Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Dois Poemas para Duas Imagens

Caravaggio, O Sacrifício de Isaac, óleo s/ tela - 1603



















Abraão, nos nervos da tua mão
Tão humanamente tensionados,
Todo um pasmo
Diante do absurdo do sagrado.
Agora sabes da estupidez
De todo sacrifício?
A tua verdade testada é insana,
Um anjo te toca e te chama
À realidade veraz;
Acorda para o pesadelo,
Isaac não vale mais
Do que esse pobre cordeiro.
Tu foste o primeiro a percebê-lo:
Humanos, não somos divinos,
Mas meros animais.


Rembrandt, A Lição de Anatomia do Dr. Tulp, óleo s/ tela - 1620



















Dr. Tulp, o artista não te fez um logro?
Pôs o teu olhar suspenso num limbo
Entre a ciência e o ogro da morte,
Nenhum anatomista pode se perguntar
Sobe os desígnios da sorte.

O que pinças, tendão ou nervo,
Começa no morto,
Mas termina em ti mesmo.


segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Um Poema Triste e Dois Bem-humorados

ENTRE A CANÇÃO ÍNTIMA E O SILÊNCIO PÚBLICO

Parece que aguardam de mim
Uma fala inusitada,
Recitativo oficial
Que reunisse ao familiar uma revelação
Contente,
Como se eu fosse um pássaro
Dentro do ovo transparente do dia,
E lhe rompesse a casca como um raio de luz
Ainda mais luminoso do que o ambiente.

Às vezes um estranho me pára na rua
E põe-se a fazer um gesto de maestro
Penteando o ar para determinar a cadência
Sobre a qual iniciarei a música:

- O que temos para hoje? Vamos homem!
Comece a cantar!

Não, meu senhor, tenho dentro de mim uma canção
Tão triste...
E é para a tua alegria que não sou profeta
E não a poço tornar audível.
Tu não me serias solidário, ninguém seria.

Mas deixa-me chegar à praça,
Sentar-me num banco solitário
A aguardar que algum deus zombeteiro
Espane do alto um dicionário universal.
E será lindo,
Essa chuva particular só sobre mim caindo,
As palavras como cinzas vulcânicas,
Ocultando-me sob camadas,
Transtornada a ordem alfabética.
Quando ouvires se espalhar a notícia desse rito,
Desse ofício,
Corre à praça para ver
O meu sepultamento público no silêncio,
Sob o enorme monturo
De todas as palavras existentes.


ANTES DO ALMOÇO

             Dedicado a Tuca Zamagna

Enquanto descasco
Abobrinhas italianas -
Zucchini! –
Reflito sobre Dante:
Serão duas poéticas
Conflitantes?

Não sei, mas me concentro
Na primeira
Antes que estrague o almoço
E tenha de ir a um restaurante.

Apêndice:
Este poema poderia
Ter outras versões condignas:

Fosse o poeta outra pessoa,
Seria o prato à moda do Porto;

Ou fosse um poeta gauche
E um acepipe mineiro;

Um arroz de carreteiro
Conviria para duelar
Com um poeta gaúcho;

Um oponente de luxo
Para Mallarmé?!
Fricassé!

Para Augusto dos Anjos
Poeta soturno de um Eu sozinho,
Poderia convir carne-de-sol
E arrumadinho?

Que pensar do russo Maiakovski?
Seria blasfemo opô-lo a strogonoff?

E Bashô? Arroz havia de consumir?
Haicaístas modernos é que apreciam
A extensão de uma bandeja de sushi;

Com João Cabral não se daria
Unívoca cozinha:
Seria uma paella
Ou algo oriundo da casa de farinha?
Pedra não há de ser,
Que, embora poética,
É dura de roer.

E com que prato devanearia
Junto a Charles Bukowski?
Uma sobremesa? Pudim de whisky?

Maior dilema estaria por vir:
O que pôr à mesa
Pensando em Blake ou Shakespeare?
A minha ignorância da cozinha inglesa...

Mas hei de parar por aqui
Embora muitos os poetas e os pratos,
Um Lorca, Poe, Baudelaire, Valéry...
Convém fechar o cardápio
Antes que me venha a dúvida
Sobre que poeta associar
Ao preparo do carpaccio...
Haveria algum perigo,
Vá que seja um poeta ainda vivo!


POR FALAR EM COZINHA

Falam tanto de poemas
E gavetas!
Os meus guardo-os no forno.
Editá-los seria levá-los à mesa?