Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Dois Poemas

UM E OUTRO

Quando escrevo,
um barco afasta-se do ancoradouro,
uma enxada crava-se na terra,
ou uma vindima se inicia.
Mas não são as minhas mãos
que movem o leme,
manejam a enxada
ou recolhem os frutos ao cesto.
Não são estas mesmas mãos
que me fazem a barba,
que seguram os talheres,
que contam moedas.

Tampouco os olhos que acompanham
a pesca ou a semeadura ou a fermentação
das palavras,
são estes mesmos em mim já habituados
à ortogonia do cotidiano
e suas paisagens de alvenaria.

Quando escrevo, nem o dia é mais aquele
que só teve uma aurora,
as horas perdem espessura
e se guardam em fascículos,
e uma parte rarefeita de mim
foge pelos micro-exaustores dos segundos
para um dia sem geometria,
enquanto, outra parte, permaneço
no anverso do momento,
sentado à mesa banal
com uma caneta na mão
sobre uma folha de papel inerte:
pele a ser rompida a partir do avesso
ou mármore a ser entalhado
por dentro.


ÚLTIMO DE SUA ESPÉCIE

Imagino que todo o mundo visível
estreitara-se aos teus olhos dormentes
numa faixa claustrofóbica
de relevos embaçados:
teu friso final de Partenon.

Ali tu indicaras alguma coisa, uma visão
uma memória.
Como interpretar teu último gesto,
solitário representante de uma espécie em extinção?

A- Se tua mão, pomba assustada, se erguera,
     dedos abertos, asas tortas e espalmadas, trêmula no ar,
     e se contraíra na metamorfose de outro ser alado
     em torno do indicador, súbito bico de colibri
     parado no ar para... Para quê? Sugar a última seiva
     das entranhas expostas da flor do horizonte
     esmagada entre o céu e a terra?

B- Talvez pudesses ouvir um coro de anjos,
     desejoso de acompanhar com o dedo
     as notas saltitando numa partitura invisível.

C- Quem sabe não seria um único anjo a se se aproximar,
     confirmando que de fato usa um capuz
     e traz uma foice ao ombro?

D- Ou tentavas tocar os ponteiros de um relógio
     para retrocedê-los a um ponto virgem
     do mostrador?

E- Seria aquele túnel? O tal túnel, o famigerado túnel.

F- Ou a descoberta de algo que não deverias deixar para trás,
     aquele rosto redivivo, aquele amor não vivido,
     algum erro irreparável?

G- Seria possível que tudo voltasse subitamente, de uma só vez
     a vida em roldão, uma onda concentrada, embriagante,
     um anestésico?

H- Seria apenas o botão liga/desliga? Off: já é hora
     de dormir.

Foi quando reparei na tua outra mão
que se agarrara a tua própria coxa.
Ela não era um pássaro, era talvez um ser terrestre
com fortes mandíbulas, e que não queria partir.

Então, o último suspiro,
a devolução do beijo roubado à vida,
e a mão direita abatida em pleno ar.
Teus olhos já na tinham velas
e o mar parara.
Tua cabeça já era um fruto sem polpa.
Na testa uma tatuagem que começava
a se apagar com o fim de todas as perguntas.

E eu fiquei um hermeneuta impossível
do teu último gesto.

Friso interior do Partenon (detalhe) - Museu Britânico, Londres

16 comentários:

  1. uma das mais intensas descrições do ofício que já li:

    Quando escrevo, nem o dia é mais aquele
    que só teve uma aurora,
    as horas perdem espessura
    e se guardam em fascículos,
    e uma parte rarefeita de mim
    foge pelos micro-exaustores dos segundos
    para um dia sem geometria,


    revelador! aliás, o poema como um todo é uma descrição de sentidos e sentimentos na dimensão que tomam quando pelos poros de um poeta exalam.

    o segundo verso, ÚLTIMO DE SUA ESPÉCIE, é um show de imagens bem descritas e extremamente criativas:

    Se tua mão, pomba assustada, se erguera,
    dedos abertos, asas tortas e espalmadas, trêmula no ar,
    e se contraíra na metamorfose de outro ser alado
    em torno do indicador, súbito bico de colibri
    parado no ar para...


    é de grande beleza!

    depois ainda o fim, com a declaração:

    E eu fiquei um hermeneuta impossível
    do teu último gesto.


    nos surpreende pela questão do enfrentamento como inevitável.

    um grande poema, sem dúvida!

    PS: estive pensando... quando houver, se houver, exposição de seus trabalhos, por favor nos comunique, ok? seria uma oportunidade de prestigiá-lo como merece!

    abraços.

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  2. A desconstrução e reconstrução da pessoa incrível que você acontece com mais e mais beleza a cada novo poema e os meus olhos se alegram ao encontrar aqui tanto conhecimento expresso com tanta delicadeza.

    Beijo sempre carinhoso. =*

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  3. tantas questões, mistérios que a vida nos oferece para saber-mos cultivar os pequenos gestos imensos - beijo querido, saudades de te ler por aqui.

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  4. Escrever é assim mesmo, o dia (trans)desfigurado, a pele retalhada. Poema sensacional, esse.
    Preciso reler o segundo, conferir se o que entendi é o que você quis dizer. Mas ainda assim gostei muito dele.
    Beijo, Marco.

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  5. a busca é um encontro
    embora seja tanta a luz
    que nos cegue momentaneamente
    e já não saibamos quais as nossas mãos
    e quais as mãos de quem nos provoca
    o silêncio
    ...

    dois poemas exuberantes,
    meu irmão.

    forte abraço.

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  6. Quando se escreve, o tempo perde o sentido, percorre-se várias dimensões, enquanto o corpo enleva sua parte carne e goza da sua porção espírito.


    Seu segundo poema me invadiu de uma forma... Vc é genial, poeta!

    Beijo.

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  7. Marcantonio!

    Você é um gênio. Ponto. Há sempre essa ambiguidade dentro de nós. Ora somos o que somos, ora o que pensamos ser. Um em estado de alerta, outro descansando da lida. "Quando escrevo..." {inúmeras observações, porque o tempo não para para que escrevamos]

    A interpretação do último gesto, deve enlouquecer muitas mentes.

    Magníficos!

    Beijos, poeta!

    Mirze

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  8. Demais, Marcantonio!
    Postagem para comentário rico, profundo, mas hoje estou pobre, rasa de palavras...
    Então resumo: tudo divino!
    Grande abraço, amigo, grande poeta!

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  9. Vou fazer uma petição em três vias para você substituir esse marcador de "Serei poeta?", não cabe interrogações com você. A descrição do exercício só fica melhor se você trocar a primeira pessoa do singular para a primeira do plural. Pois garanto que não fui o único a me identificar.

    PS: Não foi sacanagem com Cunha Lima! Qualquer um que eu colocasse com o Carlos Pena Filho dificilmente o bateria no azul! Rs.

    Abraços, camarada!

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  10. dois belos poemas, sem senões.
    cada vez mais intensa a inquietação do artista, a angústia da criação poética,

    grande abraço

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  11. E eu temporariamente achando que vc só escrevia no Azul! Agora sigo este! Li o Nietzsche sem bigodes e este de agora. Lembrou-me muito a poesia portuguesa, mesmo lendo pouco. E ainda uma novidade. Jogar itens e marcá-los como se fossem opções! Uma imersão total!

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  12. Poemas inquietantes. Horas perdendo a espessura e se guardando em fascículos, que demais isso!
    Um e outro ...marcantes poemas!
    Beijos

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  13. Marco,
    Paisagem de alvenaria: imagem de quem vê com os dedos, poeta...
    Eu, dedo-duro, te delato aos demais...

    Abraço mineiro,
    Pedro Ramúcio.

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  14. Você é mesmo um grande marco na poesia... Um mestre!

    "Quando escrevo, nem o dia é mais aquele
    que só teve uma aurora,
    as horas perdem espessura
    e se guardam em fascículos,
    e uma parte rarefeita de mim
    foge pelos micro-exaustores dos segundos
    para um dia sem geometria,"

    Bjs, poeta. E inté!

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  15. marcantónio,
    poucas são as imagens e as analogias que, em poesia, consigam efeitos tão brutais quanto as que dimanam da voz de baco/de dioniso. pessoa, torga eugénio de andrade, só para citar alguns, paroxizam-nas na analogia que acaba por tornar a escrita poética tão vital na saciação da existência como o trabalho com o trigo, o centeio ou a água.
    percebo bem o paralelismo que, ainda assim, reclamas: a mão pode ter a mesma configuração, anatomia e traço; mas o pão e o verso, mesmo que essenciais, são plantados e colhidos por mãos diferentes. a boca que com ambos se sacia, essa, é uma só. a do homem que se completa no canto e no campo.
    um forte abraço!

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  16. "as horas perdem espessura
    e se guardam em fascículos"

    Nada mais precisa ser dito.
    Bonito demais...

    bj
    Rossana

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