ENTRE A CANÇÃO ÍNTIMA E O SILÊNCIO PÚBLICO
Parece que aguardam de mim
Uma fala inusitada,
Recitativo oficial
Que reunisse ao familiar uma revelação
Contente,
Como se eu fosse um pássaro
Dentro do ovo transparente do dia,
E lhe rompesse a casca como um raio de luz
Ainda mais luminoso do que o ambiente.
Às vezes um estranho me pára na rua
E põe-se a fazer um gesto de maestro
Penteando o ar para determinar a cadência
Sobre a qual iniciarei a música:
- O que temos para hoje? Vamos homem!
Comece a cantar!
Não, meu senhor, tenho dentro de mim uma canção
Tão triste...
E é para a tua alegria que não sou profeta
E não a poço tornar audível.
Tu não me serias solidário, ninguém seria.
Mas deixa-me chegar à praça,
Sentar-me num banco solitário
A aguardar que algum deus zombeteiro
Espane do alto um dicionário universal.
E será lindo,
Essa chuva particular só sobre mim caindo,
As palavras como cinzas vulcânicas,
Ocultando-me sob camadas,
Transtornada a ordem alfabética.
Quando ouvires se espalhar a notícia desse rito,
Desse ofício,
Corre à praça para ver
O meu sepultamento público no silêncio,
Sob o enorme monturo
De todas as palavras existentes.
ANTES DO ALMOÇO
Dedicado a Tuca Zamagna
Enquanto descasco
Abobrinhas italianas -
Zucchini! –
Reflito sobre Dante:
Serão duas poéticas
Conflitantes?
Não sei, mas me concentro
Na primeira
Antes que estrague o almoço
E tenha de ir a um restaurante.
Apêndice:
Este poema poderia
Ter outras versões condignas:
Fosse o poeta outra pessoa,
Seria o prato à moda do Porto;
Ou fosse um poeta gauche
E um acepipe mineiro;
Um arroz de carreteiro
Conviria para duelar
Com um poeta gaúcho;
Um oponente de luxo
Para Mallarmé?!
Fricassé!
Para Augusto dos Anjos
Poeta soturno de um Eu sozinho,
Poderia convir carne-de-sol
E arrumadinho?
Que pensar do russo Maiakovski?
Seria blasfemo opô-lo a strogonoff?
E Bashô? Arroz havia de consumir?
Haicaístas modernos é que apreciam
A extensão de uma bandeja de sushi;
Com João Cabral não se daria
Unívoca cozinha:
Seria uma paella
Ou algo oriundo da casa de farinha?
Pedra não há de ser,
Que, embora poética,
É dura de roer.
E com que prato devanearia
Junto a Charles Bukowski?
Uma sobremesa? Pudim de whisky?
Maior dilema estaria por vir:
O que pôr à mesa
Pensando em Blake ou Shakespeare?
A minha ignorância da cozinha inglesa...
Mas hei de parar por aqui
Embora muitos os poetas e os pratos,
Um Lorca, Poe, Baudelaire, Valéry...
Convém fechar o cardápio
Antes que me venha a dúvida
Sobre que poeta associar
Ao preparo do carpaccio...
Haveria algum perigo,
Vá que seja um poeta ainda vivo!
POR FALAR EM COZINHA
Falam tanto de poemas
E gavetas!
Os meus guardo-os no forno.
Editá-los seria levá-los à mesa?
segunda-feira, 19 de setembro de 2011
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marcantonio, o primeiro poema
ResponderExcluiré como se ao ter lido um céu
houvesse desabado sobre meus ombros
em forma perfeita de um suspiro
ou de um fechar de olhos
...
um poema esplêndido,
camarada, esplêndido.
forte abraço.
Ah, Marcantonio, tem poucas horas que voltei da terapia, isso depois de um dia dos mais estressantes, depois de apertar teclas e falar com atendentes robôs tomados pelo gerundismo...nossa, me empresta esta tua cabeça, tua alma, teu dom de traduzir o intraduzível desta vida...e dou alta à terapeuta, juro!!! rs Ma-ra-vi-lho-sos poemas... Tuca, Tuca...gostei do Antes do Almoço, leva que é teu, meu amigo, mas minha catarse (Marquinho torna possível essas catarses) fiz mesmo foi com ENTRE A CANÇÃO ÍNTIMA E O SILÊNCIO PÚBLICO: um assombro!!!
ResponderExcluiraplaudos, Marquinho, sempre!
Beijos,
P.S.: Sou fã do Azul, mas sou fascinada pelo Diário...
Comentário bem-humorado:
ResponderExcluirbom mesmo é poesia alacarte... assim mesmo, tudo junto, 'abrasileirado'... como vi em uma churrascaria de beira de estrada...rs
em caso de dúvida, convido a um pato no tucupi em companhia de Rui Paranatinga Barata
Beijinho, com admiração!
uma tristeza que canta
ResponderExcluirpara não estragar o almoço
que serve poesia e bom humor
muito bom mesmo
abs Marcantônio
Faz tempo eu não aparecia por aqui, né? Hoje, como acordei macambúzio, precisei vir a galope para extroverter-me. Para que todos digam de mim o contrário do que minha mãe sempre diz: "Esse, quando está muito alegre... é triste!"
ResponderExcluirE eu já cantava com intimidade o silêncio público quando me toquei do risco iminente de escorregar na minha própria baba humorosa (deixo rastro úmido, lesma que a tristeza me torna) e cair na gargalhada em pleno poema triste. Para penitenciar-me preventivamente, jurei que atravessaria os dois poemas bem-humorados em pranto convulso. Porém, poxa, Marcantonio, você de pronto impediu-me "a conquista dos meus objetivos" com essa dedicatória duplamente envaidecedora. À honra de ser vosso muso antes da refeição somou-se a de ser também... musa!... graças a essa crase maliciosa que lançou-me num dilema existencial profundo: se eu for mesmo a Beagá em outubro, devo ou não devo pôr na mala as sapatilhas de cetim furta-cor e o tutu de tule tutti-frutti?
Sei lá, melhor consultar minha mãe de santo, que felizmente anda muito mais ágil no atendimento desde que transferiu seu consultório do Facebook para o Twitter.
Abração
P.S.: Para se fazer um carpaccio sem qualquer perigo, basta juntar vários poetas. Mortos, inclusive, pois nada garante que os vivos sejam mais frescos. O importante é que, por sob as fatiotas, esbanjem redondilhas.
Te admiro tanto, vibrei com todo esse banquete! O primeiro é de fazer chorar. O segundo é de fazer sorrir. O terceiro já nem sei o que senti...
ResponderExcluirÉs espetacular! Como não te aplaudir boquiaberta?
Um beijo farto, meu mago!
(O Tuca deve ter dado cambalhotas...)
Cris, dei uma só (cambalhota, bem entendido). Foi o bastante pra transformar minha helênica coluna numa rabada - sem agrião. Tudo bem, pois o coração, menos avariado, faz a festa!
ResponderExcluirpelo público e pelo silencio, servir-se, regalo, embora haja tantas palavras como travo
ResponderExcluirabraço
Caro Tuca, bem que tentei deixar tudo como está, mas não consegui dormir pensando nessa maldita crase, parecia um mosquito zumbindo no meu ouvido, e tive várias vezes o ímpeto de ligar o computador, como quem assalta a geladeira na madrugada, para derrubar a infeliz de cima desse 'A' da dedicatória. Além do mais, pensei na responsabilidade social de exemplificar o bom uso desse acento traiçoeiro, encargo tremendo do qual mesmo um poeta-blogueiro não deve ser furtar. Está desfeita a não intencional (sem malícia, portanto) ambiguidade, salva a minha reputação, e refeito o bom uso das normas gramaticais.
ResponderExcluirPara que a menção no seu comentário não pareça despropositada aos futuros leitores (embora eu ache que, do jeito que andam as coisas, quem tinha de ler já o fez), deixo aqui uma nota explicativa: eu havia posto uma crase na dedicatória do poema, é o chamado erro "craso", do qual o Tuca me advertiu, de modo tão bem-humorado, como não poderia deixar de ser.
Grande abraço, Tuca.
Um verdadeiro SHOW poético que só você consegue fazer.
ResponderExcluirHá realmente um enorme abismo sobre o que canta em nós e o silêncio Público. Este último, é um escárnio, um espinho a ferir constantemente.
Seria o ápice morrer assim.
Excelente o poema "Antes do Almoço". Assim como o vídeo do Chaplin comendo sapato e fazendo do cadarço um talharim.
Em tempos ruins o homem fica mais criativo e de bom humor.
Bravo!
Beijos
Mirze
Belíssimos poemas! Parabéns!
ResponderExcluirJá te sigo para acompanhar mais de perto.
Um abraço.