Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 7 de agosto de 2011

DOIS POEMAS

CANTOCHÃO

É tão breve o eco das antífonas em meus ouvidos.
Não têm o rumor de mil garças alçando vôo
Após a salva de tiros de timbales,
Mas o chiado ardido
De uma rocha ígnea afogando-se num lago.

Não invejo os que ouvem o coro dos anjos
Porque beatificam a dúvida
E não sabem se o retiram de si mesmos
Como quem vê vazar o sangue dos próprios
Pulsos
E o estranha como a um desconhecido.

Meu coro angelical é essa salmodia de pássaros
Urbanos
Saudando a dessacralização da tarde
Sem que eu possa vê-los como arautos exilados
Ou como escravos bardos de uma elegia,
Tão natural é sua lida com a luz real do dia,
Aquela que lenta se transmuda, térmico relógio.

Não sei se retiro de mim, víscera que não estranho,
Essa concretude profana da tarde, banal tarde;
Mas dentro dela, verdadeiro, fico muito à vontade.


LARGO

É tão serenamente que Proserpina
Sobe à superfície da terra,
Tão logicamente,
Tão maquinalmente,
Tão inexoravelmente!

Nada da humana ansiedade
De evadir-se da escuridão.

Como são impacientes as lâmpadas
Que querem cegar os olhos da noite.

De outro modo,
Uso óculos escuros ao dia
Para me afeiçoar ao meu destino.




10 comentários:

  1. Dois excelentes poemas, Marquinho...Largo é fabuloso! Humano seria correr a descer ao reino de Plutão com desenvoltura? pergunto-me. Os óculos escuros, que me vestem sempre, agora sei: também ensaio o meu destino!

    Beijos,

    ResponderExcluir
  2. óculos escuros com arranhões
    serão esperança e tardia insônia

    (mas é dia, mas que dia
    se da luz se faz a noite)
    ...

    forte abraço,
    camarada.

    (poemas majestosos)

    ResponderExcluir
  3. Essencial o óculos escuro que não nos cegue a vista já cansada. Poesias maravilhosas, como sempre! Beijos!

    ResponderExcluir
  4. achei o primeiro poema com uma pegada forte.

    conheci hoje e gostei daqui.

    um abraço

    ResponderExcluir
  5. Escurecer o dia
    para clarear a noite...

    Bejinho com admiração!

    ResponderExcluir
  6. Difícil o escuro. Difícil a claridade. E difícil escrever como você escreve!
    beijoss

    ResponderExcluir
  7. Marco!

    Senti uma ligação forte entre os dois poemas. O angelical, dessacraliza a tarde.

    O sangue que vaza é de outrem.

    Usemos óculos escuros que embaçam a verdade!

    Beijos

    Mirze

    ResponderExcluir
  8. marquinho,
    de seus relapsos amigos, eu sou, certamente, o mais envergonhado de todos.
    e perco tanto, enrolado, amaranhado em tanta coisa, que nem vale a pena chorar as pitangas.

    tenho saudades imensas de ver aqui, de ler suas coisas, de dar meus pitacos.

    prometo que melhorarei.

    "TUDO da humana ansiedade
    De evadir-se da escuridão"...

    vou emergir. ja sinto a brisa da manhã levantando o topete.

    beijo grande do

    roberto.

    ResponderExcluir
  9. Um espaço soberbo.
    Carregado de bom gosto.
    Nesta postagem a música se funde entre a poesia que também é melódica.
    Gostei demais.
    Abraços

    ResponderExcluir
  10. Amei esse Cantochão! E a música de Handel valoriza os poemas. Em suma: tudo maravilhoso.
    Beijo pra você.

    ResponderExcluir