Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 1 de maio de 2011

Quatro Poemas Desocupados No Dia do Trabalho

MARINHA

Teu ser, palavra,
De tocar a orla
E retornar;
De verter-te ao seco
E o enlamear;
De trazer à praia
Um fundo de mar.

Ter seu, palavra,
De concha sem par.


ÁUGURE

Sonhei
Que de um céu azul
Nunca antes tão azul,
Chovia
Pássaros mortos.
Caiam durante o vôo,
Aniquilados por ataque
Cardíaco,
Aérea catalepsia
Ou falta de combustível.

Era o mundo da poesia
Onde a vida fora impossível.


MONÓLOGOS

No pátio,
Um menino claudicante
Corre entre brinquedos
Espalhados,
E gritinhos incontidos
De chamar atenção:
Uma onomatopéia aflita,
Reiterada.

O pai, um idiota monoglota,
Fala ao celular há hora e meia:
É o seu brinquedo?
Seu serviço?
Seu compromisso?

O filho
É tão pequeno,
Tão pequeno,
Tão pequeno,
Quase invisível,
Quase inaudível.


KLEE

De miniaturas
Seria feita a eternidade,
E tu, engenheiro da exigüidade,
Ainda almejarias mais singeleza.

Com caligrafia lúdica,
Uma criança perpassa
Tudo o que fizeste:

Múltipla beleza,
Mínima escrita,
Máxima poiésis.

11 comentários:

  1. Para a poesia, poder-se-ia juntar todas as palavras que se queria, e mandar uma criança pintá-las.

    Beijo.

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  2. pássaros, crianças, conchas sem praia: todos querem voar! a palavra deixa, porque se permite...

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  3. MONÓLOGOS// Esse poema é o retrato da nossa sociedade "moderna".

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  4. eu gosto muito da obra de klee, principalmente por identificar alguma coisa primordial ali,

    assim como em teu pássaro, primordial ao poema, que é morto em pleno voo por falta de combustão,

    e em teu menino primordial que não sossega, de forma a se incomodar pelos outros meninos todos,

    ou como em tua palavra sem par, a primeira palavra, a palavra primordial.

    amém, marco, amém!

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  5. belíssimo, quatro retratos sobre a poesia no mundo, na arte, na vida e a falta dela em alguns cantos desabitados - adorei querido poeta.

    bjs

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  6. Não vou mentir que muito ri com o título do post. Muito bom mesmo, Marco. "Monólogos" é brilhante.

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  7. marinha preciosa, pérola azulada!
    ...

    áugure, eis um canto depenado.
    ...

    monólogos: que poema gigante!
    retrato da realidade assombrada, digno de mil alto-falantes.
    ...

    inKLEEvel!!!
    (já diria o cebolinha)


    beijo avoado, meu mago.

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  8. Desculpa usar este espaço pra outro objetivo. Não tinha outro meio. Estou em falta com o texto sobre forró. Acho que não existe forró de plástico. Concordar com tal tese é admitir que há outro com base em outros materiais. O texto sairá até o final de semana. Meu abraço grande. Sempre honrado com sua visita. Rangel Jr.

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  9. tanto tempo morto no voo do pássaro sem poesia, porque a poesia precisa de ímpeto para o voo, assim como o pássaro precisa de asa para o canto, e os lagartos precisam se espichar nas sílabas, e os olhos de Klee pareciam conter pássaros e poesia, e a tinta parecia espichada e fina como o rabo do lagarto, assim tudo ocorre num dia desavisado



    abraço

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  10. 'Ter seu, palavra/ De concha sem par' é impar.

    e haja chuva de pássaros mortos para prover tanto céu azul sonhado em sonhos mesquinhos.

    abraço

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  11. Poetíssimo!

    Adorei a Marinha e a cena quase hitchcokiana dos pássaros.

    Inkleevel sua capacidade e cultura.

    Beijos

    Mirze

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