Como ter a disponibilidade criativa e lúdica de um anônimo construtor de castelos de cartas que se submete apenas às injunções do próprio medo (sagrado medo!) de que eles desabem diante dos seus próprios olhos?

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Verdade e/ou Ficção


Tenho certo fascínio pelo filme SATORI USO, do diretor paranaense Rodrigo Grota. Considero-o um verdadeiro achado cujo sentido se amplia quando se conhece a história que envolve a sua criação. Nesse sentido é um filme que possui um contra-face literária, digamos assim, ou mesmo conceitual, que, se não é indispensável para apreciá-lo como filme, amplia em muito o seu significado. O curta-metragem,lançado em 2007, “documenta” a estadia do poeta japonês Satori Uso em Londrina, na década de 50, utilizando para tanto trechos de um filme inacabado sobre o poeta, realizado por um cineasta underground americano, Jim Kleist Ocorre que o poeta e o cineasta jamais existiram, mas uma série de artifícios os fazem parecer reais. Logo, o filme é daqueles que relativizam a fronteira entre verdade e ficção, estabelecendo nesta fronteira o território próprio do poético. Agora, se você conhece o fato que deu origem ao roteiro do filme, este se mostra, talvez, como um documentário sobre o próprio ato criativo. Satori Uso, na verdade, foi inventado pelo poeta paranaense Rodrigo Garcia Lopes, que publicou, em 1986, num jornal de Londrina, uma nota sobre a passagem do poeta japonês pela cidade, fornecendo dados biográficos e publicando, inclusive, alguns poemas do “autor”. Quinze anos depois, ele mostrou o jornal a Rodrigo Grota, que teve a idéia de filmar um documentário sobre o poeta fictício. Rodrigo Garcia Lopes e Rodrigo Grota elaboraram o roteiro que só se tornou definitivo quando o diretor teve a idéia de criar o personagem Jim Kleist

Kleist ganha uma biografia que o liga aos poetas beats, como Ginsberg e Burroughs, e ao pintor Edward Hopper. Era um cineasta que se recusava a terminar seus filmes por crer que isso os aprisionava a uma forma fixa contrária a fluidez da vida. Suicidou-se em 1992. Já Satori, definido como poeta das sombras, é mostrado no momento em que estabelece uma relação com uma mulher, Satine. Após o rompimento, o poeta acentua ainda mais o seu isolamento, seu desejo de desaparecer. Tendo lançado um único livro, decide-se a não fazê-lo novamente.

Portanto, Satori e Kleist são artistas que se colocam intencionalmente à margem, cuja arte se afirma segundo suas próprias idiossincrasias, atendendo a uma necessidade interna e intimamente ligada à vida. Arte para si que quer prescindir de uma intermediação cultural óbvia, disposta a pagar o preço do esquecimento. Que sejam artistas “esquecidos” é algo imprescindível para que o artifício do filme funcione. Mas também se pode reconhecer nisso a questão sobre até que ponto um artista que faça esse tipo de opção pode ter o direito de existir. Ou, inversamente, sobre até que ponto os artistas canônicos não seriam, de alguma forma, produtos de uma ficção.



Esse ardil de simular uma biografia documentada de um artista que nunca existiu tem um antecedente famoso. Em 1958, o escritor franco-espanhol Max Aub, mais conhecido entre nós pelo livro CRIMES EXEMPLARES, lançou o “romance” JUSEP TORRES CAMPALANS, que revelava para o mundo a existência de um pintor catalão, Campalans, radicado no México, e que teria sido o verdadeiro inventor do cubismo. Católico, anarquista, companheiro de Picasso, Torres Campalans viveu em Paris até o começo da I Guerra, quando, desiludido com a arte, teria se refugiado no México. Aub inclui no livro documentação, anais, referências, um catálogo de uma exposição sobre o artista na Tate de Londres, em 1942, que acabou não sendo realizada; um caderno de notas do artista que teria sido fornecido ao autor por Jean Cassou, crítico respeitado; e, o mais impressionante, várias reproduções de quadros e desenhos do suposto pintor (trabalhos que foram realizados, na verdade, pelo próprio Aub. Há, inclusive, uma foto na qual Campalans aparece ao lado de Picasso.

A fraude de Max Aub tinha, é claro, uma intenção crítica e irônica. Após o lançamento do livro, setores desavisados da intelectualidade francesa chegaram a considerar como real a figura do precursor do cubismo. Isso talvez revele algo sobre a forma como certas tradições são construídas. Algumas frases atribuídas a Campalans expressam divergência e desilusão:

“O que explica se rebaixa. Por isso todos os críticos são pequenos.”

“Mentir de quando em quando para dar com a verdade. Não há outra maneira. Copiar engana sempre: estrada morta.”

“Eu pintava para me salvar. Assim como pretendo salvar minha alma no dia da minha morte que se aproxima. Para salvar-me na terra, supunha fazê-lo entre os homens que, não tinha dúvidas, seriam cada dia melhores. Quando me dei conta do meu equívoco, renunciei."                     
Torres Campalans com Pablo Picasso
     

Obras de Campalans (Max Aub)



Max Aub

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Mudança e Mudanças

Acho muito curiosa a forma como se constroem certos discursos sobre as mudanças do mundo. Gostamos de imaginar processos de ruptura ou descontinuidade como forma de assegurarmos a inevitabilidade de certo andamento das coisas, algo como crer que mudar é morrer para o antes. Mas ignoramos o dado de que se rupturas imediatas ocorressem talvez não tivéssemos sequer como analisá-las por falta de conceitos ou instrumentos apropriados. As coisas não se dão como se despertássemos para um novo mundo saindo de um longo coma. O princípio de continuidade segundo o qual a natureza não dá saltos é também aplicável a cultura. Mas atendendo a um espírito de combatividade devotado a certos interesses ou predileções, não suportamos períodos de transição nos quais modelos diferentes costumam conviver. Não, é necessária uma espécie de coma conceitual induzido para afastar as consciências refratárias ou incrédulas. Dúvidas? Deixe estar... Ouçamos o piloto do mundo: “Senhores passageiros, estamos passando por uma área de mudança radical, mas fiquem tranqüilos, pois sabemos perfeitamente  aonde estamos indo.” Ora, mas se já sabemos, como podemos dizer que se trata de uma mudança radical? Talvez porque não seja tão radical assim.

Alguns desses discursos seguem então um finalismo otimista pelo qual toda mudança atende ao princípio de razão suficiente, ignorando, porém, o princípio de continuidade pela negação de qualquer historicidade. É um otimismo intolerante que prega a atualidade total, como se o passado fosse um grande necrotério de idéias e práticas. Segundo essa mentalidade, criatividade, inteligência e eficiência e outros valores ideais são prerrogativas do presente, só encontradas no passado, mesmo o recente, em estado primitivo. O passado importuno que ainda alcança o presente, é visto como um modelo estático que precisa ser superado para que possamos dar conta das novas exigências. Só não se explica como um presente tão dinâmico originou-se de um passado tão estático. Mas, provavelmente se lançaria mão do artifício de explicar um presente que acena para um futuro tão formidável, como se fosse o resultado da ação voluntarista de algumas mentes brilhantes.

Então, a pergunta parece ser esta: como afirmar a validade ou existência de valores novos senão como resultante da transformação gradual de valores precedentes? Parece que dispomos de dois modelos de crença a esse respeito. De um lado a concepção de uma realidade complexa onde as mudanças ocorrem de modo relacional e disperso, sem que possamos afirmar de maneira absoluta para onde elas nos levam. De outro, o modelo que quer afirmar a subitaneidade de mudanças das quais já se sabe o sentido e a extensão, isto é, um modelo para fins afirmativos, onde o presente seria descontínuo em relação ao passado, mas contínuo em relação ao futuro. “Daqui pra frente, tudo vai ser diferente...”. Claro que esse futuro diferente nunca chegará, pois então já não será percebido como tal.

Eu estava recentemente lendo um livrinho curioso, adquirido por nada num sebo há anos atrás. Chama-se “O Preço do Futuro” e reúne uma série de entrevistas concedidas por intelectuais e cientistas à Rádio Europa Livre em 1970, sobre suas visões do mundo em face dos avanços tecnológicos. Curiosamente, se descontarmos a questão da guerra fria que polarizava o mundo então, as entrevistas parecerão bem atuais, próximas de discursos encontrados hoje a respeito das tecnologias da informação, da genética, do aquecimento global. Está lá, também, a costumeira divisão entre otimistas e pessimistas, indicando que não há nada como acompanhar uma visão do futuro construída no passado para aprendermos a relativizar o presente. E por que a discussão não teria mudado nesses quarenta anos? Porque ela toca numa questão sensível, a crença otimista própria do cientificismo do século XIX de que a técnica (ou a tecnologia) seria capaz de mudar para melhor o interior do homem; idéia essa que sempre se mostrou indemonstrável, senão falsa, e que ainda permanece por aí, em nossos dias. A função mágica que a tecnologia ocupa em nossas vidas, não dá conta de mudar a consciência humana no seu sentido profundo, que inclui nossas contradições afetivas e morais. Mas se a tecnologia não alcança esse fim, pode, no entanto, contribuir para afastar o homem da busca da superação dessas contradições ao disfarçá-las, favorecendo certo esvaziamento humano. Ou seja, falar do novo homem criado pelo avanço tecnológico terá sentido apenas no que se refere às suas capacidades intelectuais e de domínio material, mas não do homem integral que reúne em si dimensões afetivas e irracionais.
Encontrei também nesse livro um conceito que elucida algumas das minhas sensações cotidianas. Trata-se da “alienação cósmica”,  idéia que tentava explicar a percepção ambivalente do homem comum dos anos sessenta, posto em contato através da TV com a dimensão mítica de uma tecnologia capaz de levar o homem à lua, ao mesmo tempo em que se confrontava com a incapacidade de se organizar os transportes públicos, a coleta do lixo, ou algumas das suas necessidades diárias básicas. Algo semelhante é enfrentado por nós, fascinados diante das maravilhas disponibilizadas por um avanço tecnológico contínuo, enquanto somos obrigados a suportar tantas carências e obstáculos que nos parecem alucinatórios em sua mesquinhez.

Por fim, reproduzo um trecho da entrevista de Brian Aldiss no livro citado acima. Aldiss, premiado autor de ficção científica, teve seu conto Super-Toys Last All Summer Long (Superbrinquedos Duram o Verão Todo) utilizado como base para o roteiro de A. I – Inteligência Artificial de Steven Spielberg. No referido trecho ele demonstra, à sua maneira, como a tecnologia pode ser investida na utopia de um homem melhor:

“Mas a criação da maioria culta talvez possa resultar do uso intensivo de computadores. Em The Shape of Further Things, eu descrevo o modo pelo qual os terminais de computadores instalados nas casas – do mesmo modo que os aparelhos de televisão – poderiam livrar os estudantes do trabalho maçante de perseguir fatos escondidos em fontes enganosas. Os terminais de computadores dariam acesso direto às fontes de informação dos grandes centros autorizados do mundo; ou à sua mais próxima biblioteca da rede. A disciplina do aprendizado ainda seria necessária – mas as horas perdidas na procura dos fatos seriam evitadas. Teríamos uma explosão de dados numa escala sem precedentes. Durante o tempo economizado, as crianças poderiam aprender como viver, em vez de como ganhar a vida. Teríamos então uma verdadeira educação para a vida, o prêmio do autoconhecimento chegaria mais cedo em vez de mais tarde, com uma conseqüente diminuição de tensão no indivíduo e na sociedade. Se isto jamais acontecer – e as probabilidades são bastante remotas – será um genuíno passo para a utopia; para termos melhores pessoas vivendo melhor.”

Bem, a explosão de dados já está aí há alguns anos e numa dimensão bem superior, provavelmente, à imaginada por Aldiss. Quanto à educação para a vida, o autoconhecimento, o tempo livre...



quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Dois Poemas

Faltando-me
um rebanho
de ruminantes
simpáticos,

pastoreio
insetos
peripatéticos
emblemáticos

2

Árvore
com asas
folheadas:

anjo arraigado
escarnecido
pelo vento.


BlogBlogs.Com.Br

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Mais Três Poemas Meus

Trato as palavras
Como figuras de terracota:
Escovo seus óxidos porosos
E tão ancestrais.
Mas, imprudente,
Acabo por parti-las em pedaços.



Há um silêncio onívoro
Que também a mim quer engolir.
Tento escapar de sua gula ampla,
De seu hálito enjoado,
Cheirando a vazios definitivos...

Mas eu sei, eu realmente sei
Que nada faço senão caminhar
Em suas entranhas secas
Seus deambulatórios enormes
De catedral sem clerestório.

Mas se eu puder, se eu puder
Serei indigesto ao silêncio faminto!
Serei como pedras ácidas
No estômago pesado de Crônos,
Gritarei a plenos pulmões: dane-se!


A CIDADE

A cidade em mim tem outra história:
Planisfério de ritos e gestos,
Rosário insular de ilusões, afetos
Que se reestruturam na memória.

Pouco sei de mim sem tal cidade,
Se me percorri em seus trajetos
Que, inconclusos, parecem completos
Na sua ambígua pluralidade.

Linhas quebradas, curvas, aspirais.
Ir, vir, parar nas esquinas casuais
Por onde corre a vida dissolvente.

Nessa alma coletiva, continente,
Cidade que sem fronteira flutua,
Sonora, caótica, ávida e nua.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

Condomínio Poético I

QUATRO POEMAS DE DALVA M. FERREIRA

Eu hoje estou assim:
bem pessimista,
bem realista,
bem consciente da minha circunferência.

Mas eu não era assim:
eu tinha sonhos,
tinha desejos,
vivia muito mais além das circunstâncias.

Só sei que, de repente,
(tão de repente)
algo quebrou,
algo deixou de ter, em mim, correspondência.



Um porão,
quarto escuro, sem porta ou janela.
E, mesmo havendo,
não tendo a vontade de olhar...

Quem és tu?
Quem tu és? Donde vens?
O paredão
que bloqueia e impede o meu vôo.

A mão pesada
e cinzenta que fecha o imenso cadeado.
Os fantasmas
porém, de outra vida deveras mais viva.

A memória
adorada e fugaz dumas coisas imensas.
Ferroada
doída e constante das coisas pequenas.



O relógio da sala parou,
certa noite:
era tarde,
chovia e fazia frio.

Sobre a mesa, as migalhas do pão,
umas sobras,
as frutas
e as taças de vinho vazias.

Desde então,
além disso,
e daquilo,
deixo sempre uma lâmpada acesa.

Vai daí que você pense bem,
tenha fome,
ou sede,
vai daí que acaso me queira...



Existem aqueles minutos,
bem poucos,
tão poucos,
em que eu me lembro de mim.

Feliz, como eu era antes:
criança,
e tão simples,
correndo descalça na estrada.

Atrás de uma borboleta
estampada,
amarela
ou branquinha.

Mas isso era antes de agora,
do tempo,
da idade,
e de todas aquelas mentiras.

Mais de Dalva em:   POESIAS SOLTAS 

________________________________________

POEMAS DE PAULA ZIEGLER

Olhei pela janela
e finalmente eu vi
o capim minha alma e todos os tons


drenadas as lágrimas
no rosto-aço surge o vidro
espelho o mundo


Holder-lune

nada me acontece
disse o poeta
só poesia


no sonho
no silêncio
no não
que nunca me encontrem
que nunca me tirem
o meu carnaval


escuto silêncio
porta para o paraíso
música muito minha
som-pausa
silêncio
somente


ela bela letra
no silêncio
pulula pura e só som
lágrima-luxo estrela
universo
humanimado


Extraídos do livro LETRA-ESTRELA

Antigos Desenhos


Remexendo nas gavetas, encontrei um pacote com desenhos realizados em meados da década de noventa. São estudos de movimento, em sua maioria de maestros cujos gestos eu buscava capturar. Utilizava imagens de concertos em vídeo, me valendo das teclas "pause" e "slow". Tinha de desenhar rapidamente, e a questão era sobrepor sequências de movimentos. Nada de original, aquele tipo de idéia que remonta a Edward Muybridge, Jules Marey e a Humberto Boccioni. Mas foi um bom exercício, mais de uma centena de desenhos. E, olhando hoje, não parecem tão desprezíveis.

















Depois realizei estudos semelhantes com a capoeira como tema:




E daí ao esporte:

    S/ Título, técnica mista s/ tela - 70 x150 cm - 2000

     O Chute - Técnica mista s/ tela - 100 x 150 - 2000

Quando, por fim, a questão do movimento deixou de me interessar.

4'33''



Se você não é familiarizado com música de vanguarda do século XX, é provável que nunca tenha ouvido falar e vá achar, a princípio, que o vídeo está com algum problema. Mas é assim mesmo. Trata-se de 4’33’’, uma peça do americano John Cage apresentada pela primeira vez em 1952. A intenção básica do autor era investigar a verdadeira natureza do silêncio, no caso, a “música” incorpora os ruídos da sala e aqueles provocados pelos ouvintes. Antes de “compor” a peça, Cage chegou a meter-se em uma câmara especial em busca do silêncio absoluto, não encontrado, é claro, pois ainda ali podia ouvir o seu próprio coração bater. Enfim, a música estava salva, pois sempre haverá algum ruído que possa ser tomado como música. Parafraseando um famoso dramaturgo inglês, é muito silêncio por nada. E é provável que depois de ouvi-la, leitor, as suas idéias ou sensibilidade a respeito do universo sonoro não se modifiquem um milímetro.  É uma daquelas coisas que pode até ter tido sentido histórico, como a exposição de uma sala vazia, feita pelo artista francês Yves Klein, na década de cinqüenta, mas que, no fundo, você “sente” não passar de uma bobagem que exige de nós uma concessão mental, o que só não é admitido por pudor intelectual de cometer uma heresia. É necessário fingir compreender. Eu gosto de música contemporânea. Gosto do próprio Cage, e simpatizo com as idéias zen-budistas que ele professava, mas... Ele chegou a dizer que 4’33’’ era a sua obra mais importante, o que lembra a idéia de Nietzsche de que “os artistas ignoram o que melhor sabem fazer”.
Se você preferir, há versões para orquestra. A grande questão é saber qual foi até hoje a melhor. Mas, desconfio que deva ter sido a primeira. Por outro lado, diante do que se ouve hoje em dia em termos de música, até que a peça de John Cage tem lá os seus encantos. E também é bem melhor do que ouvir o “Helicopter String Quartett” de Stockhausen.

Um contraponto interessante: em 1772, Haydn compôs a Sinfonia nº 45, apelidada "Do Adeus" em função de no seu último movimento os músicos irem se retirando de cena, aos poucos, só restando ao final dois violinistas que também se retiram deixando atrás de si o silêncio. Este estratagema teria sido usado por Haydn como forma de chamar a atenção de seu protetor, o príncipe Esterházy, para as queixas de seus músicos que não suportavam mais a distância de suas famílias  devido às longas temporadas. Essa solidariedade de Haydn nos proporcionou um momento curiosíssimo na história da música. Abaixo, um vídeo com uma versão bem humorada regida por Daniel Baremboin: 


terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Mais das Minhas Tentativas Poéticas

POEMETO

Um poema pode surgir de  outro
que ficou na estrada, morto.

UMA CÂMERA QUE VAGA

Concreta vivência:
o sol na pele
e o suor inodoro
da indolência.
O vento musicando
a tarde,
com um minueto dançado
pelas sombras, na areia.
A inciência banal
alimentando a vista,
uma câmera que vaga
sem cinegrafista.
O silêncio verbal:
mais ouvir que falar
por hábito;
e se tal for preciso,
ser monossilábico.
Tudo coisificado,
e sem filosofar:
substantivos concretos
como este cigarro
que divido com o ar.

SOL-LUA-SOL

Eu me desfiz dos relógios
e sua solícita crueldade!
Uni as frações das horas
numa  ponte
que atravessa o meu dia
entre dois extremos signos:
sol                               lua

Calendário carnal,
meu corpo anota por si
o retraimento da vida.

UNIDADE

Súbita no cotidiano,
uma epifania:
as células de todas as coisas
se abrem
como pálpebras de uns olhos
benevolentes.

E neste momento
a linha do tempo
se enrola
e suas pontas desaparecem
no emaranhado:
Seria uma eternidade?

FIGURA INFIEL

O sono é um trem no horário
que parte sempre sem mim.
O tempo interno me ilude?
No rosto ardido de frio
resíduos de juventude
sob as pálpebras cansadas:
as finas veias azuladas...
E esses lábios que arquitetam
um tal sorriso distorcido.
Por que afinal me assemelho
à figura infiel do espelho
com semblante impressentido?

RETRATO

Teus olhos são oratórios
de onde a luz ergue uma prece.

RETORNANDO

Uma vez mais as ondas do mar,
metáforas da vida falha:
na margem, perdulárias,
ruidosa espuma espalham.
Força exaurida, mas refém
da urgência em retornar
do limite que fica aquém...

VISÕES

Vejo o que não aflora:
figura contra fundo invisível:
a cor que não tem aura:
o contorno que não retorna:

e a linha que ampara
o inconcebível.

SEM MEMÓRIA

Se eu não tivesse memória
e não retornasse jamais
a qualquer pensamento,
seria como uma duna
que se desfaz e refaz ao vento.

O QUANTO BASTE

Chega de filosofia!
Nada mais de aporias!
Quero apenas a canção-reflexo,
diária,
lavrada em palavras curtas,
diminutas
pedrinhas de mosaico.
Quero ser do meu tamanho.
Uma aquarela de Klee me bastará!
O teto da Sistina é celeste e inalcançável...

PARA LER EM VOZ ALTA

Explique-me o que é o silêncio.
Você sabe o que é o silêncio?
Sabe o que é o silêncio?
O que é o silêncio?
Que é o silêncio?
É o silêncio?
O silêncio?
Silêncio?
(?)
(  )
()

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Da Série "Livros que Amo": CARTAS PERSAS de Montesquieu


Um livro delicioso para heréticos que, como eu, acreditam que no fundo o homem permanece sempre igual a si mesmo, mudando apenas de cenário e de alguns costumes  
superficiais. Publicado em 1721, foi o primeiro sucesso de Montesquieu, notabilizado, como se sabe,  pelo livro "O espírito das Leis", no qual é exposta a famosa teoria da separação dos poderes. Escrito na forma epistolar, muito apreciada por escritores do século  XVIII,  Cartas Persas (Lettres Persanes) descreve as aventuras e impressões de um pequeno grupo de persas em viagem pela Europa, sobretudo Paris. Liderados por Usbek, eles se correspondem  entre si e com amigos que permaneceram na Pérsia.  É quanto basta como pretexto a Montesquieu para empreender uma crítica irreverente e ácida às instituições políticas, aos costumes e práticas sociais da Europa do Século XVIII. Nem mesmo a Igreja escapa, ou, talvez, principalmente ela. Estabelece-se, além disso, uma certa relativização da cultura e da religião a partir das posições dos muçulmanos, que com suas observações de "estrangeiros", aparentemente ingênuas, demonstram uma corrosiva lucidez. Não resisto a citar alguns trechos:

"O Papa é o chefe dos cristãos. Um velho ídolo que é incensado por hábito. Outrora era temível até para os próprios príncipes, pois os depunha tão facilmente como nossos magníficos sultões depõem os reis de Irimete e da Geórgia. Mas ninguém mais os teme. Ele se diz sucessor de um dos primeiros cristãos, chamado São Pedro, e é certamente uma rica sucessão, pois tem tesouros imensos e um grande país sob sua dominação."
(Carta 29, de Rica a Ibben).

"Mas o que me choca nesses belas mentes é que não se tornam úteis à sua pátria e dispersam seus talentos divertindo-se com coisas pueris. Por exemplo, quando cheguei em Paris, vi-os discutir acaloradamente sobre a questão mais ridícula que se possa imaginar; tratava-se da reputação de um antigo poeta grego, do qual, depois de dois mil anos, se ignora a pátria bem como a data de sua morte.. Os dois partidos afirmavam que era um poeta excelente. (...) mas entre esses distribuidores de reputação uns conseguiam se sobrepor aos outros, e essa era toda a discussão (...) eram proferidas, de parte e de outra, injúrias tão grosseiras, eram feitos gracejos tão amargos (...) Acredito que esse zelo tão delicado sobre a reputação dos mortos se incendiaria facilmente para defender aquela dos vivos! (...) Deus me livre de atrair algum dia a inimizade dos censores desse poeta, cuja permanência por dois mil anos no túmulo não conseguiu eliminar um ódio tão implacável! Hoje dão socos no ar, mas o que aconteceria se seu furor fosse provocado pela presença de um inimigo?"
(Carta 36, de Usbek a Redhi).

"Vi pessoas em quem a vrtude era tão natural que não se fazia sequer sentir; se apegavam a seu dever sem sujeitar-se a ele e o cumpriam como por instinto; longe de realçar com seu discursos suas raras qualidades, parece que elas não os havia atingido. São essas pessoas de que gosto; não esses homens virtuosos que parecem se surpreender de o serem e que consideram uma boa ação como um prodígio cujo relato deve deixar todos surpresos. Se a modéstia é uma virtude necessária àqueles a quem o céu concedeu grandes talentos, que se pode dizer desses insetos que ousam demonstrar um orgulho que haveria de desonrar os homens mais destacados?
Vejo em toda parte pessoas que falam sem cessar de si; suas conversas são um espelho impertinente; (...) fizeram de tudo; viram tudo; disseram tudo; pensaram tudo;são um modelo universal; (...) Oh, como o elogio é insípido quando reflete para o local de onde vem!"
(Carta 50, de Rica a ...)

"Outro dia estava num clube social onde me diverti bastante. Havia mulheres de todas as idades; uma de oitenta anos, uma de sessenta, uma de quarenta, acompanhada de uma sobrinha de vinte a vinte e dois anos.
Certo instinto impeliu-me a aproximar-me desta última e ela me disse ao ouvido: "Que dizes da minha tia que, na sua idade procura amantes e ainda pretende ser bonita? -- Está errada, respondi; é uma coisa que só convém a ti." Logo a seguir me encontrava ao lado da sua tia que me disse: "Que achas dessa mulher que tem pelo menos sessenta anos e que hoje passou mais de uma hora na toalete? -- É tempo perdido, disse-lhe; é preciso ter lá seus próprios encantos para poder sonhar." Fui até essa infeliz mulher de sessenta anos e lamentava seu comportamento em minha alma, quando ela me disse ao ouvido: "Há algo de mais ridículo? Vê essa mulher de oitenta anos e que usa fitas cor de fogo; quer mostrar-se jovem e consegue,  pois isso a aproxima da infância." Ah! Bom Deus!, dizia comigo mesmo, sempre haveremos de notar somente o ridículo nos outros?"
(Carta 52, de Rica a Usbek).

"Em Paris, meu caro Redhi, há muitas profissões.(...) Um número infinito de professores de línguas, de arte, de ciências ensina o que não sabe; e esse talento é realmente considerável, pois não é necessária muita inteligência para mostrar o que se sabe, mas dela se necessita em grau infinito para ensinar o que se ignora."
(Carta 58, de Rica a Redhi).

"Aqui todos se dedicam muito às ciências. Mas não sei se são realmente sábios. Aquele que duvida de tudo como filósofo nada ousa negar como teólogo; esse homem contraditório está sempre contente com ele, contanto que se reconheça as suas qualidades.
A ânsia da maioria dos franceses é ter espírito; e a ânsia daqueles que têm espírito é escrever livros.
Mas não há nada tão mal imaginado: a natureza parecia ter sabiamente disposto para que as tolices dos homens fossem passageiras, mas os livros as imortalizam."
(Carta 66, de Rica a ...). Meus Deus! Digo eu, ainda bem que os blogs podem ser deletados!

"Estava outro dia num grupo de pessoas e vi um homem muito contente com ele mesmo. Num quarto de hora resolveu três questões de moral, quatro problemas históricos e cinco pontos de física. Jamais havia visto um solucionador tão universal; seu espírito nunca foi invadido pela menor dúvida. Deixamos as ciências, passamos a falar das novidades do tempo: apresentou soluções para as novidades do tempo. Quis apanhá-lo e falei comigo mesmo: "Preciso entrar em meu forte; vou me refugiar em meu país." Falhei-lhe da Pérsia, mas mal lhe havia dito quatro palavras, já me havia desmentido duas vezes (...) Disse para mim mesmo: "Ah, meu Deus! Que homem é esse? Logo vai conhecer as ruas de Isfahan melhor do que eu." Tomei de imdediato minha decisão: calei, deixei-o falar e está ainda decidindo tudo.
(Carta 72, de Rica a Ibben). E Montesquieu não conheceu certos cronistas do nosso tempo....

" Acho surpreendentes os caprichos da moda entre os franceses. Esqueceram como estavam vestidos no último verão e ignoram ainda mais como estarão neste inverno, mas, de modo particular, não se poderia acreditar em quanto custa a um marido para deixar sua mulher na moda.
De que me serviria dar-te uma descrição exata de seu vestuário e de seus adornos? Uma nova moda viria destruir toda a minha obra como aquela de seus operários e, antes que tivesses recebido a minha carta, tudo já teria mudado. Uma mulher que deixa Paris para passar seis meses no campo retorna tão antiquada como se tivesse passado fora trinta anos."
(Carta 99, de Rica a Redhi) Vemos que o que quer que alimente o nosso consumismo não é próprio apenas de nossa época...

"O grande erro em que incorrem os jornalistas é que só falam de livros novos (...) Parece-me que, atá que alguém tenha lido todos os livros antigos, não tem nenhum motivo para dar preferência aos novos. Mas desde que se impõem a lei de falar das obras ainda quentes, recém-saídas da forja, se impõem outra, que é a de serem muito aborrecidos. Só cuidam de criticat os livros de que fazem extratos, por qualquer razão que seja; com efeito, qual homem é tão ousado para querer angariar dez ou doze inimigos todos os meses?"
(Carta 108, de Usbek a ....).

"A universidade de Paris é a filha mais velha dos reis da França, e muito velha, pois tem mais de novecentos anos; por isso de vez em quando sonha. Contaram-me que ela teve, há algum tempo, uma grande discussão com alguns doutores por causa da letra Q que a universidade queria que fosse pronunciada como K. (...) Era realmente bonito ver os dois organismos mais respeitáveis da Europa ocupados em decidir sobre a sorte de uma letra do alfabeto! Parece-me, meu caro, que as cabeças dos maiores homens se reduzem quando estão reunidas e que onde há mais sábios, há menos sabedoria. Os grandes organismo se apegam sempre tão fortemente às minúcias, aos usos inúteis, que o essencial sempre vem somente em segundo plano."
(Carta 109, de Rica a ...).
* Tradução de Antonio Geraldo da Silva, Editora Escala.

Montesquieu