Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Enquanto Setembro Finda, Três Poemas

ATIVIDADE INTERNA

Há tanto dentro de ti
que não queres conhecer:
umas flores semi-enterradas
na tua aridez íntima
que não se dão
à carícia afásica dos teus dedos.

Há também um sol tresnoitando
que bronzeia a película das tuas veias,
e do qual não podes suspeitar
na tez pálida das tuas palavras.

Há um regato de vontades
onde peixes desmedidos nadam
- forçosamente anfíbios.

Há uma garça escura
em pé sobre teus intestinos
que bica o fundo dos teus olhos
tão logo comeces a ignorar a luz.

Há muito trabalho no teu interior,
polias, rolamentos e roldanas incansáveis.

Há sim uma oficina que quer abrir fendas
no sono eterno,
que faz hora-extra enquanto tu engendras
dicionários
sem saber que o que te obceca
é a palavra morte,
esse ramo da noite
que carregas durante o dia.


SONETO DA VIDA MENOR

Eu preferia não saber se o saber me aflige,
Se ao rio que livre vige anteponho escora.
Que de dentro para fora se abra a mera flor
Não me basta supor: preciso penetrá-la

Além do que trescala na cona da cor
(substância do ser flor). Por que fazer ciência
Da não-aparência? Por que fazer invento
Dessa flor pensamento que não tem aroma?

A aflição que me toma por saber da vida
Que devera ser vivida e não dissecada,
Desviou-me da estrada que caminha por si.

Em paralela segui, preso a indagação,
Num rito de pretensão, de busca ilusória...
Queria a memória do que pleno senti!


CIDADE À SOMBRA

Deveria ser cidade solar...
Mas, pela manhã
já parece uma embarcação
ancorada
na tarde que finda.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Três Poemas Alheios À Primavera

SER-ESTAR

Por que cismar que as coisas estão incompletas?
Será um longo caminho até perceber:
não há caminhos que esperem por mim.

Perceba que o verbo ser é uma rocha
que conteve um fóssil lívido,
memória do que não é vida:
não fala de veias, de sangue
de carne putrefata, de células fugitivas.

Manejamos mal o verbo estar
porque ele escorre para o solo
feito arroio de urina e suor e lágrimas.

Sob os nossos pés o inevitável verbo estar se evapora.


A MEMÓRIA NAS PALAVRAS

Era poeta.
Inventara para si uma biografia:
tudo transcorrera na acrópole das palavras.

Acreditava que a palavra proferida lhe suscitava
saber hoje o que seria ontem.
Como?!
Poetas crêem que as palavras esperam pelas coisas,
e não o contrário;
e percorrem longas corredeiras de vida
seguindo por detrás dos nomes.

Poetas não sabem dizer agora em carne e osso
porque têm a memória inflamada e cheia de pus.


NO AZUL TEMPORÁRIO

Com que material
eu, inábil, faria poesia
senão com as escamas
numeradas do meu dia
fugindo peixe
nas mágoas correntes?

Seria o caso de hospedar
esse peixe num aquário,
dentro do azul temporário
da ilusão?

Seria fútil questão
ou intenção cruel
extraditar o meu dia
de seu meio líquido
para matá-lo de asfixia,
cindindo-o ao meio
com a faca estética
e deixá-lo secar ao sol
como forma sem vísceras
e hermética?

____________________________________________

Estou com um novo blog cujo título deriva do poema acima: O Azul Temporário.
Ele surge da necessidade de um espaço mais livre (e leve) para ensaios, esboços e experimentações (fundadas, infundadas ou afundadas, sabe-se lá!), que não corresponderiam ao feitio do Diário..., mesmo que, de alguma forma, o complementem. Não custa tentar. E embora eu só atenda àqueles flutuantes e incertos 10% de inspiração, espero poder atualizá-lo diariamente com um poeminha, dentro do espírito “nem um dia sem uma linha” (a rima não foi intencional). Além do mais, pode ser divertido.

Para quem quiser conhecer: 


quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Três Poemas no Final de Inverno

QUANTUM SATIS

1

Um poema monóstico
com um só degrau,
um meio-fio
em rua deserta:

sem gente que passe,
sem carros que levem
o silêncio,
sem vaga mudança.

Por si mesmo limitado
esse poema:
em neutro decúbito
sua própria esperança.

2

Um poema que oculte
o gesto de explanação,
pelo que plane acima
da própria invenção,

e fuja ao tempo instável
que faculta o poema fácil
posto ser difícil um parto
de pérola
na concha da mão.



ENTRE AS ORELHAS

A palavra insânia
é tão aveludada!
Trazida aos meus ouvidos
por passarinhos...

Mas
o que fazem passarinhos
nos meus ouvidos?
Não deveriam estar lá fora
cumprindo o rito da manhã?

Que manhã? Onde lá fora?
Se todo o mundo está agora
dentro de mim!

Aveludada palavra: insânia.



9,80665 m/s²

Só me ocorrem palavras
mais pesadas que o ar:
a gravidade
não lhes permite
                                 :
                                 :
                                 :
                                 :
                                 :
                                 : cantar
























Max Ernst, A Primeira Palavra Límpida

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Enquanto Há Fôlego

ENTRE SÍTIOS (11)

(Para Domingos Barroso)

Todos os objetos do dia
Jaziam num silêncio de terracota.

Até que o poeta os soprou
Com o sagrado dom da fábula.


ENTRE SÍTIOS (12)

(Para nina rizzi e seu ellenismos)

No céu em camadas
um fenômeno astronômico
plural
(plasmático)
:
ao dia-noite, a lua.
à noite-dia, o sal
                         ático


MARESIA

Foge da praia
O ar aziago do esquecimento mortal:
Nada se desfaz,
Tudo se reafirma sempre
Com a cor que as ondas regurgitam.

No espelho que acende e apaga
Na areia (como um letreiro luminoso)
Um ente eterno se mira.

Talvez tenha sido aqui
Onde deus separou a luz
Das trevas –
Tirou da noite o dia.

Sangue e sal e sol
Encorpam o odor
Chamado maresia.


VAGANDO

Sob a árvore do dia
Assombra-me
Não criar raízes.


POEMA-TABULETA

Concerto versos
(SIC)
Entrega rápida!


POEMA-TABULETA (2)

Espaço reservado para versos
Portadores de necessidades
Especiais


sábado, 4 de setembro de 2010

A Inciência Noturna e mais Dois Poemas

A INCIÊNCIA NOTURNA

Eu não respondo por minhas mãos
Desgovernadas sobre o teu corpo,
Se as desatrela de mim um mecanismo desconhecido.
Serão esses campos magnéticos inevitáveis
Como a tentação de me atirar ao mar das bordas de uma falésia?

Não sei se deixam marcas meus dentes brincantes
Nos lóbulos doces das tuas orelhas,
Porque eu me proponho em ti um desfalecimento de tudo o que
[sou,
Dos meus anteparos, das minhas cautelas, do meu instinto de
[conservação.
Se partindo da tua nuca eu me faço rio de esquecimento
Correndo embriagado sobre o leito relaxado das tuas vértebras,
Dando nove voltas ao redor dos teus quadris
Antes de recolheres os meus deságües nas tuas águas ocultas
[e ferventes.

Toda ciência diurna se vai de mim
Quando fazemos um mundo sem hemisférios
De meridianos apagados, de coordenadas subtraídas,
Transladando insone ao redor de um sol instintivo.

Só vivo em ti duas estações,
Quando minhas folhas caem
A tua nudez se faz outono breve,
E me vem a consciência de ter sido, há pouco, anjo animal,
Centauro-pégasus atrelado nas nuvens deslizantes da tua pele,
E uma lembrança de ter tido uma bela morte
Desintegrando-me na atmosfera dos teus olhos.

É então que a tua nudez retorna primavera.



O HERÓI E O DESERTOR

1

O herói soube, ao alcançar o ponto extremo
Demarcado para o seu glorioso sacrifício,
Que as próprias causas desapareceram na planície.
O que fazer senão deixar-se consumar a loucura
Ante o assombro de sentir-se traído pelo deserto?
Lançou-se, enfim, ao abismo
Porque a vergonha era intolerável.

[Naquele momento, no úmido dos seus olhos
Todas as estruturas do mundo tremiam
Ou ondulavam como visões imersas no ar quente:
Ah! Tanto por lançar fora! E era tão tarde...]

2

O desertor ouviu o canto
Vindo de um jardim inacabado
E ainda prenhe de ternuras,
De células vivas,
De liames verdes,
Lá onde o universo todo se esvoaça
Com asas de cera
E os insetos e as flores nada sabem sobre a longevidade
Dos dias de glória.


ERROS

Ao fim do dia
Agonizam
Os meus inventos
Lacerados.




















Antonio Canova,  Eros e Psiquê