Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 29 de agosto de 2010

Poemas do Final de Agosto

TUDO

Caminho na noite
entrante.
O coração embrenhado
projetando
aléias virgens
em terrenos blindados.

Reflito sobre nós,
e o mundo não é mais
do que um fóton
a fugir dos nossos
sonhos:
um fato
não documentado,
uma aporia,
uma palavra sozinha,
um mito pensado.

Ah,
tudo somos nós,
e, um segundo após,
nada mais seria
fossem nossos olhos
alvejados!



SEM DIDÁTICA

Siga em frente.

Nada tenho a ensinar,
senão que a vida é breve
e a arte... Luar.



EMERGÊNCIA CONTÍNUA

Aguardamos o ressuscitamento
por uma ação entre bocas:
palavrear que movimente os pulmões.



RIO-LAGO

Lápis fluvial:
que rios teço?
Que afluentes
sinuosos
nele emendo?

Da borda da folha
o grafite desvia
e retorna:
Faço um lago
espesso.

















Monotipia s/ Título - Marcantonio

Outras imagens minhas em Cadernos de Arte

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Quatro Poemas Esquecidos de seus Títulos



O correra que os jornais não mais impelissem
O mecanismo preguiçoso do dia.
Ele trabalhava por si mesmo como o ciclo das águas.
As TVs passaram a mostrar a paisagem contida
No espaço de um segundo.
Os vizinhos não traziam notícias de outros vizinhos.


Foi queimada em praça pública a palavra ‘providência’.
Após milhões de dias,
Deus enfim descansara
Adormecido entre outros contos fantásticos.


Pela primeira vez no universo
Todas as coisas estavam situadas em si mesmas.
Páginas não possuíam reverso.


O rumor das asas das borboletas
Não provocava nenhuma celeuma:
Seu pouso sobre o miolo das flores
Não tinha mais transcendência.


As entranhas dos animais
Não eram mais reviradas
Em busca do osso do futuro.
Cobriram com sete palmos de terra e sal
O último oráculo obsoleto.


Chegara o momento em que tudo era desejo
De imprevidência
E desdém pelo cálculo.


A poesia afinal se fazia concreta.


*


Da arcada dentária dos livros
As palavras apodrecidas
São extraídas
Com uivos latejantes.

Sob as gengivas cicatrizadas,
Rumorejam os mitos insones
E suas armas fundidas
Com o ferro do sangue.


*


Há esse rio frouxo
Nascendo do degelo dos olhos
Que jamais verão o mar.


Refletem nuvens
Que deslizam sobre o arco
Das sobrancelhas.


*


A manhã, desatracada das horas,
Cruzará o dia
Como um carro desgovernado.

[Faetonte ao volante 
Hélios como um carona de olhos apavorados]

A manhã atravessará a ponte da tarde neutra.
Percorrerá a via da noite, ultrapassando
Os seus semáforos enluarados.
Ofenderá o pudor da madrugada
Com seus faróis de sol importuno,
E se chocará com a manhã seminal de amanhã,
Rebocando-a como luz adicional.
Serão duas manhãs percorrendo outro dia;
E no dia seguinte, três; e depois quatro...

Doravante, todas as horas passarão na luz da manhã.

*

O meu surrealista predileto:






















MAX ERNST - Le Soleil

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

QUERO IR PARA LONGE

Quero ir para longe,
Para onde a vida faz a curva
Abrupta,
Onde terra e céu são descosturados.

Neste domicílio me desintegro.

Quero ser eu mesmo o pastor e o rebanho
Em pastos baldios e não loteados.
Vogar por ruas que não me gritem o nome.
Ser argonauta desertado em desmazelo
Com desdém pelo velo dourado:
Jasão jazendo na relva do jardim de Voltaire.

Dirão que enlouqueci.
Dirão que desisti.
Que o digam!
Quero fulgir na alça do primeiro sol sem vocábulos.
Ser o curador da galeria de todas as inutilidades:
Carrinhos sem rodas, livros sem final,
Moedas sem efígie, carimbos sem textura,
Canetas sem cargas, pincéis sem pelos,
Meias puídas, manuais de empobrecimento...
Um sem-fim de coisas abdicadas.

Quero ser um extravio de poeta desusando palavras.
Nem que eu tenha que hospitalizá-las todas,
Quebrar-lhes as pernas,
Entupir suas artérias,
Embaçar seus cristalinos.

E se acaso algumas resistirem,
Com elas adentrarei o burgo,
Quero fazer escambo na feira,
Trocar dúzias de palavras raras, convalescentes
Por um retalho de vida plena.

Mas, quem aceitará?
Como último recurso eu as deixarei nas margens
Da estrada
Que vai me levar para longe, distante daqui.


SEGMENTOS IMPOSSÍVEIS 
(TÍTULOS PERDIDOS)
1

A revolta das escápulas.

2

O precursor aposentado.

3

Canteiro sanguíneo.

4

Estradas residuais.

5

O mentor das orquídeas.

6

Espelho-cela

7

Amanhã, amoras.

8

Grua de estrelas.

9

Purê de luzes.

10

O meu fígado não é isca, abutre!

















MARCANTONIO - Estudo em lápis aquareláveis - Anos 90

Mais imagens minhas AQUI

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Quatro Poemas em Dias de Corpo e Alma Gripados

INÓCUO

Se o poema pudesse curar-te
O meu horizonte poético
Seria feito de prateleiras de farmácia;
Meu intento: alquimia orgânica
Nas fontes genéticas.
Mas, o verso não tem ação
Farmacocinética,
Quando muito, emplastos com sabiás
Embutidos
Retirados das ramas da palmeira poética
Falta de sentido.

Desta botica esclerosada e inócua
Eu me evaporo dos frascos sem tampa
No ar consumido.

Bode expiatório exilado
Meu poema não se cura
Da procura do passado.

Cura de aldeia aposentado,
Ocupado com uma colônia
De larvas para passarinhos,
Com o placebo das palavras
Eu me enveneno sozinho.


DA PACIÊNCIA

Tudo o que encaro
Esfria e se cristaliza
Em calcária paralisia.

Olhar de górgona,
Espero sem pressa
O porvir que se move
Rumo ao presente
Que presumo eternidade.

Até que perca a cabeça
Mirando a mim mesmo
No escudo polido
Da precariedade.


O MURO

Parece que busco
um renascimento;
mas,
o tempo contraceptivo
me acumula sobre mim:

tijolos tijolos
tijolos tijolos
tijolos tijolos
tijolos tijolos

tijolos idênticos
de um mesmo muro.


LICENÇA

Quando digo que estou perdido
Não me acreditam.

Sem gerenciar-me,
Sem administração,
Sob antiga ou nova direção,
Sem estratégia de venda, enfim.

Não é licença poética,
É licença de mim.


















PICASSO, Ciência e Caridade , óleo s/ tela - 1897

* Também postei hoje no Mínimo Ajuste

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Poemas dos Primeiros Dias de Agosto

RUÍNAS

Na teia (encruzilhadas
             de vagos vapores)
nenhuma aranha.

Jamais vi uma aranha em sua própria teia,
como se esta fosse uma relíquia,
um templo
como o Partenon;
uma ruína
como o Palácio de Cnossos.

Jamais vi um grego
em um templo grego,
como se este fosse uma abstração,
uma maquete ilusionista,
um esqueleto
atravessado pela luz,
ou um poema sólido.

Jamais vi um poeta em seu poema,
como se este fosse obra do tempo,
um fóssil,
um fragmento pitagórico
ou uma lápide.

Jamais vi um corpo sob uma lápide,
tal como uma aranha em sua teia,
como um grego em seu templo,
como um poeta em seu poema.


DOIS HAIKAIS

Muito impertinente
Adentra o vento curioso:
Folheando o livro.

2

Inseto ínfimo
Atravessa destemido
A palma da mão.


NOME

Se eu pudesse nomear esta nostalgia
Ela adormeceria na neutralidade
De flor colhida.

Mas a nostalgia é não poder convocar o nome
Antes do seu parto.


MANTRA

[Experimente este:]

O mar ameaça.
O mar recua.
O mar ameaaaça.
O mar recuuuaa.
O mar ameaaaaçaaa
(...)

















Monotipia s/ título - Marcantonio

Outras imagens minhas em Cadernos de Arte

domingo, 1 de agosto de 2010

BANG!

BANG!

Este verso inicial
esse est percipi
esse hábito sem monge
esse mapa sem linhas
esses monóculos irmanados
essa visão convertida
esse órgão orgíaco
essas esparsas partidas
esse poema maníaco
essa rima endêmica
essa folha anêmica
esse só dissolvido
esse pó apodrecendo
esse mar segmentado
essa lírica feira
essa vírgula ligeira
esse ponto artífice
essa língua de enganos
esses cúmulos na boca
esse mundo entre coxas
essa porta sob o púbis
esse focinho de Anúbis
esses páramos para o nunca
esse ânus de anis
essas floras fortificadas
essas pálpebras palmilhadas
esses seios insones
esses cabelos ciclones
essa fruta indefesa
essas maçãs zigomáticas
esses zaratustras calados
esse édipos com binóculos
e essas esfinges distantes
essa cabeça em capítulos
essas ações em fascículos
esse Hegel silabado
esse divisor de mágoas
esses rins derrisórios
esses olhos calóricos
esse sujo sujeito
esse vogar de aliterações
esses veios abstratos
essa canção sem vértebras
essa dialética sem vértices
essas ágoras fechadas
esses verbos sem hélices
essas estátuas atualizadas
essas fezes cristãs
esse orbe mictório

esse particípio permanecendo
esse selo adiado
esse zelo encadeado
esses dentes descarrilados
esse pente sem paralelas
esse visgo em pronomes
essa vigas sob os nomes
esses netunos de aquário
esses ulisses divorciados
esses prometeus suturados
e seus abutres amestrados
esses piolhos fotogênicos
esse som essa fúria de astúcias
essas furnas de vaidades
essas taças afastadas

esse epicuro epicentro

esses trincos combalidos
esses profetas protéticos
essa profissão de fel
esse pólen sem sol
esses pólos sem marcos
essa régua no olhar
essa maré de janelas
essas esporas dos mitos
essas chaves sem voltas
essas lápides de estrelas
essas telas estelas
esses penteus autopsiados
esses blakes blindados
essa maiêutica hiperestésica
essas crenças anestésicas

esses narizes de ciranos
e suas roxanes iletradas
esses livros em vocalise
essa tocaia e fuga em ré
esses hipocampos selados
essas risadas grisalhas
esse varal de vespas
esse sarau das bestas
essa lama seca entre os astros
esse hermeneuta e seus cascos
essas absides sem pescoço
esse baralho cartesiano
essa dânae dos bancos
esses corvos abúlicos
essas luas em conserva
esses campos escalpelados
esses choque térmico das esferas
esses cabides de esperas
esses faetontes urbanos
esse cemitério de esboços
essas cimitarras verbais
essas odes abortadas
esses ódios em gavetas
essas enguias turísticas
essa folia arrivista
essas parábolas arquivadas
esse remorsos dos cataclismos
esse vômito dos canais
esse esgoto de digitais
essas franquias de córtex
essas ampolas de dúvidas
esse apóstrofo entre os dias
essas reticências sublevadas
essas traças no cabeçalho
esses vórtices de tédios
esse pensamento hemiplégico
esse rocio nas mãos
esse rodízio de inércias
esse eco de auroras
esse apego das células
esse diário dos danos
esses restos de Orfeu
essa lira desdentada
esses trem de pronomes
essa ânsia de final
essa paralalia
essa estação provisória
este verso terminal.


Marcantonio - Estudo em óleo
Outras imagens minhas AQUI