então um finalismo otimista pelo qual toda mudança atende ao princípio de razão suficiente, ignorando, porém, o princípio de continuidade pela negação de qualquer historicidade. É um otimismo intolerante que prega a atualidade total, como se o passado fosse um grande necrotério de idéias e práticas. Segundo essa mentalidade, criatividade, inteligência e eficiência e outros valores ideais são prerrogativas do presente, só encontradas no passado, mesmo o recente, em estado primitivo. O passado importuno que ainda alcança o presente, é visto como um modelo estático que precisa ser superado para que possamos dar conta das novas exigências. Só não se explica como um presente tão dinâmico originou-se de um passado tão estático. Mas, provavelmente se lançaria mão do artifício de explicar um presente que acena para um futuro tão formidável, como se fosse o resultado da ação voluntarista de algumas mentes brilhantes.
Então, a pergunta parece ser esta: como afirmar a validade ou existência de valores novos senão como resultante da transformação gradual de valores precedentes? Parece que dispomos de dois modelos de crença a esse respeito. De um lado a concepção de uma realidade complexa onde as mudanças ocorrem de modo relacional e disperso, sem que possamos afirmar de maneira absoluta para onde elas nos levam. De outro, o modelo que quer afirmar a subitaneidade de mudanças das quais já se sabe o sentido e a extensão, isto é, um modelo para fins afirmativos, onde o presente seria descontínuo em relação ao passado, mas contínuo em relação ao futuro. “Daqui pra frente, tudo vai ser diferente...”. Claro que esse futuro diferente nunca chegará, pois então já não será percebido como tal.
Eu estava recentemente lendo um livrinho curioso, adquirido por nada num sebo há anos atrás. Chama-se “O Preço do Futuro” e reúne uma série de entrevistas concedidas por intelectuais e cientistas à Rádio Europa Livre em 1970, sobre suas visões do mundo em face dos avanços tecnológicos. Curiosamente, se descontarmos a questão da guerra fria que polarizava o mundo então, as entrevistas parecerão bem atuais, próximas de discursos encontrados hoje a respeito das tecnologias da informação, da genética, do aquecimento global. Está lá, também, a costumeira divisão entre otimistas e pessimistas, indicando que não há nada como acompanhar uma visão do futuro construída no passado para aprendermos a relativizar o presente. E por que a discussão não teria mudado nesses quarenta anos? Porque ela toca numa questão sensível, a crença otimista própria do cientificismo do século XIX de que a técnica (ou a tecnologia) seria capaz de mudar para melhor o interior do homem; idéia essa que sempre se mostrou indemonstrável, senão falsa, e que ainda permanece por aí, em nossos dias. A função mágica que a tecnologia ocupa em nossas vidas, não dá conta de mudar a consciência humana no seu sentido profundo, que inclui nossas contradições afetivas e morais. Mas se a tecnologia não alcança esse fim, pode, no entanto, contribuir para afastar o homem da busca da superação dessas contradições ao disfarçá-las, favorecendo certo esvaziamento humano. Ou seja, falar do novo homem criado pelo avanço tecnológico terá sentido apenas no que se refere às suas capacidades intelectuais e de domínio material, mas não do homem integral que reúne em si dimensões afetivas e irracionais.
Encontrei também nesse livro um conceito que elucida algumas das minhas sensações cotidianas. Trata-se da “alienação cósmica”, idéia que tentava explicar a percepção ambivalente do homem comum dos anos sessenta, posto em contato através da TV com a dimensão mítica de uma tecnologia capaz de levar o homem à lua, ao mesmo tempo em que se confrontava com a incapacidade de se organizar os transportes públicos, a coleta do lixo, ou algumas das suas necessidades diárias básicas. Algo semelhante é enfrentado por nós, fascinados diante das maravilhas disponibilizadas por um avanço tecnológico contínuo, enquanto somos obrigados a suportar tantas carências e obstáculos que nos parecem alucinatórios em sua mesquinhez.
Por fim, reproduzo um trecho da entrevista de Brian Aldiss no livro citado acima. Aldiss, premiado autor de ficção científica, teve seu conto Super-Toys Last All Summer Long (Superbrinquedos Duram o Verão Todo) utilizado como base para o roteiro de A. I – Inteligência Artificial de Steven Spielberg. No referido trecho ele demonstra, à sua maneira, como a tecnologia pode ser investida na utopia de um homem melhor:
“Mas a criação da maioria culta talvez possa resultar do uso intensivo de computadores. Em The Shape of Further Things, eu descrevo o modo pelo qual os terminais de computadores instalados nas casas – do mesmo modo que os aparelhos de televisão – poderiam livrar os estudantes do trabalho maçante de perseguir fatos escondidos em fontes enganosas. Os terminais de computadores dariam acesso direto às fontes de informação dos grandes centros autorizados do mundo; ou à sua mais próxima biblioteca da rede. A disciplina do aprendizado ainda seria necessária – mas as horas perdidas na procura dos fatos seriam evitadas. Teríamos uma explosão de dados numa escala sem precedentes. Durante o tempo economizado, as crianças poderiam aprender como viver, em vez de como ganhar a vida. Teríamos então uma verdadeira educação para a vida, o prêmio do autoconhecimento chegaria mais cedo em vez de mais tarde, com uma conseqüente diminuição de tensão no indivíduo e na sociedade. Se isto jamais acontecer – e as probabilidades são bastante remotas – será um genuíno passo para a utopia; para termos melhores pessoas vivendo melhor.”
Bem, a explosão de dados já está aí há alguns anos e numa dimensão bem superior, provavelmente, à imaginada por Aldiss. Quanto à educação para a vida, o autoconhecimento, o tempo livre...
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