Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sábado, 15 de janeiro de 2011

Janeiro pelo Meio, Três Novos Poemas

TOM SOBRE TOM

O eu é o pronome mais opaco.
Tinta saturada de pigmento,
Pode cobrir uniformemente
A camada chamada mundo.

Chega um ponto, entretanto,
Em que ele não poderá mais
Ser aplicado de forma distinta,
Embora possa produzir texturas
Por acumulação de mesmice:
Serão grumos, calos, sulcos,
Sombras na superfície pleonástica
De uma mesmo cor. Matiz infeliz?


ASSIM FOI

Alguma coisa assim
De passos metafísicos
De formigas sem olfato
Caminhando sobre o açúcar;
De pasmo de abelhas
Deprimidas em colméias
Dietéticas.

No solo
Sombras de nuvens:
A barca tão plana e móvel
De quase-crepúsculos
Sobre a paisagem.

Na água
A lua enrugada,
Luar senil.

E ao longe
A ríspida oração de tudo
Que não está no meu âmbito,
Aquelas montanhas pairantes,
Aquela liga de estrelas,
Aquele espelho inundado de silêncio,

E a palavra não indigitada
Por uma mão divina
Já revogada sobre todas as coisas.


ALUCINADO

Não raro, sinto-me como se delirasse
Ao ver todas as coisas exatamente
Como os outros dizem que elas são.


Marcantonio, Hierarquia Relativa, Téc. Mista (2005)
(Clique na imagem para vê-la ampliada)
Outras imagens minhas Aqui

14 comentários:

  1. não raro, os olhos se esquecem em solidão, aí as coisas brotam em sua imensidão,


    abraço

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  2. "alucinado"... pequeno e cheio de grandeza! redondinho. abraço!!

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  3. Todos ótimos. Mas a Hierarquia Reativa, roubou minha atenção! Excelente!

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  4. Eu fico impressionada demais com seu olfalto certeiro. Essas formigas se disfarçam, essas abelhas também. Estão todas plenas!

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  5. Alucinado Marcantonio,

    Esse mal não tem cura, mas é perfeitamente controlável com medicação leve. Tenho uma receita caseira que nunca falha: olho pras coisas fingindo que eu sou eu. Ocorre, de imediato, uma salutar desagregação da invasiva personalidade todo-mundo.

    Abração

    P.S.: Só hoje, instigado por esta ilustração, fui visitar a sua galeria. Muito bom. Saí de lá com uma esfuziante melancolia!

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  6. Fico aqui na minha viagem lendo poesias e delirando como gosto e também pensando um bocado. Somos o que escrevemos, pergunto eu tantas vezes. Esse eu poético reflete o nosso dia-a-dia, a nossa existência? Será que conseguimos praticar nossos delírios poéticos? Sei lá...Mas que vc é uma figura inquietante, isso você é. Certamente inquieta também, deduzo. Mas são cogitações, sei lá. É perturbador ler vc. Dá uma uma urgência de querer viver a vida de verdade, com vísceraqs expostas. Alucinadamente.
    Beijos,

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  7. Lindeza, Marcantonio!
    Textos esplêndidos, tela magnifica...
    Abraço, querido amigo!

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  8. Poetíssimo Marcantonio!

    Hoje resolvi começar pela galeria. Fiquei realmente impressionada!

    Tom sobre Tom: o "EU" sob minha visão, sempre será uma Matiz infeliz, caso não consiga sair de si mesmo. Perfeito poema.

    ASSIM FOI: como se partisse de leituras, ou de inúmeros silêncios não correspondidos com o silêncio que costuma sentir.

    Alucinado: Somos todos, se partimos da premissa do ponto de vista alheio ao nosso ser tão diferente.Ainda bem!

    Os três poemas se completam na mais perfeita harmonia.

    Sobre a imagem belíssima da Hierarquia Relativa, restou-me a dúvida do conteúdo da garrafa ser sangue saindo do dedo.

    Aqui, tudo é para ser refletido. A mente assimila aos poucos.

    Beijos

    Mirze

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  9. Tom sobre tom a gente se encobre, e só volta a se descobrir quando se transparece às outras faces.


    "E a palavra não indigitada
    Por uma mão divina
    Já revogada sobre todas as coisas." Uau!


    É tão bom ver alucinados como nós ;)


    E a tela, uma paródia muito bem sacada!


    Beijo, artista!

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  10. Caramba, Marcantonio, esses três poemas postados nos "idos de janeiro" são do balacobaco.

    ASSIM FOI é o destaque com esses versos primorosos:
    "Alguma coisa assim
    De passos metafísicos
    De formigas sem olfato
    Caminhando sobre o açúcar;
    De pasmo de abelhas
    Deprimidas em colméias
    Dietéticas."

    Não satisfeito você escreve ainda:
    "A barca tão plana e móvel
    De quase-crepúsculos
    Sobre a paisagem."

    Destaco também esse verso supimpa:
    "Aquele espelho inundado de silêncio".

    Perfeito, meu caro.
    O trabalho pictórico também não fica atrás.
    Coca-cola é isso aí.
    Forte abraço.

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  11. Marquinho, seu comentário no Roxo lançou luz sobre mim. Não, eu não posso ver-me e saber-me para além dos limites do pequeno viés desse meu eu. Foi ótimo ouvir vc. Aliás, tem sido importante a sua poesia. Poesia pode mudar vidas, transformar seres, faz alguma diferença no mundo fazer ou ler poesia? Nossa, faz sim. Um dia eu já soube, um dia esqueci, o Diário e o Azul (ah, o Azul às vezes é o sacolejo que preciso no dia!) tem trazido essa certeza de volta.
    Beijos

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  12. QUE BOM, MEU CARO! Feliz de quem tem inspiração, coragem, disposição e iluminação pra criar tanto e tão fecundamente. O "escritório" lá da foto em
    Morro Branco é um pedaço de paraíso, na cidade de Beberibe, a 75km de fortaleza, no litoral sul. Aquela praia, na verdade, é a Tabuba do Morro Branco, afastada do agito. Grandes abraços. O Saulo Ais é grande!

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  13. Marcantonio,
    Seu blog é ótimo. Gostei mais do pouco que - por enquanto - deu pra ver. Parabéns e obrigado pelo comment em Consoantes Reticentes. Abraços.

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  14. Alucinado é uma alucinação!
    Mas Assim foi tem umas imagens fortes, alucinadas, contundentes em sua simplicidade.

    Abraços.

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