Não posso falar dos animais da savana africana:
para mim eles têm a vida plana
das ilustrações ou das imagens de TV.
Quando no zoológico,
são episódicos,
parciais
e tristes. Vestidos a caráter para as tardes
de domingo.
O que posso falar dos cavalos?
Puxavam carroças de feira
pelas ruas estreitas da minha infância.
Eram boçais e cabisbaixos aqueles cavalos pardos.
Não tinham o mistério e a altivez das bestas de Géricault.
Desde então, é raro ver algum de perto:
vez ou outra um atravessa, surrealista,
qualquer via urbana perto da minha casa,
ainda cabisbaixos, parecem perdidos sem suas carroças.
De seus irmãos do turfe eu só poderia falar em teoria,
tão distantes de mim quanto os animais da savana africana.
E os bovídeos? Pouco a dizer sobre eles:
ruminam enjoados nos pastos da metáfora
sobre rebanhos humanos.
Talvez sejam os melhores amigos do homem,
quando nos frequentam em postas, sanduíches
e caixinhas tetra pak.
De cães e gatos domésticos o que falar?
Já não são exatamente bichos
nem interessam às minhas fábulas:
ocupam algum status de humanidade
situado entre as crianças
e as coleções de selos.
Aves?
As mais próximas são os pombos. Já são tão vulgares
vivendo entre os telhados e as calçadas.
Nem se restringem mais às praças
onde sonhavam ser condores... Dizem que perturbam
a pax urbana.
Um bicho que eu prezasse mesmo
e do qual quisesse falar
teria de ser estranho, excêntrico, embora real,
tal qual um iguana espartano
que certa vez flagrei no meu quintal:
forma de vida na fronteira entre dois reinos,
planta? Animal?
Era o meu camaleão com defeito
no mecanismo de sintonia de cores.
Mas a sua paciente (ou assustada) imobilidade
me incomodou como um tipo de carapuça
que eu deveria vestir.
Os bombeiros o recolheram.
Mas admiro mesmo os coleópteros
assustadores com sua blindagem existencial
(com a exceção das joaninhas, dóceis bijuterias).
Quando surge um besouro
no meu território de eremita,
é como um marcador vivo
entre as páginas do meu silêncio,
uma aparição mista de dragão e guerreiro.
Dá gosto de vê-lo em sua indiferença
de broche de basalto,
de pequeno mostro inofensivo, mas injustiçado:
de apenas imaginar o contato
das patas de um escaravelho,
as almas sensíveis já se arrepiam.
Mas que outro ser é tão terreno
e capaz de atravessar o dia
como um signo terrífico da noite
que entre as patas carrega o sol?
NA FACE DO EDIFÍCIO
Toda janela
Seria um óculo?
Uma cavidade ocular?
Toda janela
Seria o obturador
De uma câmara habitada?
Seriam olhos vazados
As janelas escuras
Dos cômodos desabitados?
Seriam olhos vazados
ResponderExcluirAs janelas escuras
Dos cômodos desabitados?
E não seriam mesmo, Marquinho???
Bjo
Marcantonio,
ResponderExcluirdois mais que belos poemas, sugestivos e ressoantes de imagens. As quatro últimas estrofes do "Coleópteros" são pra serem lambidas com os ouvidos, você foi perfeito na criação de palavras-sons que denotam a aproximação afetiva, o envolvimento. E o fecho é tudibom: essa proximidade [também] é a proximidade nascida de uma distância mítica. Perfeito!
E o segundo me lembrou os desenhos a nanquim e as gravuras dos casarios antigos do Goeldi!
Abraços!
Seriam pinturas vivas dos nossos dias?
ResponderExcluirSeriam os versos letrados de outros que nem conhecemos?
Seriam.
seriam!
Seriam?
A mesma janela aberta esperando paisagem?
Abraços, flores e estrelas...
coleópteros: nunca os pisei assim sabendo-os existenciais, ele sempre me soavam crac e o estalo era alma se partindo. óculo me remete a dalton que só usa assim o seu defenestrar
ResponderExcluirabração
Vi cada bicho como numa paisagem que observo da janela, imaginando o pensamento de cada um. Muito interessante o primeiro poema.
ResponderExcluirE o segundo poema me atingiu em cheio, fiquei com medo de estar a observar com a luz apagada essas mesmas paisagens que citei acima, acendi meus olhos e continuei a ler o fim do dia.
Grande beijo.
Embesourando-nos cada vez mais, ao som de ruídos através de janelas ocultas, do alto de nossas lunetas internas vamos adquirindo uma (di)visão que se distancia dia a dia daquilo que outrora nos foi tão próximo e tão importante.Os seres vivos vão sendo como que empalhados, desenhados, pintados, coloridos,
ResponderExcluirmas sem vida própria, e o homem afastando-se cada vez mais de si mesmo, principalmente os que habitam nas grandes cidades, onde quase tudo se transformou em um grande ZUMBIDO. Estaremos nos metamorfoseando kafkanamente falando?
Por aqui ainda vejo de perto e ouço o canto dos pássaros, vejo o vendedor de tapiocas e pamonhas...e os cavalos? Ainda prefiro os que vejo por aqui aos de Géricault :)São os animais que mais aprecio!
Teus dois poemas dariam panos para muitas mangas que esse espaço não permite...muitos pensares, filósofo-poeta!
beijo bem grandão :)
Marco, os teus poemas cultos e grávidos de natureza impregnaram de cores vivas minha quarta-feira chuvosa e cinzenta.
ResponderExcluir"Coleópteros" é perfeito. É exatamente como penso.
E "Na face do edifício" identifiquei a fauna humana passando como a vida de gado.
Grande abraço, poeta.
Poetíssimo!
ResponderExcluirBelos demais os dois poemas. E super humano, Descreves o gado como se fosse um irmão, Vi todas as imagens em desfile.
Coleóptero atrai sempre, E o som do besouro já rendeu uma bela peça musical.
Parabéns, poeta!
Beijos
Mirze
As imagens de besouros como broches e joaninhas como bijuterias, são só alguns dos fantásticos momentos que se sucedem no primeiro poema.
ResponderExcluirObra de arte!
bj
Rossana
o que seria de nós sem as janelas? elas às vezes podem ser muletas nos dias em que a solidão quebra nossas pernas.
ResponderExcluirdos bichos, há uma luminescência nas plumas do urubu. ele que se enche do que o mundo tenta se esvaziar.
na galeria animal que nos apresentas, retenho a imagem dos animais de savana, ora cartonando as manhãs pueris de domingo, ora desfilando em passo ritmado as memórias de lugares e tempos que a maioria nunca teve, sequer. são estas as janelas que ligam o mais sensível ao mais sinistro do super-manipulador a que as línguas virgens deram o nome de homem [e que os homens, num exercício de hipócrifa genuinidade, disseminaram em nuances antroponímicas, como se os rótulos fossem as etiquetas primeiras da individualidade].
ResponderExcluirgrandes malhas, estas, caro marcantónio.
um abraço!
O primeiro poema é animalesco! Não mais espetarei coleópteros como quem coleciona selos.
ResponderExcluirEi, coisa bonita!
ResponderExcluirÔ saudade de estar mais perto dos teus versos!
Bjinho
O segundo poema me arrepiou, com suas órbitas vazias. Os coleópteros me encantam, e a última estrofe sobre o besouro é uma delícia total.
ResponderExcluirAndo longe daqui, longe dos amigos, aproveitando uns retalhos de tempo de vez em quando.
Beijo pra você, Marco.
Olá adorei teu blog, lindo mesmo. Parabéns. Fique a vontade para fazer uma visitinha ao nosso “Alto- falante” e seja mais um membro. Você é nosso convidado especial. http://poetarenatodouglas.blogspot.com/.
ResponderExcluirUm grande abraço!
Renato Douglas!
Raramente numa primeira visita fico tão comovida. É verdade que a poesia me encanta - mas nem sempre como hoje, como agora, como aqui. Preciso voltar mais pra comentar de verdade, tá?
ResponderExcluirPor enquanto, meu beijo
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