ESPERANDO
Tenho um caderno novo, brochura sem valor,
para encher de versos:
pautas azuladas sobre brancura de dentifrício,
ou do avesso do ovo.
Mas, que garantia há de que esses pássaros adventícios
virão empoleirar-se nas linhas?
Talvez não convenha dizer poleiros,
que sugerem norma ou conduta
de apresentar-se de boa vontade
e no tempo propício.
Melhor seria supor este caderno barato
um aparato de astúcia,
artifício, isca, rede ou arapuca
para pássaros não cordatos, ariscos.
Então essas páginas se abrem ao espaço aéreo?
Seriam rarefeitos os caminhos para a captura das letras
neste território que em urdidura as constrange?
Preferia pensar esta folha um terreno de mistério
fecundo, um habitat já com seus seres ocultos,
e o diria um mangue
para escapar à imagem gasta da semente
que em si já traz a árvore latente.
Portanto, identificaria os versos aos caranguejos:
quem sabe se já estão aqui e não os vejo,
enfronhados na lama branca?
Mas até onde teria de mergulhar os braços neste nada
para trazer à luz uma de tais criaturas articuladas
e com grandes tenazes-lanças?
Sim, eu sei: este solo alvo não é movediço,
e talvez venha ao caso sonhar o mais difícil:
sejam estas folhas francas estradas
com pavimento de mármore, emendadas
em outras vias, uma invisível extensão
do mesmo plano, mas em diverso chão
(talvez, estradas das quais kerouac algum
jamais tenha feito um haibun),
e por elas chegarão os versos, viajantes famintos.
Mas, em se tratando de estradas,
teriam dois sentidos, dupla mão.
Assim, não conviriam:
como são inconstantes, mesmo andarilhos,
poderiam inverter seu caminho os versos,
ou ainda fugirem por sentido transverso.
Hei de esperar novamente
por versos que viriam de cima
para o plano deste caderno
oblíqua ou verticalmente?
Ora, por que não imaginar na verticalidade
um meio termo entre ascensão e pouso,
forma elevada de repouso:
uma construção?
Quem sabe já não estariam aqui
tão claras a planta e a fundação?
Mas aonde eu buscaria o material
para firmes colunas e vigas
que não estão no papel?
E como abrir poético umbral
sem um metafórico dintel?
O que sustentaria de firmamento
sobre a minha extensa planura,
refletindo-se exata na folha pura,
senão um abstrato monumento
ou uma casa escura para o vento?
Não podendo nada construir, edificar,
restaria, quem sabe, corroer o próprio solo,
e o degradar?
Melhor lançar sobre o papel a única palavra
em mim retida: a acidulada palavra silêncio.
Que ela, sem mais demora, se entremeie às fibras!
Que prossiga escavando, fuinha corrosiva,
até que fure a contracapa colada na face da vida,
vazando como palavra úlcera ou, mais eufêmica,
palavra ferida.
NA PRAÇA
Estátua equestre,
ríspido pombal.
Na mão erguida
aguda espada
contra o céu.
Lavoura aérea
de óxidos,
dorme o sono
cinzelado
de condottiere
deserdado
e ao léu.
Marcantonio
quarta-feira, 16 de março de 2011
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"(...)Melhor seria supor este caderno barato
ResponderExcluirum aparato de astúcia,
artifício, isca, rede ou arapuca
para pássaros não cordatos, ariscos."
Gostei dessa primeira estrofe (não colei inteira por preguiça de copiar e colar exagerada massa de texto). Ela é mais do que suficiente, pelo sabor e teor nutritivo, para encerrar meu expediente por este hoje que já é amanhã. Guardarei as demais para meados dos próximos meses (meses de frio glacial aqui no Rio, né?) ou comê-las-ei de uma só vez em meados de abril, caso decida hibernar.
Abração
P.S.: Lavoura aérea de óxidos... lavoura aérea
de óxidos... O milico "estatuado" é por acaso japonês?
Marcantonio, meu querido
ResponderExcluirPara você, este solo alvo jamais será terreno movediço, mas firme caminho onde ficarão por rastro, excelentes versos...
Abraço bem forte da
Zélia
afundo-me nessas areias sem contornos
ResponderExcluircom meus cuturnos negros
mascaro meus passos
meus traços
que o vento mesmo
faz questão de tempestear.
ouve-se da praça meus gritos ensandecidos
desser versos
que vertem do
inverso de mim
uma colheita estéril
e gélida
quanto as noites do deserto
inertes,
tanto quanto
os bancos à deriva
nas praças...
esperando o momento passar.
Abraços, flores e estrelas...
Marco,
ResponderExcluirO avesso do ovo!
Quem veio primeiro: o poeta ou a poesia?
Abraço adventício,
Pedro Ramúcio.
Portanto, identificaria os versos aos caranguejos:
ResponderExcluirquem sabe se já estão aqui e não os vejo,
enfronhados na lama branca?
Mas até onde teria de mergulhar os braços neste nada...
Marquinho, você é muito doido. Maravilhosamente doido. Genial.
Beijos,
é esse o silêncio profundo
ResponderExcluirdevastador e que nos consome
e fertiliza: céus, terra
e tantos outros elementos.
Forte abraço,
irmão.
cadernos novos, novas escritas. poemas que sabem brotar.
ResponderExcluirgrande abraço!
palimpsesto/
ResponderExcluirno meio do nada/
nadam futuros
abraço
Palimpsesto, disse bem o Assis.
ResponderExcluirMas se a folha continua branca, e esses futuros são frutos do acaso, viva o acaso.
Beijo beijo.
Toda forma geométrica se desmontaria para abrigar seus versos. Tudo seria pautável.
ResponderExcluirAbraço!
E eu destaco entre o 'já belo', este trecho:
ResponderExcluir'Não podendo nada construir, edificar,
restaria, quem sabe, corroer o próprio solo,
e o degradar?
Melhor lançar sobre o papel a única palavra
em mim retida: a acidulada palavra silêncio.
Como sempre, ótimo!
bjs
Tais Luso
Que maravilha de poema, a imagem dos versos como pássaros ariscos, o silêncio do poeta como fuinha corrosiva...muito bom. E a palavra ferida faz da dor a nossa poesia.
ResponderExcluirGrande abraço, meu amigo.
Poetíssimo!
ResponderExcluirComo viajei pelo seu caderno novo, esperando um pouso de pássaro, um passo de caranguejo. Flutuei tanto que me encontrei no silêncio dos andarilhos. Aquele estado onde não é mais nosso o pensamento.
Parei com emoção na lavoura aérea de óxidos que é nossa atual realidade.
Aplausos!
Beijos
Mirze
se a escultura pudesse falar cantaria com certeza o poema: NA PRAÇA
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