Este é o meu poema mais verdadeiro,
Aquele que já estava lá enquanto escrevia outros,
O solo que o sol cobria de dúvidas
Antes de se abrirem as estradas,
Não há, meu amigo, nada que não seja antigo
Porque quando tu chegaste tudo já estava aqui,
E não fizeste nada de inaugural:
A areia já se tornava vidro;
O carvão já se fazia palavra;
Cada folha de papel já vivera numa árvore
E todos os dedos já haviam beijado uma estrela,
Numerando-a.
Teus passos até aqui não fizeram mais
Do que cobrir uma linha pontilhada.
E quando o sol chegava a tua janela,
Inocente saudavas o dia-menino,
Mas era um ancião que te visitava.
Sossega. A tua palavra nunca fora um eremita
Que tornara do deserto com a boa nova.
E a argila que tanto maceras
Vem de um terreno
Que fora mais torturado pelos pés
Do que as uvas que não podem se transmudar em água.
Não te agrada que esse barro lhe escape entre as mãos
Como um bagaço de nervos.
E quando a figura com que sonharas se engendra,
Requer cuidado, o toque suave e polidor
Da polpa dos dedos,
Porque o disforme espera dentro da forma,
E qualquer resquício de poro o faria escapar.
Mas se deixas a tua estatueta secando ao sol
E sais para tomar um trago, ou fumar um cigarro,
Percebes que estás caminhando numa galeria
De estátuas frias iguais a tua.
É à noite que entendemos melhor o dito
De que não há nada de novo sob o sol,
Pois a rede de estrelas seca repetidamente
Sobre o céu azul de cada manhã,
Tal qual o meu crânio se oculta, uma lua
De fundas crateras sob a cortina da carne.
E o meu crânio já fora esquadrinhado
Antes mesmo que eu nascesse,
Um pequeno satélite onde se gravaram por sulcos
Meridianos, equadores e trópicos.
Digo-te que não é senão quando as coisas se suspendem,
Esfaceladas numa nuvem de poeira,
Que se pode vislumbrar a latência de outro cosmo;
Mas é tão rápido tão rápido! E não podes respirar
Esse ar repleto de fragmentos de mundos desconhecidos.
E logo a poeira se assenta, e a paisagem se refaz
Como um vaso que nunca caíra da beirada da mesa.
No entanto, no entanto,
Queria eu aceder à ilusão
De um poema em destroços
Que revelasse a relação
Entre as unhas e os ossos.
E eu nunca entendi o porquê
Das unhas crescerem como se estivessem partindo
E a língua permanecer sempre do mesmo tamanho
Dentro da boca,
Aprisionada pelos fios natos das palavras.
Tiveram antes de mim
Essa ânsia tola e gigante
Que agora aguarda diminuída, domesticada,
Por trás das lombadas nas estantes
Ou nos alvéolos abstratos dos arquivos
Que, como o sangue não pode circular fora das veias,
Nunca foram de fato vivos.
quarta-feira, 15 de junho de 2011
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Marco, esse seu poema é um assombro. Daqueles que poderíamos chamar de poema-universo, aquele que abarca todas as impressões, todas as expressões humanas. Fico por aqui, relendo, relendo, até me cansar de tantas belas palavras.
ResponderExcluirGrande abraço, amigo.
Lalo
este palavreado é o portal da alma humana. todo sentimento do mundo revelado na veia por um sangue que já fora transplantado de outras gerações.
ResponderExcluirfalar o quê depois de ler algo desta envergadura? sensacional, surpreendente, significativo? vital, voraz, verídico? mortal, marco, magnífico? não, não, não há aliteração, palavra ou rima à altura...
ResponderExcluirte aplaudo de pé, meu mago!
beijos de admiração.
Quero deixar um comentário simples, porque o poema é de fato belo, mas esquivo à verdade que põe em cena (li umas três vezes, e temo que as palavras me traíam):
ResponderExcluirInocente eu saudava o dia, menina, sem saber que um ancião me visitava. Mas por que deveria saber? Era a única inocência passível de sobreviver ao ancião, a única que ele não corromperia. Com ela, hoje, eu componho dias antigos.
Adorei poder ler este poema!
Abraço.
Ah, vou confessar: amoooo o Azul, mas tenho um carinho absolutamente especial pelo Diário...A inquietude aqui sempre se agiganta, e a inquietude provocada pelos poemas do poeta Marcantonio vai me jogando pra frente, invariavelmente.
ResponderExcluirE eu nunca entendi o porquê
Das unhas crescerem como se estivessem partindo
E a língua permanecer sempre do mesmo tamanho
Dentro da boca,
Aprisionada pelos fios natos das palavras...
O máximo!
Beijos, Marquinho.
verdade/simulacro/buñuel/antonio/
ResponderExcluirfico abismado com esses teus poemas de imenso fôlego, o ar rareia de repente, mas prossigo sufocado de encanto
abraço
Um verdadeiro "marco", esse poema!
ResponderExcluirNada mais precisa ser dito. Belíssimo!
No vídeo, o homem recupera as mãos e sai batendo. Bem, dói menos.
Beijos, poeta!
Mirze
ô marco, você agora deu para covardias?
ResponderExcluiracaba que estou com lágrimas aqui.
definitivo, poeta!
um abraço, longo.
Apesar de tudo ser uma releitura do que já foi escrito; de a gente viver vidas repetidas como num filme de roteiro clichê; ainda há aqueles que nos surpreendem em palavras, como vc, poeta.
ResponderExcluirAbraço.
nesta colecção de telas que se sucedem, onde as tintas, as técnicas, os pincéis, as cores cruzaram os dedos do tempo, haja o resistente desejo de ir além do que anteriormente foi determinado. à boa maneira renascentista, onde o céu não é o limite; já o homem, sim.
ResponderExcluirmarcantónio, cada peça tua é o exemplo maior da capacidade de superação. brilhante!
um abraço com total resiliência e fé no desígnio de ser grande, de ser maior.
Vou lendo e as palavras vão grudando em mim por dentro, alinhando-se pelo meu avesso, transportando-se de célula em célula alterando o que sinto, minha carne, minha mente.
ResponderExcluirbeijo
BF
Verdadeiro, vulcânico e avassalador.
ResponderExcluirTudo isso para dizer: genial.
A superação é uma das suas marcas, Marco.
Antecipo-me e mando meu abraço pelo niver que se avizinha.
Saúde, paz, amor e alguma coisa que te dê alegria, poeta maior.
Marco, li e reli este poema por vários dias (não estava conseguindo postar comentários em nenhum blog)e te confesso, sou mesmo fã dos teus versos, mas este...este é mais do que isto, vai ao cerne, desnuda, é como pisar a linha de um 'horizonte de eventos', depois dela, não há regresso.
ResponderExcluirum beijo pra ti