sexta-feira, 25 de março de 2011
Um Poema em Seis Partes
A IDA
A manhã me desperta,
Resmungona como uma dama da noite,
Exigindo o pagamento dos seus favores.
Tenho o rosto parvo e desiludido
De um adolescente que não sabia dos custos.
A manhã, com olhar oblíquo, cínico
E de sedução forçada, bate o pé e
Levanta a saia para me lembrar
A finalidade do nosso contrato.
Pagarei juntando todos os meus centavos,
Pétalas de flor já desfeita no meu bolso.
Haverá mais amanhã.
2
Aparo as minhas unhas:
Não quero tirar sangue
De outras mãos.
Calço o melhor par de sapatos,
Aquele que oculta o vão
Entre os meus pés e o chão.
Ponho os meus dentes à mostra,
Minha lua segmentada
De que todos querem uma fatia,
Mesmo sob um sol escaldante.
Os óculos! Os óculos!
Sem eles não posso ver
O desespero alheio que me consola.
Pronto. O meu corpo está pronto pra dragar
Os canais assoreados do dia.
3
Urbe et horda.
Está lá fora a hidra de sete cabeças
Multiplicadas em rede de fractais.
Não tenho doze trabalhos a realizar.
Apenas um: sustentar a flor da vontade
Que tomba com cabeleira ensolarada,
A face voltada à sombra memorizada.
Lá vou eu com meu bocado de ardis
Disputado por cães cruéis.
Sigo com a alma içada sobre as ruas,
Personagem ignorado
Dum afresco no topo da nave central
Congestionada de fiéis ou hereges.
Meus olhos aqui e ali aportam
Em alguma ilha fisionômica
(ou cômica):
Uns supercílios ejetados pela dúvida,
Um nariz rebelde, a salina de uma testa,
Uns cabelos que queriam ficar em casa,
Um queixo fugitivo; uma orelha ímpar.
Orelha?
Quando Van Gogh andava pelas ruas de Arles
Era chamado de louco. Fou! Fou! Fou!
Também sou louco, mas quem nota?
Quem sabe da loucura de um cão de Pavlov?
Mas, o meu amado Van Gogh era um ser patético,
(Sabia disso, menina com fones de ouvido?
Sabia? Sabia disso, senhor com óculos escuros?)
Ele era quase desdentado, devia feder
Em suas roupas velhas, em seus sapatos purulentos,
Seus chapéus engordurados de sol.
Em seu quarto cheirando a mofo, soprava teias de aranha.
Sua latrina devia ser fétida. Seu cachimbo tinha nódoas
De tinta seca. Ele nem tinha grana para o fumo.
Um incompetente, o Van Gogh, que largou o amarelo
Para tingir-se de vermelho.
Mas o que tem a ver Van Gogh
Com a faixa de pedestres no sinal de trânsito?
O que tem Van Gogh com serviços bancários
E lugares assépticos com ar condicionado?
O meu estômago nauseado é antiquado,
E inepto para navegações!
Ó amigos argonautas, me despeçam no próximo porto
Desse oceano de gente!
Mas, sigo.
4
Ocorre-me argumento filosófico
Em plena Avenida Rio Branco:
Deve haver um deus
Porque, às vezes, finjo ser ele.
Ou finjo ser o meu pai que me acudia
E morreu sem me consultar?
Prossigo.
5
Tenho o privilégio de saber
De tudo o que não muda nada,
O que não cria atalhos
Para o velo de ouro na área
De trabalho.
Vontade de cuspir uma palavra
Para cada palmo abstrato de chão.
6
Prossigo.
A nuca do ascensorista encaneceu
de susto entre um andar e outro.
Talvez porque ele tenha descoberto
Que era apenas um estranho caronte,
Cordato, pago por atacado.
Os seus dentes foram amarelando
De sorrisos obrigatórios
De tanto dizer bom dia! Boa tarde!
Sobe, desce, sobe, desce!
Todos no elevador olham para o número dos andares
Como se fossem crucifixos em capelas.
Eu não, pois tenho o olfato apurado.
Desembarco e prossigo:
No corredor há uma só porta válida,
As outras são falsas:
Dão para o vazio de outras vidas.
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Serei Poeta?
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você me espanta, de verdade. sexteto que pega pelo calcanhar, seus versos peregrinos são dá pesada!
ResponderExcluirbeijo, doidivanas.
(será que no sétimo descansarás?)
Van Gogh era totalmente desconhecido só quanto morreu ficou famoso. Você tem chão ainda, de poesia e arte. Saber-se louco já é algo :)
ResponderExcluirbeijos
só de falar em Van Gogh já fico derretida. Com tua posia en tão...nem me fale.
ResponderExcluirbeijo
Reluzente Poema!
ResponderExcluirforte abraço,
irmão.
Poetíssimo!
ResponderExcluirYou are not dead, you are alive in the world, thanks, God!
A música fantástica de Mahler. é triste demais. Você deve ter sentido der forma extraordinária a morte de seu pai. Eu também, mas estamos vivos e eles certamente tem orgulho das lembranças dos seus filhos.
O poeta despertou como quase todo poeta: assustando-se com mais uma manhã. Os detalhes são fantásticos: "meus óculos! sem eles não posso ver o desespero alheio que me consola."
E outros tantos. O pensamento voa como o dos poetas que conversam com os personagens que vê, ao mesmo tempo, que o cérebro manda lembranças, cores, menina com fones de ouvido, e a mente viaja até Van Gogh. Amei a "orelha ímpar" e o mal cheiro que com certeza ele tinha.
Atravessei a avenida Rio Branco como se ao seu lado estivesse. No elevador, todos olham para os andares, você, tal Manoel de Barros, tem o olfato apurado. Não precisa dos olhos.
Por fim, no corredor como na música, há uma só porta válida. Certamente há pétalas de amor nessa porta. O resto é nada.
Aplausos!!!!!!
Beijos
Mirze
Eu já não consigo te ler sozinha, sério...preciso partilhar, dividir, retrucar, falar pra alguns que, sim, você é louco...de uma loucura que precisa ser lida, assimilada,propagada... preciso da metástase...que isso corra outros sangues e inquietem outros...rs...
ResponderExcluirOs óculos, põe os óculos e veja o desespero alheio que te consola! rs
Deve haver um deus
Porque, às vezes, finjo ser ele.
Ou finjo ser o meu pai que me acudia
E morreu sem me consultar?(lembranças, lembranças...)
Tenho o privilégio de saber
De tudo o que não muda nada...
(Disso um pouco entendo...)
amei o "estranho caronte"... só você mesmo...
Todos no elevador olham para o número dos andares
Como se fossem crucifixos em capelas.
Eu não, pois tenho o olfato apurado.
Desembarco e prossigo:
No corredor há uma só porta válida,
As outras são falsas:
Dão para o vazio de outras vidas.
(O máximo, esse final...!)
Beijos,
Ahhh, esta nossa via crúcis diária...
ResponderExcluirDas pequenas mortes... em mim e nos outros,
Dos olhos mastigando os fatos que a boca teima em não comer!
Seco o suor e sigo procurando a saída.
Olfato apuradíssimo, meu amigo!
Bjs
Com essa ida quem precisará de volta?
ResponderExcluirGrande abraço colunista marciano!
tudo porrada com anestesia, poeta
ResponderExcluirsó que deste o anestésico nos meus pés
adormecendo-me todos os passos corretos,
social, econômica e politicamente
e as porradas, aplicadas no quengo, retumbam-me, faceiras,
nos tímpanos dos olhos e da boca
"Os óculos! Os óculos!
Sem eles não posso ver
O desespero alheio que me consola."
os meus, sempre escuros (negativos!),
me permitem apreciar, até o orgasmo,
a frenética, carnavalesca agonia
dos que juram nunca ter pecado
abraço
Todas as portas são falsas, mas prosseguimos (ainda)porque estamos nesse labirinto cujo fio
ResponderExcluirnão mais pertence a Ariadne: Hércules cabisbaixo, ombros caídos de tanto peso, qual cão vadio, cobaia de desvairados, no cemitério tecnológico da "modernidade", tateia, sobe e desce, à procura daquela manhã que despetalou-se. Amanhã será outro dia. Será? Ser ou não ser deixou de ser a questão. POR QUÊ??? Eis a questão. E morreremos com ela, com deus, sem deus, per ommina secula seculorum, e haverá muito mais desse teu excelente tratado-poético-filosófico-existencial alargando minhas fronteiras cerebrais alucinatórias!
um beijo labiríntico
Prossigo, em sua prosa poética, sou figurante a observar esse decorrer de um dia.
ResponderExcluirPoemas assim não deveriam terminar nunca!
Beijo.
marco,
ResponderExcluiraqui há a costura de todas as habilidades que você carrega como artista, mas a filosofia te persegue como amante ciumenta das tuas outras paixões. incrível como os teus poemas são filosóficos sem ser intencionalmente feitos para.
quando venho ler sei que não poderei escrever mais naquele dia, pois as suas palavras entram com a energia de coisa definitiva, o melhor é ficar a sós com elas e esquecer das minhas..
belo trabalho, poeta.
Em terra de cego, quem tem um olho é...expulso!
ResponderExcluirmarco, essa loucura ou o turbilhão das coisas que te habitam e extravazam, me alimentam de forma impressionante a alma. Me sinto em casa...rs
ResponderExcluirTu estás na lista (imaginária, claro, pq uma lista escrita é concreta demais para mim) dos meus poetas preferidos de todos os tempos :)
um beijo pra ti
Marco, Marco, escreveste um épico e li tudo de um só fôlego e fiquei desejando mais versos, per versos.
ResponderExcluirA terceira parte é de fazer chorar.
Grande poema.
Assim dessa maneira, nego, esse Cristo Redentor não aguenta.
Abraço grande e parabéns enrolados em celofane.
UAU!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirEnfim este poema aboletou-se na tela e escorreu em mim.Aparei no peito.Poei-me toda.Com ele ,o dizer pela luz e cheiros de Van Gogh.
Extraordinário!
Muito prazer,
Cris
excelente poesia ...ainda que seja a minha subjectividade a senti-lo...
ResponderExcluireu já li esse poema e continuo achando abissal a vertigem,
ResponderExcluirabraço
Um brinde à contemporaneidade de sua poesia...
ResponderExcluirNeo simbólica, bela e insana..
Blog lindo!
Seguindo...
Sensacional, caro Marcantonio... Estás a cada dia mais inspirado!
ResponderExcluirAplausos!
Adorei!
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