SEM TÍTULO
Com o que sonhas quando o desespero te acossa
E angústia te espreme as vísceras?
Com o que sonhas se deambulas na rua cinzenta
E em cada rosto, atenta, uma sentinela te grita:
“Alto lá!” em vez de “Alvíssaras!”?
Com o que sonhas se já é alta a noite e teu sono
Um remoto anseio entre a insônia aguda dos objetos?
Com o que sonhas se vês do passado o furor quieto,
Resíduos, dejetos vivos de cada ação contrafeita,
A palavra engolida e o pré-fim dos teus projetos?
Com o que sonhas na rota dos algozes, se as ruas
Estacam nomeadas e as esquinas escuras vêm velozes?
Com o que sonhas de teu se o televisor rebelado
Permanece ligado e impõe a mitomania dos simulacros?
Com o que sonhas entre a ânsia retardada e a esperança
De voltar a qualquer ponto neutro, a qualquer rito sacro?
Com o que sonhas se tudo é fato e conformidade
Na paisagem fria das pequenas normas, mosaico
De geométricas formas de enganosa diversidade?
Com o que sonhas se nos corredores ermos e solenes
Perdes o riso, folguedo inválido da inocência proscrita?
Com o que sonhas se a cidade está repleta de acenos
Cínicos e mensagens bifrontes em que não acreditas?
Com o que sonhas se não és o dono das palavras, das horas,
Do acaso, e todos vêem nu o rei vestido em que te arvoras?
Com o que sonhas se tudo parece sempre o mesmo
Que se repetirá ainda hoje, amanhã e mais adiante,
E tu permaneces indivíduo que se vê não-semelhante?
Com o que sonhas de duradouro, em quadro sinóptico,
Se em ti guardas a morte constituindo-se, feto osmótico?
Com o que sonhas, ó arcanjo insone de face caída?
Sonhas com algum íntimo horizonte
Do qual não venha a hora perdida?
PROCESSO
Há sempre
versos malditos
que por fora
soçobram.
Enquanto
os bem ditos,
solidários,
não sobram.
ILHA
Aqui não há meio termo,
Ponto delimitado, claro,
Entre o são e o enfermo,
Entre o vulgar e o raro.
Ilha semântica recessiva
Em planos de luz saturada,
Suas bordas imprecisas
Confinam enfim com o nada.
sábado, 9 de abril de 2011
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clap! clap! clap!
ResponderExcluirestou na pressa, saindo pra um imperdível compromisso tedioso.
depois volto para explicar os aplausos. mas vou adiantando que foram de aprovação. um alívio saber disso, não?
abraço
Metalinguística genial...
ResponderExcluirAdorei!
Sonho que, sempre ao acordar, eu continue sendo um corpo estranho diante dessa "normalidade" da vida.
ResponderExcluirExcelente post, meu caro, que maravilha!
Beijo.
A realidade que a gente conhece não é toda, assim como nem se sabe muito bem o q é a realidade além do que nossos sentidos podem viver. Resumindo: acho que estamos mesmo ferrados sem jeito pra dar.
ResponderExcluirMas alguma coisa além disso tudo insiste em ser boa na vida desconhecida. Vai entender.
Beijo, Marco.
Com o que já mão! porque não mais os tenho.
ResponderExcluirSó pesadelos habitam o que um dia foram sonhos.
Talvez, apenas um talvez: um dia conseguir
extirpar das entranhas sentimentos incrustados
que teimam em não vir a lume, mas que se identificam sobremaneira com as palavras do poeta!!!
beijos
poderia apenas dizer que são geniais delírios de um coração inquieto de múltiplos olhares
ResponderExcluir...
[mas a tua alma e sangue poéticos
além do meu espanto e silêncio]
forte abraço,
irmão.
'meus aplausos' - bula:
ResponderExcluirsentinelas gritando alvíssaras (em coro esganiçado mas afinado, é claro) abalariam para sempre as convicções homofóbicas;
que as esquinas escuras, quando vierem velozes, não bebam;
quando morto devidamente constituído for, na próxima encarnação hei-de ser, prometo, feto osmótico.
sem kardecismos, cética e serenamente como alguém que adormece suíno e acorda mortadela.
abraço
ps - se além de tudo que já é, Marcantonio, você conseguir ser também burro, invadirei a galope os aposentos papais no Vaticano exigindo, jumento em riste, a sua pronta canonização!
ô mago, se eu for revelar com o quê sonho aqui posso chocar a freguesia, melhor ficar caladinha segundo meus resquícios de bom senso.
ResponderExcluirvocê tá barbado de saber o quanto admiro sua arte, né.
beijo, poetasso!
Poetíssimo!
ResponderExcluirSonho com o Apocalipse. Amei "A ILHA"!
Parabéns, grande poeta!
Mirze
segundo ritual pagão as vísceras transmitiam mensagens aladas de deuses ou não, os homens se guiavam pelo que elas diziam na sorte, na morte, na guerra. hoje estão expostas as vísceras em meio aos cataclismos diários e a elas nada cabe de alvíssaras. os seres pagãos se compadecem de suas existências atônitas: ser ou não ser/vil. com o que sonhas, gentil carpinteiro,
ResponderExcluirabraço
Três diamantes, Marcantonio!
ResponderExcluirForte abraço.
Tenho apenas uma palavra para ti, meu caro:
ResponderExcluirSINGULAR!
Abraços!