terça-feira, 6 de julho de 2010
Dois Novos Poemas
PALAVRA OUTRA
No papel a palavra não é aquela
Em saliva quente engrolada
E que eu mascava, triturava
Com meus molares anoitecidos;
Ou que se agarrava, pudica,
Às minhas gengivas.
Não era ali grafada, a palavra mesma
Que não viera do estômago revolto,
Que não fugira dos pulmões doutos de ar,
Que não vazara das veias permeáveis;
Vinda de um íntimo devoluto
Que, afinal, não era lugar algum
De reconhecida propriedade.
De onde viera tal palavra, então,
Para ser outra nos campos de escrita?
Nem alada viera, nem brotara de veio,
Nem irrompera em sangue de ferida
Ou em poros de lavoura.
Essa palavra chega ao papel gelada,
Depois de correr por uma serpentina
Que me atravessa tendo seus extremos
Imersos no mundo?
Essa palavra tem, no papel, semblante
De ostra deflorada a canivete,
Sem mistérios de águas salobras
De lama, de crostas lavradas no tempo.
Chega ao papel como um veleiro à marina,
Que com velas arriadas parece ali arraigado.
Essa palavra, se no papel se imobiliza,
É tatuagem plana de inseto sem ventre;
Hipnose de serpente cordata, sem presas;
Ou estrela negra arrimada em carta celeste.
TRAÇOS
Olhos
Com lírios.
Na pele
Apelos
Rentes.
Na face
Posfácios
Rubros.
Na boca
Os antecedentes.
A Inútil Presa - Marcantonio - Técnica Mista
Marcadores:
Serei Poeta?
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"Essa palavra tem, no papel, semblante
ResponderExcluirDe ostra deflorada a canivete,
Sem mistérios de águas salobras
De lama, de crostas lavradas no tempo"...
Nossa, que poema, heim, Marquinho??? Esse eu vou tomar emprestado logo mais e postar no Roxinho, se me permitir. De onde viera essa palavra????
Belíssimo também o A inútil Presa. Hoje é 1000 pra você!
Abraços,
Tânia
Essa palavra que vem misteriosa, roubou-me as palavras tortas que eu tinha... o que posso fazer agora senão calar-me?????
ResponderExcluirBeijo-te com doçura.
"Traços" é desses poemas que carregam um universo...quando se chega ao final, com a surpresa dos antecedentes, vem o suspiro!!!
ResponderExcluirGrande beijo, muito bonito!
traços de palavras outras são coniventes com a presa que se auto devora. cortam o prefácio da madrugada com seus veleiros de velas líricas e atravessam o sono dos olhos atentos.
ResponderExcluirabraço, caro poeta!!!
Ambos excelentes. A palavra, chegando gelada ao papel: isso ficará para sempre na minha memória.
ResponderExcluirMarcantonio, a palavra se transforma enquanto a processamos, acompanha o turbilhão da imaginação e se submete, sempre, a qualquer troca ou esquecimento. A palavra é, por excelência, o que há de mais tolerante em uma pessoa. Ou não. Sei lá *risos*. Estou caindo de cansaço e posso estar a ter apenas devaneios.
ResponderExcluirMarco, coisa linda, hein?
ResponderExcluirda 'palavra outra' ficam em mim algumas imagens, como a palavra pudica agarrada às gengivas, os poros de lavoura, a ostra deflorada a canivete,
E, mais do que tudo, essa serpentina, que cospe palavras geladas e tem os extremos imersos no mundo. Tudo me traz sensação.
'Traços' é genial!
gostei demais da A Inútil Presa, presa de autopredadora presa.
moço, hoje tu estava demais!
Um beijo
Carlos Pena Filho certa vez disse que não há melhor brinquedo para adultos que as palavras. Traços, oras, é uma diversão e tanto!
ResponderExcluirantecedentes, como impressões digitais ou traços da gênese. doutras palavras corroém lentamente mesmo fixadas sobre o clamor desta pátina,
ResponderExcluirabraço
E eis que a excelente poesia se associa à arte e provoca uma explosão criativa fantástica.
ResponderExcluirAbraço
Têm música as palavras e beleza o dizer.
ResponderExcluirL.B.
Ô Tânia, obrigado sempre por tudo, pelo incentivo, pelas contribuições aqui e pelo carinho.
ResponderExcluirEsse negócio de 1000 é com o Assis. Rs.
Abraços.
Kenia, você diz tanto! E ainda tem muito o que dizer, para a nossa sorte e alegria.
ResponderExcluirUm beijo, querida.
Daniela, eu o fiz ontem, durante uma prosaica viagem de ônibus. Vá se entender! Fico feliz que você o veja dessa forma.
ResponderExcluirObrigado!
Beijo.
Ribeiro, seu comentário me gratifica: você incluiu tudo nele poeticamente!
ResponderExcluirUm abraço, poeta de muito mais do que alguma poesia!
Gerana, quando você diz que guardará na memória, eu passo a ter certeza de que consegui dizer algo especial. Obrigado.
ResponderExcluirAbraço.
Bípede, não são devaneios não. Entendo o que você disse. Talvez eu não utilizasse o termo 'tolerante', pois ela também serve à intolerância. Diria maleável, nessa transformação a que você se referiu. Acho que a palavra é algo vaporoso que adquire diferentes graus de solidificação, mesmo a despeito de quem a emite.
ResponderExcluirAbraço.
Andrea, essa imagem da serpentina é a que mais me agrada. Como sempre não tenho idéia de onde surgem essas imagens. A palavra é algo que recebemos do mundo, da convenção social, de meios objetivos. Nós a manipulamos como acervo comum a todos, mas a devolvemos com diferente temperatura. Ela nos atravessa.
ResponderExcluirBelíssima definição da Inútil Presa, Andrea.
Um beijo.
Fred, não há como discordar do Carlos Pena Filho. Aliás, em qualquer forma de arte esse aspecto lúdico é fundamental, está no próprio sentido de composição. E há coisa mais séria para a criança do que a própria brincadeira? Agora, nem sempre o lúdico está associado diretamente ao prazer, passando antes pelo desafio, pelo sentido da competição consigo mesmo ou pela conquista de uma idealidade que a imaginação propõe.
ResponderExcluirAbração!
Ô Assis, me dei conta de que a palavra 'corroem'pode ser rearrumada como 'ocorrem', daí que "as palavras corroem (ocorrem)lentamente".
ResponderExcluirAbração!
Paula, seja bem-vinda aqui. E muito obrigado por suas palavras.
ResponderExcluirAbraço.
Rapaz, sua denominação da palavra arrancou do âmago coisas que eu até havia me esquecido.
ResponderExcluirE para o segundo poema, só sobrou-me um suspiro. Lindíssimo!
Gostei muito da tela também, interessante trabalho. Vc é um artista completo =).
nestes três trabalhos sinto os traços esquivos de palavras por dizer que arribam aos portos onde os olhos, a pele e a boca são apenas os antecedentes de uma presa... da presa... fácil, ignota... (in)útil.
ResponderExcluirsempre em excelente forma, marcantónio!
Adoraveis versos.
ResponderExcluirOs li em voz alta
ness amnhã de quinta
que o sol
entra por
minha
janela
e me
arranca
da cama
me
levando
pra vida.
Delícia de experiência!
Te espero no meu canto
pra um encontro poetico.
Que tal?
Bjins entre sonhos e delírios
Lídia, ah, a música das palavras! Tomara eu faça uma canção com os nomes que me embriagam!
ResponderExcluirObrigado.
Abraço.
Lara, o seu comentário foi tão bom para mim! Artista completo? Acho que sou artista inacabado e com pressa. Mas, aonde irei?
ResponderExcluirSe as coisas que resgato do esquecimento são boas, então esse é o máximo a que eu poderia aspirar.
Beijo
Jorge, com esses traços esquivos você fez um poema-comentário! Como sempre, aliás.
ResponderExcluirGrande abraço, poeta!
Reflexo d'alma, passarei lá novamente, e com prazer. Obrigado pela presença.
ResponderExcluirBeijo.
Outras palavras grávidas que nascem/morrem/nascem/morrem... no ventre frio do poema.
ResponderExcluirNa boca, os antecedentes do verbo.
O quadro também é digno de pecado.
Aquele abraço, pintorpoetafilósofo.
"Essa palavra chega ao papel gelada,
ResponderExcluirDepois de correr por uma serpentina
"
Três belos exemplos do poeta que você é. Registro a inquietação que a leitura de "Palavra Outra" produziu em mim. Imagens que não se esquece. Apreciei o muito que conseguiu em seu despojado "Traços"
ResponderExcluir"A Inútil Presa" compondo belamente e reforçando significados. Nossa, adorei!
Um beijo. E inté!
Ô Paulo Jorge, obrigado. Mas filósofo não sou não. Rs.
ResponderExcluirAbração!
Ediney, obrigado pela presença aqui. Pois é, na fala a palavra tem outra temperatura, é gota que cai na chapa quente. Calefação.
ResponderExcluirAbraço.
Ju, obrigado uma vez mais, pela atenção, pelo carinho e pela perspicaz leitura.
ResponderExcluirBeijo, até breve.
Oi Marcantonio, te achei lá longe, no blog da Bípede e você aqui tão perto no Rio.
ResponderExcluirGostei muito dos seus poemas! Parabéns!
"De onde viera tal palavra, então,
Para ser outra nos campos de escrita?
Nem alada viera, nem brotara de veio,
Nem irrompera em sangue de ferida
Ou em poros de lavoura."...
cara, é lindo!
Patrícia, obrigado. Pois é, na blogosfera o conceito de vizinhança é outro. Rs. O nome do seu blog é muito bom, Dias Genéricos! Já estou seguindo aqui de perto.
ResponderExcluirObrigado, mesmo, Patrícia.
Um abraço.
Marcantonio, seus poemas são muito bons e a imagem vai ficar guardada na galeria particular aqui do micro. Parabéns e obrigada pelo comentário. Quero ficar em dia com seu blog.
ResponderExcluirO engraçado na internet é que quando você pensa que já conhece quase todo mundo, descobre que falta ainda muita gente boa que vale a pena conhecer. É preciso tempo livre, acho que é o que está me faltando.
Abraço grande.
em "Palavra Outra" você criou imagens muito boas, fortes, visualmente criativas ("ostra deflorada a canivete","tatuagem plana de inseto sem ventre", "poros de lavoura", etc, etc, etc...)e ficou clara para mim sua visão plástica da poesia. eu gostei muito, me agrada demais a imagem que salta das palavras, eu as persigo! você é muito bom em construí-las!
ResponderExcluirem "Traços", ao contrário do outro poema, as visões são diretas, flechas, flashes, sensoriais, quase como em uma escultura. eu fiquei encantada com o resultado. parabéns, principalmente pela construção de:
"Olhos
Com lírios."
passeando pelos blogs cheguei até aqui, foi do 6vqcoisa que vim vindo. gostei muito marcantonio. seu trabalho como poeta é ótimo!
quanto a pintura em "A Inútil Presa" os símbolos são tão fortes que se tornam quase palavras.
veja: um escritor que pinta frases, um pintor que escreve quadros. assim senti.
o quadro tem uma textura muito boa e as cores estão com a tonalidade de uma visão entre véus. é bem bonito.
estou seguindo o blog e tentarei voltar mais vezes para acompanhar suas criações.
fiquei muito feliz com o que conheci aqui.
grande abraço.
Dade, que bom vê-la aqui. Você está certa, compartilho dessa percepção da falta de tempo que impede tantas aproximações e descobertas que eu gostaria de empreender. Mas, aos poucos chegamos lá. Agora, já conheço o caminho do seu blog, trilha que pretendo fazer habitualmente para meu próprio prazer.
ResponderExcluirGrande abraço
marcantônio,
ResponderExcluirfico encantado com a forma com que você vê (e trabalha) a cor.
sou meio bicicleta de baiano, meio árvore de natal, meio kandinsky no meu jeito de ver artes plásticas, mas to aprendendo aos pouquinhos que existe esta forma de "síntese". tá vendo?
não consigo nem me explicar direito...rs
mas, preciso te contar que, quando li em Palavra Outra "Chega ao papel como um veleiro à marina", Aquarela, de Toquinho, começou a tocar em meu coração.
tá vendo como tudo se mistura?
beijão, marquinho.
r.
Betina, feliz fiquei eu com o seu comentário. Uma análise empreendida em minúcias que só pode reconfortar aquele que é lido de tal modo.
ResponderExcluirMuito obrigado. Fui dar uma olhada nos seus blogues e, (claro!)também já a estou seguindo, até como um reflexo natural diante do bom gosto do conteúdo que neles encontrei. E pretendo aprofundar essa leitura.
Grande abraço.
Gostei muito do "Traços" pela concisão e por ser muito directo
ResponderExcluirTambém gostei do 1º, cheio de imagens fortes, mas mais denso.
e amei o trabalho de técnica mista. :D
Parabéns, pois!
Ô Roberto, sim tudo se mistura. Ainda mais nas artes plásticas, hidra de sete cabeças. Mas, cá entre nós, eu acho que a melhor forma de entendê-las é com os olhos, a sensibilidade. Há símbolos, idéias, história e muito blablablá. Mas o olhar tem prioridade. E você tem o seu. E entendo o que você diz sobre a síntese.
ResponderExcluirBicicleta de baiano? Rs.
Beijão, Roberto.
Em@, obrigado pela visita e por suas palavras.
ResponderExcluirUm abraço.
é, uai... bicicleta d ebaiano. numa capa de um dos cds (dos primeiros) do zeca baleiro tem uma genial.
ResponderExcluire, se não me engano, num do moraes moreira, outra, com lameira com escudo do flamengo e os cambaus.
refiro a "enfeites", mistureba de cores, violas de congado...
manja?
abração,
r.
Ah, sim, Roberto. Entendi.
ResponderExcluirAbração!
Muito lindo o seu poema, palavras... palavras vêm e vão, soltas ao vento, presas na nossa consciência...
ResponderExcluirParabéns pela sua página. Harmonia e aconchego!
Beijos pra ti e ótimo domingo!
Lembrei-me da Mosé: " A palavra é vespa. "
ResponderExcluirNossa Senhora das Liras! Tu és um poeta de mão cheia...
Abraço cada traço.
Oi, Marcantonio!
ResponderExcluirPassei para agradecer a visita e as palavras pousadas no Asa...
Quanto a você linkar o meu blog no seu, sinceramente não é incômodo algum, antes um privilégio.
A presença de alguém que também sente-se e é fisgado pela palavra,é sempre bem vinda.
Volto com calma!
Abraço!
Luciana, seja bem-vinda aqui. Obrigado pelas palavras de estímulo. Uma ótima semana pra você!
ResponderExcluirBeijos.
Ô Cris, obrigado novamente.
ResponderExcluirAbraço!
Vaneide, que bom vê-la por aqui. O Asa da Palavra já está linkado (particípio estranho esse, né?)para o meu prazer. Volte sim.
ResponderExcluirCom admiração,
Um abraço!
Trabalho lindo o seu, como artista plástico, como poeta, como ser.
ResponderExcluirEstou seguindo seu espaço.
Grande Beijo!
"Olhos
ResponderExcluirCom lírios"
me lembrou morte, mas a imagem é muito bela
Marcantonio!
ResponderExcluirA gênese dessa palavra atravessará mundos.
O segundo poema.....perdi o fôlego!
Ambos perfeitamente sincronizados com sua veia poética!
Belíssimos!
Beijos
Mirze