Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 8 de janeiro de 2012

Poemas de Ar Comprimido

INDOLÊNCIA

Lamento
O osso do dia
Que um cão furtivo
Deve ter levado
Entre os dentes
Enquanto eu estava
Domingo.


JARDIM ETIMOLÓGICO

No jardim zoológico
O hipopótamo não tem
Propriamente um rio
Para si.

Mas não o tem também
A própria palavra "rio".


NOTA

Sou rebelde sem efeito:
Não encontro uma causa
Que não tenha defeito.


AERO-SIMBOLISTA

De névoas acirrado
(O cúmulo de sensações vaporosas)
Flutuo em nimbo poético
A quilômetros do solo da prosa.


AUSPICIOSO

No céu que azul transborda,
Solitária nuvem clara
Em forma de escorpião:
Que boa nova! Um signo do medo
Com textura de algodão!


CABO BRANCO, PB.

De saudade me bronzeio
Com o primeiro sol nordestino
Que não me alcança aqui,
Mas em mim brilha, sob a pele,
De permeio.


DESPERDÍCIO

Talvez perca,
Falando,
O tempo encantado
De ficar sem palavras.


DESPERDÍCIO 2

No tempo em que a palavra
Ilusória surja,
E com esforço se implante,
Talvez alguma oportunidade
De vivo desplante nos fuja.


PUERIL

Não sei em que galho
Ainda está pendurado
O adulto maduro
No qual eu deveria
Ter me consumado.


NEON

Estranho
Que ao fechar os olhos,
Eu veja contra as pálpebras
Uma palavra luzindo íntima:

- Estrela!

Como pude fazê-la tão ínfima?


UM PELO OUTRO

Quando penso no alfabeto,
De A à Z enfileirado,
Talvez cometa um engano:
Me ocorre ver um teclado
De piano.


TEMPO GANHO

Lírico
Limbo,
O relógio
Digital
Parado
Torna
Analógico
O azul celeste.


Marcantonio, Canto do Atelier, Óleo sobre tela, 1995 (clique p/ ampliar).