segunda-feira, 23 de agosto de 2010
Quatro Poemas Esquecidos de seus Títulos
O correra que os jornais não mais impelissem
O mecanismo preguiçoso do dia.
Ele trabalhava por si mesmo como o ciclo das águas.
As TVs passaram a mostrar a paisagem contida
No espaço de um segundo.
Os vizinhos não traziam notícias de outros vizinhos.
Foi queimada em praça pública a palavra ‘providência’.
Após milhões de dias,
Deus enfim descansara
Adormecido entre outros contos fantásticos.
Pela primeira vez no universo
Todas as coisas estavam situadas em si mesmas.
Páginas não possuíam reverso.
O rumor das asas das borboletas
Não provocava nenhuma celeuma:
Seu pouso sobre o miolo das flores
Não tinha mais transcendência.
As entranhas dos animais
Não eram mais reviradas
Em busca do osso do futuro.
Cobriram com sete palmos de terra e sal
O último oráculo obsoleto.
Chegara o momento em que tudo era desejo
De imprevidência
E desdém pelo cálculo.
A poesia afinal se fazia concreta.
*
Da arcada dentária dos livros
As palavras apodrecidas
São extraídas
Com uivos latejantes.
Sob as gengivas cicatrizadas,
Rumorejam os mitos insones
E suas armas fundidas
Com o ferro do sangue.
*
Há esse rio frouxo
Nascendo do degelo dos olhos
Que jamais verão o mar.
Refletem nuvens
Que deslizam sobre o arco
Das sobrancelhas.
*
A manhã, desatracada das horas,
Cruzará o dia
Como um carro desgovernado.
[Faetonte ao volante
e Hélios como um carona de olhos apavorados]
A manhã atravessará a ponte da tarde neutra.
Percorrerá a via da noite, ultrapassando
Os seus semáforos enluarados.
Ofenderá o pudor da madrugada
Com seus faróis de sol importuno,
E se chocará com a manhã seminal de amanhã,
Rebocando-a como luz adicional.
Serão duas manhãs percorrendo outro dia;
E no dia seguinte, três; e depois quatro...
Doravante, todas as horas passarão na luz da manhã.
*
O meu surrealista predileto:
MAX ERNST - Le Soleil
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Serei Poeta?
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Tela linda.
ResponderExcluirE poemas que nos atravessam. Parece que não haverá manhã calma, nem entardecer que trará paz, ainda assim, viver neste surrealismo é o que abranda a inquietude interna.
Beijo, meu caro.
Marcantonio querido
ResponderExcluirEstes teus quatro poemas esquecidos de seus títulos são simplesmente divinos, razão pela qual deles prescindem .
A imagem surrealista faz um casamento perfeito com os quatro lindíssimos trabalhos poéticos, que preferem o anonimato... Grandeza!!!
Grande abraço, amigo!!!
Há uma estética fascinante que perpassa todos os textos. A inevitável descontrução, a dissolução estruturada de modo quase surreal. Aliás, que teus poemas são telas surrealistas, não é novidade. Mas são poeticamente belas, imbatíveis.
ResponderExcluirO Deus Hipnos imantou-me aos poemas outra vez.
grande abraço
Marcantonio, entre os versos
ResponderExcluirde todos os poemas
há imagens que soltas
refazem-se na outra margem.
Detenho coisas (ou vozes)
para retornar à ponte
e prosseguir.
O poema não deve ser lido:
deve ser tragado
e dele eternos refluxos.
Por isso amo a Poesia:
além da voz
e dos ouvidos.
"Da arcada dentária dos livros
As palavras apodrecidas
São extraídas
Com uivos latejantes."
Forte abraço.
Belo post, Marc'antônio. Sou péssimo em elogiar e em receber elogios, meu psicanalista discute sobre isto com meu psiquiatra há oito anos... mas uma coisas é certa, sei do gosto. E, mais uma vez: Belíssimo post e um texto ótimo! Tenha uma boa semana. Jacson Faller.
ResponderExcluir...aqui pensando: teus poemas trazem imagens oníricas, eu não havia compreendido isso tão claramente, agora sim. São imagens perturbadoras porque falam a linguagem do insconsciente, e dizem desse delírio intraduzível em palavras, senão pela poesia...a tua poesia é assim.
ResponderExcluirGostei imensamente de todos...mas fiquei viajando na manhã desgovernada chocando-se com outras manhãs...atavessando a via da noite: teus devaneios poéticos arrastam-me na enxurrada...e vou devaneando também. Já tens material suficiente para um livro, não, Marquinho? Quem sabe não esteja perto dele...
Abraços,
Para mim, a palavra jamais é uma das mais cruéis. Sempre que a escuto ou leio, sinto um aperto.
ResponderExcluireu fico com a imagem de Faetonte e a metáfora que conduz à carruagem do sol, também eu vivo de cumprir desígnios alados e temo o descontrole dos meus corcéis,
ResponderExcluirabração
Marco,
ResponderExcluir"Pela primeira vez no universo
Todas as coisas estavam situadas em si mesmas.
Páginas não possuíam reverso."
O que perturba é poezia...
Perturbo-me surrealmente aqui, em cada imensa manhã, poeta...
Abraço poético,
Pedro Ramúcio.
ps: que venha o livro, ordenha de telas e páginas.
Cada imagem mais bela do que a outra. Gosto demais de pensar no degelo dos olhos que nunca verão o mar - isso é triste né, mas ainda assim carrega uma beleza sensível. Beijo sempre grande, Marco!
ResponderExcluirOlá,Marcantônio!Passando para conhecer seu blog,poema belíssimos de uma simplicidade e profundeza ímpares.
ResponderExcluirBeijos
Lara, obrigado. Max Ernst é o pintor surrealista que mais admiro, isso se Miró não for exatamente definido como um surrealista, claro.
ResponderExcluirE a vida? Pela manhã cantamos a noite. Anoitecendo, cantamos a manhã.
Beijo.
Zélia, querida, obrigado. Os títulos perderam a hora.
ResponderExcluirSempre agradecido pelas palavras de incentivo e carinho.
Grande abraço!
Ô Mai, obrigado. Realmente, como aproximar imagens distantes sem que seja removendo segmentos de toda uma estrada que há entre elas?
ResponderExcluirAcho que, de alguma forma, imagens surrealistas são muito mais inevitáveis na poesia do que na pintura. Nesta, o conceito se diluiu, se unindo a outras possibilidades de manipulação de imagens.
As suas impressões, Mai, reverberam bastante em mim.
Abraço.
Tela realmente linda e poesias surrealistas também encantam todo esse cenário de sonhos e aventuras no inconsciente. Cada imagem diz de algo profundamente escuso, desejos que nos fazem sair do sono pela inquietude dos versos que nos mobilizam algum movimento.
ResponderExcluirbeijo
Marcantonio
ResponderExcluirÉ a tua poesia brotando de dentro, renegando a ordem, desobedecendo a lógica. A falta dos títulos é toltalmente providencial... e quanto a tela não poderias ter escolhido combinação melhor!
Tudo muuuuito bem lembrado...
Bj grande, meu querido!
Domingos, obrigado. Como não comungar dessa idéia de uma poesia além da voz e dos ouvidos?
ResponderExcluirGrande abraço.
Jacson, também padeço do mesmo mal (?) em relação ao elogio. Rs. Sobretudo em recebê-los. Por outro lado, se eles não vêm, a gente se sente rejeitado. Uma confusão! Nem é Freud que a explica; talvez seja Nietzsche.
ResponderExcluirObrigado pela sua presença inspiradora aqui, e uma bela semana pra você também.
Abraço.
Tânia, confesso a minha inadequação. Como todo gauche, vivo (ou desvivo) numa dimensão mista entre sonho e realidade. Padeço pateticamente de uma incapacidade de me concretizar. Às vezes, o que parece surrealismo não é outra coisa senão o que a ansiedade distorce, essa implacável ânsia de encontrar uma forma de unir os cordéis do sonho aos da vida. Parece que comprei o bilhete para uma viagem, mas perdi o embarque. Agora não há outro jeito senão fazer desse limbo um acampamento, talvez iludido pela esperança de que possa ser ele o melhor lugar para estar. Talvez tudo o que escrevo remeta a isso.
ResponderExcluirQuanto ao livro... A questão é tornar essa proximidade concreta.
Um abraço carinhoso, Tânia; e a minha admiração.
Bípede, tento amar as palavras, o que, no meu caso, significa superar uma estranha revolta contra elas. A revolta já está bem menor do que o amor.
ResponderExcluirAbraço.
Ô Assis, o pai do Faetonte deve ter vivido aqueles conflitos típicos dos pais que se fazem ausentes: "se eu tivesse sido mais presente, menos permissivo, imposto limites e disciplina talvez nada disso tivesse acontecido!" Rs.
ResponderExcluirÉ, os gregos temiam a desmedida, tinham amor pela proporção, levavam em alta consideração as rédeas. Mas esse apreço não existiria se não houvesse por baixo o impulso dionisíaco, temerário, auto-destrutivo. Nessa balança, a vida.
Grande abraço!
Pedro, tá certo, acho que não existe poesia neutra, conformista, estável. Se existe, passamos ao largo dela como se fosse outra coisa. Até o fomento do sonho se faz perturbação, como o prazer advindo do se coçar uma ferida. As coisas jamais estarão situadas apenas em si mesmas, nem as palavras. Ainda bem. Ou não?
ResponderExcluirGrande abraço, Pedro!
Kenia, obrigado. Mas, de certa forma, a beleza é triste, né? Ela evoca por contraste a existência do que não é belo. A beleza mesmo é encontrar a forma de reter o que ameaça nos escapar, conferir massa ao que apenas flutua impreciso.
ResponderExcluirBeijo, Kenia.
Flor de Lótus, seja bem-vinda. Obrigado por suas palavras.
ResponderExcluirBeijo.
Luiza, obrigado. Tem sido um grande prazer acompanhar a postagem de seus textos e desenhos no Versos de Luz. Um reduto de sensibilidade.
ResponderExcluirBeijo.
Descomunal, assim é tua arte...
ResponderExcluirVersátil, visceral, vivaz!
Beijos de quem te admira.
(E tuas observações disconcertam-me, tamanha é a perspicácia do olhar. Um prazer distinto, suas visitas ao trem da lira)
Esses poemas enlouquecem, se analisados, forma e estrutura. Todos de uma beleza de "entranhas".
ResponderExcluirA imagem belíssima e Há um quê de tristeza.
Adorei "a arcada dentária dos livros com suas palavras apodrecidas, uivando ao serem extraídas"
Bravíssimo, Marcantonio!
És poeta...e dos melhores!
Um forte abraço!
Mirze
Marco, "quatro poemas esquecidos de seus títulos", mas inesquecíveis.
ResponderExcluir"Há esse rio frouxo
Nascendo do degelo dos olhos
Que jamais verão o mar."
Muito lindo!
Bjs, poeta. E inté!
"Doravante, todas as horas passarão na luz da manhã."
ResponderExcluirPincei esse verso como exemplo de sua poesia maior de grande.
Abração, Marcantonio.
Marco, o primeiro dos poemas já contém em si tantos que já embrenhei-me por um caminho de devaneios.
ResponderExcluirTodos belíssimos, mas um verso em especial do último poema me deixou encantada:
"...Os seus semáforos enluarados.
Ofenderá o pudor da madrugada
Com seus faróis de sol importuno"...
E a tela?
Maravilhosa!
Bom demais
Bj
Rossana
teu real é surreal. dias conotativos em noites de sol e sombra(ncelhas).
ResponderExcluirAve, Poeta!
↓
ResponderExcluirTudos bão! Todus boão!
DELIRantes surr and o REAL...
Da arcada dentária dos livros
As p.a.l.a.v.r.a.s ap.odr.ecidas (dor)
São ex.traídas
Com ui!.vos la.teja.antes.
Sob as gengivas cicatrizadas,
Rumorejam os mitos insones
E suas armas fundidas
Com o ferro do sangue.
L ou cura... ou deixassim!
Abr aço!
Nós outros escrevemos "poeminhas", vc faz arte. PARABÉNS! bom passar por um blog assim, investido desse desejo.
ResponderExcluirVoltarei. Bom ter novos amigos.
Agradeço a visita.
Um abraço
Nossa, o "surreal" aí se aplica ao seu talento. Lindos, seus poemas. Há poemas que não se sabe como comentar. Falo por mim...
ResponderExcluirEles tocam a alma e a alma não fala.Só sente...
..."Percorrerá a via da noite, ultrapassando
Os seus semáforos enluarados".
Olha...é preciso muito talento/sensibilidade pra escrever coisas tão lindas. Parabéns!
E.T. Obrigada por sua gentil e solidária visita. Volte sempre que puder.
Marcantonio, vir aqui é receber uma lição de poesia pra ser levada a sério, lidos e relidos os poemas. E como se fosse pouco, há as imagens.
ResponderExcluirObrigada pelo carinho.
Beijo de admiração.
porque o sol é o sol
ResponderExcluiré o sol é o sol
será sempre belo
também tenho uma caixa de poemas adormecidos, outros, perdidos, outros inacabados. poetas... :) sempre doida a imagem do rios que não chegam ao mar. beijo.
marcantónio, vir aqui é quase sujeitar-nos a uma overdose de poesia e sensibilidade. todos os textos são absolutamente tocantes; aqui, as sensações e o intelecto fundem-se num rio tão navegável quanto a tua genialidade.
ResponderExcluirum abraço, poeta!
Marco, os teus poemas me tiram do lugar.
ResponderExcluirum beijo
Cris, descomunal não. Apenas uma nau vagando no mar de expressão.
ResponderExcluirVisitar o Trem da Lira é um prazer, e lá deixo sinceridade no que comento.
Um beijo de quem também a admira.
Mirze, obrigado. Obrigado mesmo!
ResponderExcluirGrande abraço.
Ô Ju, obrigado. Devo-lhe umas visitas (aliás, eu as devo a mim mesmo, pois são para o meu prazer), mas já-já encontrarei tempo.
ResponderExcluirBeijo.
Paulo Jorge, estou sempre agradecido por suas visitas aqui.
ResponderExcluirUm grande abraço!
Rossana, obrigado. A sua presença aqui é sempre luminosa.
ResponderExcluirBeijo.
Ribeiro, às vezes o real só é suportável por um esforço surreal.
ResponderExcluirGrande abraço!
Tonho, o seu bom (e inconfundível)humor é recebido aqui como uma dádiva. Você nunca deixa as palavras se engessarem.
ResponderExcluirAbração!
Dauri, o seu comentário me deixou desconcertado. Não concordo: achei os seus textos especialíssimos, jamais os classificaria como poeminhas.
ResponderExcluirÉ um prazer visitá-lo. Espero ter tempo para fazê-lo com frequência.
Grande abraço!
Lau, bom vê-la de volta aqui. Foi um prazer visitar o seu blog. Voltarei sim.
ResponderExcluirObrigado.
Abraço.
Dade, que bom que você já retornou! Eu que lhe agradeço o carinho e retribuo essa admiração de maneira absolutamente sincera. Aliás, não poderia ser de outra forma.
ResponderExcluirBeijo.
Sim, Nydia, sempre belo o sol que, na verdade, está além do dia e da noite.
ResponderExcluirObrigado pela visita.
Beijo.
Jorge, obrigado, poeta! Eu não poderia ficar indiferente a essa menção sobre a fusão entre intelecto e sensação. É, de fato, uma fusão que me agradaria alcançar. Espero que para o bem.
ResponderExcluirGrande abraço!
Ô Andrea, eu próprio não sei em que território me situo ao fazê-los.
ResponderExcluirFiquei feliz uma vez mais com a sua presença!
Beijo.
A poesia se fez concreta.
ResponderExcluirAbraços.