Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Quatro Poemas de Final de Maio

LITO PLANTAR

Há contradições que você mesmo gera:
Como a pedra que no caminho não o espera,
Mas você põe zelosamente no sapato
Antes de calçá-lo.


REPLICANDO


Não, de uma vez por todas,
Eu não ando nas nuvens!
Trilho caminhos terrenos.

São meus pés nefelibatas
Que pisam em poças d’águas
Reflexos de céu que iludem.


COMUNHÃO

Vinde palavras,
Vinde
Para esta ceia.

Comei deste pão,
Minha razão.

Bebei deste vinho,
Meu inconsciente.

Assim saciadas,
Alguma dentre vós
Ainda
Há de me trair?


PROGRAMA

Estou preparado para estar aqui.
Estou preparado para voltar
À Idade Moderna.
Estou preparado para voltar
À Idade Média.
Estou preparado para voltar
À antiguidade.
Estou preparado para voltar
À pré-história.
Só não fui preparado para alcançar
A eternidade.

domingo, 22 de maio de 2011

Dois Poemas Fora de Hora

MENSAGEM

Meu amor,
Deixo aqui um grande fardo,
Depois em silêncio aguardarei.
É tudo tão simples
E nos enganavam:

Nunca se tratou da botânica,
Mas da flor particular
Que contivesse um universo
Sem esperas.

Não era a arquitetura,
Mas a casa,
Qualquer casa arejada.

Jamais foi a lingüística
Ou a gramática,
Mas a palavra,
Célula da carne dos anjos
Que nada nomeava.

E nada fora arte,
Senão as linhas
Das palmas de nossas mãos
Que não são cartas náuticas.


REVENDO

À vezes a palavra
É marca d’água
Nas fibras do papel,
Faz-se ruga úmida
No deserto sem cor.

Se a mesma palavra
Escrita for falada,
Será como peixe
Que salta na água
Das mãos do pescador.

Mesmo que renove
O anzol e a isca,
Não sabe à risca,
Se pescará a arisca
Que antes lhe escapou.


quinta-feira, 19 de maio de 2011

Quatro Novos Poemas

SAUDADE

Dias alquebrados,
Céus comprimidos,
Noite engavetada,
Estrelas prepotentes,
Sono preterido.

Chuva sem som,
Abismos os braços,
Escadas estáticas,
Janelas asmáticas,
Ar sem espaço.

Espelhos visitados,
Relógio crescente,
Parcelas, subtrações,
Artéria convulsiva,
Fome inconsciente.

Cisternas ao relento,
Sombras no assoalho,
Outras fotografias,
Cascas de poesia
Que recolho espalho.

Propagar-me em vão,
Queimar sem luz,
Transpor portais
Com ânsias postais
Carregando a cruz.

Vírgula, dois pontos,
Eqüidistância clara,
Formas inalteráveis,
Frases inabitáveis
Na boca que calara.


PONTO-PARÁGRAFO

Meus lábios atrevidos,
Na tua boca entreaberta,
Concluirão previdentes
Com beijos emudecidos,
A tua fala incompleta.


MY FAIR LADY

Meu beijo
Um sopro,
E o teu peito ofega,
Galathea que dormia
Na pedra.


ANTES DE EXISTIR

É impossível dizer positivamente
o que quero
Desde que não posso retornar
Ao nada,
Ao nulo,
Ao marco zero.



Cena do filme "A Cor da Romã" (1968) de Sergei Paradjanov

quarta-feira, 11 de maio de 2011

Dois Poemas

POEMA EM LINHA ROTA


Mais um dia de tortura
Antes da euforia futura
Do perdão.
Mergulho na névoa fria
Da estrada,
Num surto me insulto:
Sou o nada
Sendo autocomiseração.

Ostento tantas máscaras,
Elásticas, flácidas caretas,
Facetas de animal feroz
Que não espantam mais.
Entre sorrisos refrigerados,
Incauto, subo ao cadafalso
Das obrigações temporais.

E quando explode o grito
Das aspirações preteridas
- Anúncio absurdo de mim -
Faço-me de surdo, mouco,
Mudo, um louco sabotador
Do alto sol que iluminaria
O abismo sob os penhascos
De cujas bordas eu antecipo
O eventual post escriptum
Ao golpe do mundo carrasco.


SOLIDÃO


Quando a solidão chegou,
Ela me tornou único.
Eu que me julgava vários,
Eu, de muitos itinerários
Compartilhados,
Não era mais que um!
Sem partes, sem pontes,
Sem frações, sem múltiplos,
Sem púlpitos.

Quando a solidão chegou,
Ela me amarrou a mim.
Reforçou a membrana
Das minhas fronteiras
Donde calado percebo
Que o fronteiriço é outro
Perambulando cego
Preso aos fios da rede
De solidões unitárias:

A solidão dos nomes;
A solidão dos números;
A solidão dos olhos;
A solidão das sequências;
A solidão das alternâncias;
A solidão dos adjetivos;
Dos adjuntos temporários
E a solidão dos solidários.

Quando a solidão chegou,
Ela urinou nos meus pés
E demarcou um território.




domingo, 1 de maio de 2011

Quatro Poemas Desocupados No Dia do Trabalho

MARINHA

Teu ser, palavra,
De tocar a orla
E retornar;
De verter-te ao seco
E o enlamear;
De trazer à praia
Um fundo de mar.

Ter seu, palavra,
De concha sem par.


ÁUGURE

Sonhei
Que de um céu azul
Nunca antes tão azul,
Chovia
Pássaros mortos.
Caiam durante o vôo,
Aniquilados por ataque
Cardíaco,
Aérea catalepsia
Ou falta de combustível.

Era o mundo da poesia
Onde a vida fora impossível.


MONÓLOGOS

No pátio,
Um menino claudicante
Corre entre brinquedos
Espalhados,
E gritinhos incontidos
De chamar atenção:
Uma onomatopéia aflita,
Reiterada.

O pai, um idiota monoglota,
Fala ao celular há hora e meia:
É o seu brinquedo?
Seu serviço?
Seu compromisso?

O filho
É tão pequeno,
Tão pequeno,
Tão pequeno,
Quase invisível,
Quase inaudível.


KLEE

De miniaturas
Seria feita a eternidade,
E tu, engenheiro da exigüidade,
Ainda almejarias mais singeleza.

Com caligrafia lúdica,
Uma criança perpassa
Tudo o que fizeste:

Múltipla beleza,
Mínima escrita,
Máxima poiésis.